Caso Escola Base

Caso Escola Base: desrespeito à ética do jornalismo e ao direito

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15 de fevereiro de 2006, 14h06

A presente exposição consiste na síntese parcial de pesquisa que visa resgatar, dentro da linha do projeto de pesquisa supra citado, o caso Escola Base e suas implicações no tema.

“A maldição do fatalismo reside no fato de que basta acreditar nele para que ele se torne rea”l. (Roger Garaudy)

O caso da Escola Base

No mês de março de 1994, surgiu na imprensa uma notícia que chocou o país: a Escola de Educação Infantil Base, a Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, em São Paulo, seria responsável por abusos sexuais em alunos de idade tenra. No total, seis pessoas foram acusadas dos crimes, entre elas proprietários, transportadores das crianças e colaboradores da escola.

A denúncia partiu de duas mães de alunos. Tornou-se manchete vulgar de jornais impressos e telejornais. O clamor público culminou com a invasão do prédio da escola — que era alugado — e a sua total destruição. Sobrevieram o massacre público e jornalístico[1] dos acusados e a destruição completa de suas vidas pessoais e profissionais.

Instaurado o inquérito policial, identificou-se uma suposta mansão onde os ditos abusos aconteciam. Seu proprietário teve a vida devassada e desmoralizada publicamente. A polícia “confirmou” à imprensa a existência dos crimes. Por fim, o laudo das supostas lesões do Instituto Médico Legal, primeiramente dúbio, e em seguida reticente, não pôde se contrapor às possíveis assaduras crônicas apresentadas por uma das crianças, num dos meses de dezembro mais quentes da história da cidade de São Paulo. O inquérito policial, vazio, e diante de um fato que não existiu, foi arquivado, concluindo pela inocência dos acusados.

Evidentemente que os acusados foram à Justiça em busca de reparação por dano material e moral. Conseguiram indenizações ante aos veículos de imprensa e ante ao delegado de Polícia que conduziu o caso, e ainda junto à Fazenda do Estado de São Paulo, que inclusive chegou a ser multada por litigância de má-fé no Supremo Tribunal Federal em face da interposição sistemática de recursos.

Foi o maior caso de erro, leviandade, falta de ética ou coisa parecida que já aconteceu na imprensa brasileira na falsa acusação de pessoas inocentes.

A liberdade de imprensa.

A liberdade de imprensa é um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito. A imprensa é a atividade livre de difusão de conhecimento, de cultura, de entretenimento e, sobretudo, de informação. A sua natureza pressupõe uma atividade livre, justamente para a realização de seu ideal maior, que consubstancia-se no veículo de (in)formação estrutural de uma sociedade.

A imprensa, inclusive, testemunha historicamente o processo político, os fluxos e influxos sociais, e a própria edificação do tecido social. A imprensa, portanto, testemunha, registra, e se torna depositária de todo o arcabouço social. E não é possível pensar em todos esses atributos sem a sua necessária liberdade de atuação.

Observe-se, porém, que não é apenas esse o papel que se espera da imprensa. Não se espera, portanto, que ela tenha apenas um caráter contemplativo, de registro, enfim, um papel passivo e imparcial ante aos fatos, como se poderia imaginar. Os próprios destinatários da informação, não raro, desejam um papel ativo, investigativo, crítico, persuasivo dela, e desejam uma imprensa que lhes dê voz ativa ante ao poder constituído na realização do ideal de estado democrático de direito.

E, repita-se, sem liberdade, nenhum desses objetivos pode realizar-se. E essa liberdade deve realizar-se fora do Estado. E seria desejável, dentro do possível e em alguma medida, realizar-se fora do mercado também, o que nem sempre acontece, pois, atividade livre e na maioria das vezes privada que é, depende de regras, pressupostos e padrões de qualquer atividade econômica organizada[2].

O desejado papel persuasivo, a independência, a imparcialidade e o próprio caráter (investig)ativo da imprensa lhe adjetivou o status vulgar de “quarto poder”. É claro que o adjetivo é inadequado — pois pela sua desejável independência e liberdade de opinião/ expressão, jamais poderia ser entendida como tal (como “poder”) —, mas, no mundo contemporâneo, especialmente pela atual velocidade de circulação das informações, sua capacidade de formar a materialização/aceitação dos fatos, bem como a sua penetração e formação de opinião junto à sociedade, lhe dá características de poder, influência e, não raro, de algum abuso no exercício de suas prerrogativas.


No plano constitucional, a liberdade de imprensa vem consubstanciada em alguns dispositivos, especialmente no artigo 220 da Constituição Federal, que dispõe acerca da ausência de restrições quanto à manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, em qualquer forma, processo ou veículo, dentro do que dispõe a Carta Política, aduzindo o parágrafo 1º do aludido artigo 220 que nenhuma lei conterá disposição que venha a constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística, com a observância de comandos contidos em cláusulas pétreas de seu texto inseridas no artigo 5º, incisos IV[3], V[4], X[5], XIII[6] e XIV[7].

