Conflito de direitos

Limites da liberdade de expressão perante o direito individual

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14 de fevereiro de 2006, 11h56

Os recentes fatos relacionados a charges do profeta Maomé divulgados por um jornal dinamarquês acenderam uma antiga e, às vezes, latente polêmica sobre os limites à liberdade de expressão.

Muçulmanos e não muçulmanos têm se manifestado em diferentes cantos do planeta contra a difusão de imagens caricaturizadas do profeta Maomé como se fosse um terrorista. Atos violentos de protesto diante das embaixadas dinamarquesas em países de maioria islâmica, assim como contra representações diplomáticas dos Estados Unidos e de outros países europeus, são o lado obscuro de uma questão de fundo ainda não resolvida: até que ponto os meios de comunicação estão autorizados a supostamente ofender as convicções religiosas de alguns em nome de uma “liberdade de expressão”?

O conflito entre liberdade de expressão, revestida de criação artística, e liberdade religiosa é relativamente freqüente em nossa sociedade, seja esta última do Ocidente o do Oriente.

Basta olhar o passado para resgatar da memória que os atuais acontecimentos têm muita semelhança à situação ocorrida em setembro de 1988, quando foi publicado o romance Os versos satânicos, do escritor indiano de origem britânica, Salman Rushdie. Na polêmica obra, o autor interpretava, a seu modo, os versículos do Alcorão e falava da figura do profeta Maomé.

O livro rendeu fama mundial a Rushdie depois que o governo iraniano proibiu sua publicação por considerá-la uma blasfêmia. Milhares de livros foram queimados em diversos países em sinal de protesto, principalmente no Irã, onde foi ditada, em 1989, uma condenação à morte pelo líder espiritual e político Aiatolá Khomeini, tanto para Rushdie quanto para todos que, com conhecimento do conteúdo de seu livro, colaborassem com a publicação do mesmo.

Rushdie teve de pedir asilo ao Reino Unido, uma vez que foi ameaçado de morte por seus próprios compatriotas. Nenhuma demanda judicial foi apresentada contra a editora ou contra o escritor, mas Rushdie acabou sofrendo uma condenação virtual, pois esteve obrigado a permanecer incógnito, trancado em sua casa, e vigiado constantemente pela polícia secreta britânica que, diante de qualquer fato suspeito, lhe sugeria uma mudança de endereço. Uma pena tácita que permanece ainda hoje, mesmo depois da morte de Khomeini em junho de 1989.

Outras obras artísticas, como, por exemplo, filmes que trataram da vida de símbolos do catolicismo como Jesus Cristo e sua mãe Maria1, também adquiriram notoriedade pela polêmica erigida por seus diretores, que levaram à tela grande versões muito particulares sobre estes personagens. Em todas as ocasiões, as reproduções geraram protestos e demandas judiciais, em geral, pela suspensão da difusão do conteúdo produzido. Em cada caso aberto, de acordo com as características de cada um, foram distintas as interpretações que o Poder Judiciário adotou: às vezes, em favor da liberdade de expressão, outras vezes, por sua limitação frente a outros direitos fundamentais.

Um conhecido caso de divergência entre liberdade de expressão e respeito à religião que chegou aos tribunais foi a do escritor francês Houellebecq, julgado e absolvido na França, em outubro de 2002, por seu ataque ao Islã. Ele teria afirmado em uma entrevista que esta era “a religião mais idiota”. A sentença do Tribunal Correcional de Paris, baseando sua decisão no argumento da liberdade de expressão, assinalou que sustentar que “o Islã é a religião mais idiota” não supõe afirmar que todos os muçulmanos devam ser qualificados assim. E concluiu que tais declarações “não encerram nenhuma vontade de invectiva, de desprezo ou ultraje aos adeptos a essa religião”2.

Recorrer ao Poder Judiciário. Esta também foi a sugestão do governo dinamarquês a todas as pessoas que, de alguma forma, se sentiram atingidas moralmente pelas caricaturas de Maomé estampadas pelo jornal Jyllands-Posten, em sua edição de 30 de setembro de 2005.

Em declarações à imprensa, o porta-voz do governo dinamarquês disse ser impossível assinar um pedido formal de desculpas por parte das autoridades de seu país, tampouco retificar a atitude tomada pelo jornal de divulgar os desenhos, por se tratar do exercício profissional da liberdade de expressão.

Mas, o que se pode entender por “liberdade de expressão”?

