Quebra-cabeça

Lei de Falências é boa, mas solução é econômico-administrativa

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14 de fevereiro de 2006, 6h00

A nova Lei de Recuperação, vigente a partir de 9 de junho de 2005, seguramente trouxe inúmeros avanços em relação ao mais que ultrapassado diploma legal de 1945. São cinco as suas maiores contribuições:

(i) a busca pela preservação daqueles negócios viáveis e seus respectivos postos de trabalho para que possam gerar valor em toda a cadeia produtiva;

(ii) a criação de maiores possibilidades para o salvamento dos negócios viáveis, não apenas na recuperação extrajudicial e judicial, mas também na falência, que prioriza a continuidade do negócio e sua venda como tal;

(iii) a segregação da sorte da célula social denominada empresa daquela do empresário;

(iv) a celeridade e;

(v) a ampla desprocessualização.

É de suma importância, porém, entendermos que a mesma é o arcabouço jurídico cujo objeto é dotar o processo recuperatório com os marcos regulatórios legais, e não nos deixarmos iludir, porque o recém-nascido ordenamento jurídico não é ou pretende ser a cura de todos os males, mas apenas uma pequena parte do que pode ser um grande e complexo quebra-cabeça.

Com efeito, não é o fato de ter uma boa e moderna lei que determinará se um negócio poderá ou não ser salvo. A recuperação judicial deve ser vista como exceção. Nos Estados Unidos, por exemplo, a razão é da ordem de 1,6 milhão de falências para 12 mil casos de recuperação judicial por ano. Destarte, o Poder Judiciário e os credores em geral deverão analisar cada caso criteriosamente para evitar eventuais abusos e medidas protelatórias que comprovadamente geram grandes perdas de valor e tempo, como ocorria com freqüência com as concordatas na antiga lei.

A natureza fundamental do salvamento de um negócio é econômico-administrativa e não jurídica. Se um negócio não é viável, não será a lei que irá salvá-lo. De igual forma, ainda que viável seja, se a gestão da empresa não detiver a credibilidade necessária perante os credores e o mercado de uma forma geral, esta boa lei não irá salvá-lo. Apesar de um plano viável e possuidor de uma administração competente com elevada credibilidade, além de uma boa estratégia e plano de recuperação bem concebido, se não executado em tempo hábil, a empresa sucumbirá, independentemente da lei.

Em síntese, a lei é boa e moderna, mas não é ela que está sendo colocada em teste com os primeiros casos de recuperação judicial, mas sim a atuação e competência da governança e administração das empresas em dificuldades, do judiciário e de seus stakeholders, dos quais depende verdadeiramente o êxito do processo como um todo, aos quais cabe deliberar com responsabilidade, experiência, conhecimento tácito e lucidez a solução mais adequada para cada situação.

Os juízes exercem um papel central no êxito ou fracasso do processo recuperatório. Dependendo de sua atuação, negócios viáveis podem ser extintos enquanto outros inviáveis podem enveredar em um processo procrastinatório infindável, gerando grande destruição de valor em ambos os casos. Alguns aspectos essenciais devem ser observados atentamente:

(i) as crises empresariais são causadas geralmente por problemas de má gestão. Por isso, a grande maioria dos casos de recuperação nos países desenvolvidos implica inevitavelmente na imediata substituição do comando, que contribuirá para o avanço contínuo do processo de reabilitação, evitando assim trocas de administração e retrocessos, que introduzem grande insegurança e incerteza;

(ii) a viabilidade do negócio; e

(iii) transparência.

Além dos aspectos mencionados,

(iv) a celeridade do processo e a observação dos prazos, lembrando sempre que o processo degenerativo não fica estagnado, pelo contrário, acelera-se exponencialmente e de forma avassaladora;

(v) a qualidade do plano de recuperação judicial — em alguns casos, têm-se observado a apresentação de planos verdadeiramente pífios, com baixo conteúdo e detalhe, deixando dúvidas quanto a sua fundamentação; e

(vi) os detalhes do plano de recuperação, que deve abranger primeiramente ajustes na governança, gerenciais, organizacionais, estratégicos, operacionais, estruturais, comerciais e tecnológicos, não olvidando que este “trabalho de casa” constitui uma das pré-condições da reabilitação da empresa, sem o qual dificilmente será lograda a igualmente fundamental reestruturação de balanço e atração de novos recursos sob a forma de crédito ou capital para fomentar a atividade principal da empresa.