Ainda no mesmo artigo, a vedação à censura está expressa no parágrafo 2º; no parágrafo 3º, a competência de lei federal para regular diversões e espetáculos públicos (inciso I), para a proteção da pessoa e da família em programas de rádio e televisão e sua publicidade (inciso II); e a restrição legal para a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias no parágrafo 4º.

A vedação na formação — direta ou indireta — de monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação social está no parágrafo 5º; e por fim, a dispensa de licença de autoridade para publicação de veículo de comunicação impresso, no parágrafo 6º. Há, portanto, um arcabouço ético-legal insculpido em nossa Lei Maior, dispondo acerca da liberdade de informação, de expressão e de imprensa, enfim, de liberdade de expressão jornalística.

Como bem assenta José Afonso da Silva (1998:249), “é nesta (liberdade de informação jornalística) que se centra a liberdade de informação, que assume características modernas, superadoras da velha liberdade de imprensa. Nela se concentra a liberdade de informar e é nela ou através dela que se realiza o direito coletivo à informação, isto é, a liberdade de ser informado. Por isso é que a ordem jurídica lhe confere um regime específico, que lhe garanta a atuação e lhe coíba abusos”.

Quando analisa-se o caso Escola Base, vê-se, na verdade, um profundo desequilíbrio nas determinações contidas no texto constitucional para o exercício de tais liberdades. A garantia do sigilo de fonte — fundamental no jornalismo investigativo e previsto no artigo 5º, inciso XIV do texto constitucional — foi utilizado sem a devida verificação de sua fidedignidade ou acerto, pugnando por deflagrar uma denúncia infundada e leviana.

O direito de resposta do atingido, previsto inclusive na Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) e também no artigo 5º, inciso V do texto da Lei Fundamental, ante ao poder econômico, pôde, ao presente caso, tornar-se uma possível escusa para a divulgação de informação incerta e desastrosa, não levando em consideração que desmentir uma notícia e reconhecer a sua inexistência é notoriamente mais difícil que recompor a verdade e o status quo ante do ofendido.

A sede de liberdade de imprensa e justiça social, aguçadas pela restrição sofrida pelos meios de comunicação por um significativo período autoritário (1964-1985) fizeram – e fazem até hoje – a imprensa cometer assassinatos da honra e da imagem das pessoas, pugnando contra todas as prerrogativas que a própria liberdade de imprensa e informação objetivaram proteger em favor do interesse do indivíduo e da sociedade. O abuso do exercício dessa liberdade atenta, em ultima ratio, contra ela mesma.

As regras de mercado aplicáveis às empresas jornalísticas criaram a obsessão nos veículos de comunicação pela venda de jornais e revistas, pela audiência, pela conquista de possíveis anunciantes e pelos possíveis negócios. A credibilidade pugnada por eles é institucionalmente avalizada pela quantidade de leitores ou telespectadores, pela audiência e pelo volume de negócios fechados e seus resultados.

Um critério qualitativo que pugna, por exemplo, pelo caráter educativo, como inclusive dispõe de forma genérica o artigo 221 da Lei Fundamental[8], de há muito ficou em segundo plano (que nos diga a televisão brasileira nas tardes de domingo). Nessa receita de audiência, temos como ingredientes o sexo, o sobrenatural, a violência, o ridículo, o vil, o vazio, o malandro, o desinteligente e a exposição da pessoa humana em situações de indignidade. São predicados, não raro, enaltecidos em pessoas públicas de caráter duvidoso. E não nos espantemos: a fórmula funciona[9].


Essa receita foi adicionada na cobertura do caso Escola Base. Jornais e revistas da cidade de São Paulo estamparam manchetes como “Kombi era motel na escolinha do sexo”; “escola de horrores”. Repórteres de televisão perguntaram às crianças: “a tia passou a mão em você?”. Numa época marcada pela impunidade de crimes do colarinho branco, pela violência urbana e pela ineficiência do Poder Judiciário, esse discurso encontra forte eco na sociedade, especialmente nas camadas que têm menos acesso à cultura e informação qualificada.

É quase o retorno ao desejo da justiça primitiva privada e da vingança particular. É de se questionar se tal conduta colima com o interesse público que deve nortear a atividade jornalística, pois é sabido que não há interesse público sem o seu exercício com responsabilidade, especialmente no que tange à divulgação de fatos e dados.

Conclusão

Não se pretendeu, em nenhum momento, desqualificar a imprensa e a atividade jornalística, e muito menos julgá-la. Se fosse possível, ainda que pelo senso-comum, pesar na balança os acertos e os erros, creio que os acertos da imprensa superariam com folga os seus erros.

No entanto, pretendeu-se revistar o caso Escola Base para memorizar um erro grave, no intuito de nos dar a oportunidade de refleti-lo e entendê-lo, tirando lições do fato, nunca nos esquecendo que no plano constitucional vigoram disposições inderrogáveis como o asseguramento da plenitude de defesa (art. 5º, incisos LV e XXXVIII, alínea a), a vedação da privação da liberdade ou de bens sem o devido processo legal (inciso LIV) e a presunção de inocência (inciso LVII).