Segundo Saavedra López3, “a liberdade de expressão, em geral, é o direito a difundir publicamente, por qualquer meio e ante qualquer platéia, qualquer conteúdo simbólico. Se pode exercê-la verbalmente, em uma reunião, concentração ou manifestação; por escrito, através de livros, periódicos, cartazes ou panfletos; utilizando ondas radioelétricas ou impulsos elétricos (rádio e televisão); através de imagens projetadas em uma tela, ou mediante o som registrado em discos e fitas magnéticas; mediante a ação dramática de atores em presença de um público, etc.”. Dentro deste universo de manifestações, portanto, estariam também as caricaturas publicadas em um meio de comunicação.


Em nome de tal liberdade de expressão dos meios de comunicação, não obstante, é necessário distinguir o que realmente é conteúdo formador de opinião pública (informação), o que é transferência de cultura de uma geração a outra, o que é entretenimento e, principalmente, separar estes aspectos do que é o desejo de lucro por parte das empresas.

Hoje já se nota um esforço da atividade jornalística em dedicar maior atenção ao público leitor, cuja proteção se percebe como uma necessidade cada vez mais urgente. Se insiste agora, sobretudo, no direito do público a ser informado a partir de uma pluralidade heterogênea de fontes, com objetividade e sem manipulações e respeitando, além disso, certos valores morais e culturais representativos da dignidade da pessoa e do progresso da civilização4.

Isso converte a função jornalística em um negócio em torno do qual se mobilizam forças econômicas que não retrocedem diante da manipulação, do sensacionalismo, da degradação cultural e da concentração empresarial5.

No entanto, a postura ética adotada pelos meios de comunicação não os isenta de um possível conflito de interesses ou um choque com os direitos dos cidadãos na hora de exercer sua liberdade de expressão.

Por isso, a institucionalização da liberdade de expressão e de informação tem sido tão complexa. O alcance desta liberdade depende de toda uma série de medidas normativas que abarcam o âmbito da empresa, o da publicação ou conteúdo, e o da profissão, como dizia F. Terrou6. Somente a concretização de responsabilidades morais e jurídicas no exercício da atividade jornalística é que pode converter a imprensa em um instrumento de progresso democrático e cultural, de defesa das liberdades públicas e de entendimento mútuo.

Já entendia assim o tema Denis McQuail, quando delimitou aqueles que seriam para ele os princípios normativos de uma “teoria da responsabilidade social” da imprensa:

— Os meios de comunicação devem aceitar e cumprir determinadas obrigações com a sociedade;

— Essas obrigações devem ser cumpridas, sobretudo, estabelecendo um nível profissional ou alto de informação, veracidade, exatidão, objetividade e equilíbrio;

— Ao aceitar e aplicar estas obrigações, os meios de comunicação devem se autoregular dentro do marco legal e das instituições estabelecidas;

— Os meios de comunicação devem evitar tudo aquilo que induza ao delito, à violência ou à desordem civil, ou que resulte ofensivo para as minorias étnicas ou religiosas;

— Os meios de comunicação, em conjunto, devem ser pluralistas e refletir a diversidade da sociedade, concedendo acesso aos distintos pontos de vista e ao direito de réplica;

— A sociedade e o público, como se deduz do princípio exposto em primeiro lugar, têm direito a esperar bons níveis técnicos, e estaria justificada a intervenção para assegurar o bem público7.

De maneira que, ante qualquer abuso cometido pelos meios de comunicação de massa, devem os afetados — sejam indivíduos, sejam coletivos — exigir a aplicabilidade das diretrizes legais que regulam a profissão jornalística e sancionam os delitos por eles cometidos. E isto só se pode dar recorrendo-se ao Poder Judiciário.

Cabe aos juízes adotarem as medidas legais pertinentes a cada caso, entre as quais certamente figurarão algumas de caráter econômico e financeiro, igual que outras tendentes a proteger o exercício individual da liberdade de expressão e de obtenção de informação (direito de resposta, segredo profissional, direito de acesso a dados e documentos, etc.), e ainda algumas que limitam esse exercício para proteger os direitos fundamentais de terceiros o da coletividade.

No entanto, a decisão certamente se baseará nos preceitos jurídicos presentes na legislação vigente de cada país ou, no caso de corresponderem a questões de natureza supranacional, terá sua resposta fundamentada nos textos jurídicos internacionais.

Certo é que a imprensa não pode jamais ultrapassar o marco da livre expressão no sentido de violar o direito de uma pessoa, sob pena de receber uma sanção penal ou ter de ressarcir danos. “Nenhuma sociedade, por impregnada que esteja de liberalismo, pode tolerar a divulgação de fatos ou a expressão pública de opiniões que atentem contra os valores fundamentais ou lesionem a seus membros sem a justificação de um interesse geral”, já afirmava Terrou8.

Atualmente, todos os países democráticos recorrem com mais ou menos extensão este tipo de limites ao exercício da liberdade de expressão, como se pode citar o artigo 10, parágrafo 2, do Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais9. Igualmente ocorre com as restrições à liberdade de expressão por causa das convicções religiosas, como bem reflete o artigo 20.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966. Segundo este, “toda apologia ao ódio (…) religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade ou à violência estará proibida por lei”.


A Dinamarca ratificou os dois tratados acima citados, o que somente vem a corroborar seu texto constitucional de 1953, cujo artigo 77 aborda a liberdade de imprensa:

“Art. 77 — Cada um terá direito a publicar suas idéias na imprensa por escrito ou de palavra, sem prejuízo de responder perante os tribunais. Não se poderá restabelecer jamais a censura e demais medidas preventivas” (Constituição do Reino de Dinamarca, de 5 de junho de 1953).

Não há dúvidas, portanto, que existem incontáveis instrumentos jurídicos que podem ser argüidos contra qualquer suposto abuso cometido em nome da liberdade de expressão (ou de imprensa, conforme o caso). Estes instrumentos, inclusive, mencionam que o exercício da liberdade de expressão comporta deveres e responsabilidades, que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (em diante TEDH) interpreta como uma espécie de “autocensura” no terreno da informação religiosa.

A sentença do TEDH, de 20 de setembro de 1994, nº 47, ilustra bem o confronto existente entre liberdade de expressão e religião. No caso Otto Preminger contra Áustria, o tribunal reconhece a legitimidade de estimar que o respeito aos sentimentos religiosos dos crentes foi violado por representações provocadoras de objetos de veneração religiosa, e que estas representações — que no caso em questão se tratavam do filme cinematográfico O concílio do amor — podem ser consideradas como uma vulneração do espírito de tolerância que deve caracterizar também uma sociedade democrática. Por fim, se rejeita, pelo tribunal, “que seja digna de proteção uma liberdade de expressão que chegue a perturbar a convivência e a paz social”.10

Finalmente, se trataria de evitar o quanto possível as expressões que são gratuitamente ofensivas para outros que vêem assim infringidos os seus direitos e que, por isso mesmo, não contribuem em absoluto ao debate público capaz de favorecer o progresso nos assuntos humanos11.

Notas de rodapé.

1 — Como exemplos, se pode citar os filmes: Jesus Christ, Superstar, de Norman Jewison (1973); Je vous salue, Marie, de Godard (1985); A Última Tentação de Cristo, de Martín Scorcese (1988); e, mais recentemente, A Paixão de Cristo, de Mel Gibson (2004), que relata as últimas 12 horas de vida do líder dos cristãos. Gibson, que é católico praticante e membro de uma ala muito conservadora da Igreja Católica, sofreu muitas críticas ao seu trabalho, tanto de setores católicos, como, (e principalmente), de representantes da religião judaica, que alegaram ser a obra anti-semita.

2 — Cfr. Jornal espanhol La Razón, edição de 23 de outubro de 2002, p. 20.

3 — Saavedra López, Modesto, La libertad de expresión en el Estado de Derecho. Entre la utopía y la realidad, Ariel, Barcelona, 1987, págs. 18 e 19.

4 — Idem, op. cit., p. 100.

5 — Idem, op. cit., p. 101.

6— Terrou, F., La información, Oikos-Tau, Barcelona, 1970, p.109.

7 — McQuail, Denis, Introducción a la teoría da comunicación de masas, Paidós, Barcelona, 1985, págs 112 e segs.

8 — Terrou, Fernand, La información, Oikos-Tau, Barcelona, 1970, p.109.

9 — Na íntegra do texto se lê:

a) Toda pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de comunicar informação ou idéias sem que possa haver ingerência de autoridades públicas e sem consideração de fronteiras. O presente artigo não impede que os estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografía ou de televisão a um regime de autorização prévia.

b) O exercício destas liberdades, que entranham deveres e responsabilidades, poderá ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções previstas pela lei, que constituem medidas necessárias, em uma sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do delito, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da reputação ou dos direitos alheios, para impedir a divulgação de informações confidenciais ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judiciário.

10 — Gutiérrez del Moral, María José, La liberdad religiosa en los medios de comunicación, en Ius Canonicum, n. 42, 2002, p. 290, citado por José María Martí, Sociedad, Medios de Comunicación y Factor Religioso. Perspectiva Jurídica, Alfonsípolis, Cuenca, 2003, p. 148.

11 — Cfr. Assunto Otto Preminger Institut, de 20 de setembro de 1994, n. 49. Também se pode citar o julgamento “Wingrove”, de 25 de novembro de 1996, n. 52. Ambos episódios foram citados na obra de José María Martí, Sociedad, Medios de Comunicación y Factor Religioso …, op. cit., p. 149.

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