Marcos Antônio Cardoso de Souza (2003) nos lembra que “cumpre frisar que nem todos os meios de comunicação veicularam as denúncias sobre as supostas moléstias aos impúberes da escola. Isto revela que alguns setores da imprensa já adquiriram consciência de sua influência na sociedade e as conseqüências do poder do qual se reveste a mídia. Não se pretende afirmar com essas assertivas que os veículos divulgadores do caso em questão são irresponsáveis, ou desprovidos de qualquer ética profissional. Incontestável, porém, o equívoco cometido pelos mesmos, fato este que deve servir como alerta, no sentido de se proceder com maior cautela, no momento de se selecionar, não só as notícias a serem divulgadas, como também a abordagem a ser conferida a uma questão controversa. As prerrogativas constitucionais e legais, consagradas aos particulares, são de observância imperativa”.

Porém, de uma forma geral, o que vemos são as prerrogativas constitucionais e legais serem respeitadas apenas para aqueles que dispõem de poder econômico e político. Para o cidadão médio, comum, o sistema se mostra com iniqüidade, anacrônico e distinto. Dele, foram vítimas os envolvidos nessa impressionante rede de propagação de falsas informações.

Se por um lado o Código de Ética do Jornalista dispõe em seu artigo 5º que a obstrução direta ou indireta à divulgação da livre informação e a aplicação de censura ou autocensura são delitos contra a sociedade, por outro, impõem nos artigos 2º e 3º, respectivamente, o dever dos meios de comunicação pública — independentemente de sua propriedade — de divulgação de informação precisa e correta, além da divulgação pautada pela real ocorrência dos fatos, tendo por finalidade o interesse social e coletivo.

O que ocorreu no caso da Escola Base foi uma seqüência impressionante de desrespeito a princípios tanto de ética jornalística como de princípios elementares de direito, numa proporção talvez jamais vista na imprensa brasileira, onde uma versão que, se devidamente analisada, seria controversa e passível de investigação e diligências, se tornou um fato artificialmente aceito como “verdade” pelos meios de comunicação, que se entregaram à fórmula fácil do massacre público enquanto ingrediente de sua política de audiência e repercussão.

Não se deve cercear a liberdade de imprensa, de informação, de pensamento. Esse fato, por si só, jamais justificará uma posição no sentido de tolhê-las. Mas é preciso encontrar o difícil equilíbrio entre as regras de mercado e a operacionalização da informação, tendo em vista sempre o interesse público e a enorme penetração, repercussão e conseqüências que uma possível divulgação errônea poderá trazer aos citados.

Não se deve fazer uma “caça às bruxas”, mas reconhecer que ocorreram erros sérios no caso da Escola Base, que destruíram a honra e auto-estima de pessoas, que devem, naquilo que for possível, ser reparados, e os responsáveis, serem julgados pela Justiça. E não reconhecendo isso, corremos o risco de cair na leviandade.

Referências

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 15ª ed. 1998, 863 p.


SOUZA, Marcos Antônio Cardoso de. Monstros da Escola Base. In: Âmbito Jurídico. Disponível na rede mundial de computadores no endereço eletrônico <http://www.ambito-juridico.com.br/aj/cron0068.htm>. Ago/2000. Acesso em 15/12/2005.

GOMES, Marcos Emílio. Os meios de comunicação de massa e a criminalidade. In: MAIEROVITCH, Walter Fanganiello, HONDAS, Milton et DANTAS, Raimundo (coord.). Política Criminal: Semana João Mendes Jr. de Direito Criminal do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie. São Paulo: Usina Editorial, 1993, 127 p.


[1] A propósito, tenho uma recordação emblemática do caso. Em entrevista concedida à telejornal – então à época no ar – de emissora de televisão de São Paulo, e em pleno horário de almoço, os acusados foram massacrados pelas palavras do jornalista, que fazia as vezes de âncora e apresentador. O advogado dos que na verdade seriam ouvidos ou entrevistados mal pôde falar, e quase colocado como co-autor do crime que se lhes imputava.

[2] Marcos Gomes (1993: 16-17), no mesmo sentido, nos aduz que (…) é natural imaginar que o empresariado do ramo compõe-se de um clube de altruístas dedicados ao bem-estar social. Nada mais falso. Os jornais não são diferentes de qualquer outro estabelecimento comercial, seja uma grande multinacional do ramo automotivo seja o açougue da esquina. Os empresários fazem jornal porque dá lucro – e essa talvez seja a melhor notícia sobre o assunto (…).

[3] Art. 5º, inciso IV. É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

[4] Art. 5º, inciso V. É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[5] Art. 5º, inciso X. São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[6] Art. 5º, inciso XIII. É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

[7] Art. 5º, inciso XIV. É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

[8] Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

[9] Marcos Gomes (1993:15), em conclusão semelhante, lembra que no exercício desse tipo de cobertura, os jornais resgatam um velho prazer que a maioria tem dificuldade de confessar, mas ao qual se entrega todo dia diante da televisão, nas novelas. As pessoas gostam de acompanhar folhetins. Gostam mais ainda quando esses folhetins tratam de casos reais. Por isso, com o correr dos anos, a ficção em capítulos praticamente desapareceu da imprensa diária, tendo seu espaço gradativamente ocupado pelo noticiário criminal.

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