Resumidamente, em nível macro, a seqüência do plano é forçosamente a seguinte, também conhecida como by the book:

1º passo – nova gestão, confecção do plano incluindo exercício de valuation (cálculo do valor da empresa) e ajustes envolvendo o negócio e a operação;

2º passo — apoio dos fornecedores com retomada de prazos de pagamento e possíveis conversões de dívida;

3º passo — apoio dos credores, com créditos emergenciais e possíveis conversões;

4º passo — apoio dos funcionários;

5º passo — busca de recursos junto a novos players.

Muito dificilmente, os passos 2, 3 e 4 ocorrerão sem o cumprimento do 1º, da mesma forma que o 5º dificilmente será concretizado sem a ocorrência dos quatro anteriores.

A lógica é simples: se quem já está no risco não confia na sua gestão ou no sucesso do plano a ponto de apoiá-lo, quem está fora do risco não terá a menor motivação para apoiar a empresa, nem mesmo com a mais bem concebida estrutura de captação ou de fundos de investimento. Outros aspectos críticos para o êxito do processo, são:

(i) a consciência do juízo quanto à necessidade da correta escolha do administrador judicial, dotado das qualificações e experiência exigidas — o seu perfil é bem mais abrangente do que a do comissário e síndico na antiga lei, sendo que fica dentro da empresa e necessita ampla vivência em gestão, finanças, controle e operações em situações de crise;

(ii) a atenção a eventuais fraudes e crimes financeiros.

As primeiras experiências de maior vulto e mais emblemáticas, como Varig e Parmalat, com a nova lei revelam bem esses aspectos, apesar de suas diferenças. Outros casos fornecem de igual forma ricos subsídios — Cory Alimentos e Vasp, além do caso Frigorífico Chapecó. Na esfera internacional, temos casos famosos como United Airlines, que acaba de ter seu plano de recuperação judicial aprovado nos Estados Unidos, Parmalat, Worldcom e Enron.

O segmento de aviação é extremamente complexo e passa por um processo de adequação a nível mundial, e o Brasil não é exceção. O ataque de 11 de setembro às torres gêmeas, a Sars, a desregulamentação, entrada de empresas de baixo custo, excesso de capacidade e a alta no preço de combustível são os principais fatores exógenos que golpearam duramente as empresas aéreas tradicionais como Varig, United, Delta, Continental, American e outras.

Além disso, algumas delas se defrontaram com acentuados problemas de gestão, de competitividade de custos (excesso de pessoal indireto e direto, previdência, leasing, entre outros), de elevado nível de endividamento, limitação ou corte de crédito e retração dos fornecedores, resultando em falta de liquidez, o que as levou a recorrer à recuperação judicial para realizar os ajustes necessários e torná-las mais competitivas, resgatando sua saúde financeira.

O gigantesco e bem sucedido processo de recuperação judicial da United, iniciado em dezembro de 2002 com seu plano aprovado em 1º de fevereiro de 2006, é o maior já registrado na história da aviação. Segunda maior empresa aérea dos Estados Unidos com 17% do mercado (American; 18%), opera 200 destinos mundialmente para 26 países com 1700 decolagens diárias; membro fundador da maior aliança de empresas aéreas do planeta, Star Alliance, da qual a Varig é também parte integrante, com 15 mil vôos diários para 795 destinos em 139 países. Tem hoje 730 aeronaves. Em 2002, possuía ativos de US$ 24,1 bilhões, passivos de US$ 22,9 bilhões; teve rejeitado seu pedido de apoio governamental.

Com uma gestão eficaz, um bem concebido plano, trabalhos de valuation e transparência total, nos últimos três anos a empresa cortou US$ 7 bilhões/ano em custos, reduziu sua dívida em US$ 8 bilhões e seu quadro de pessoal em 20 mil funcionários (68 mil em 2001), adequou sua frota e reduziu a mesma em 100 aeronaves. Além disso, obteve US$ 3 bilhões em novos recursos, contando com o apoio dos credores, mercado de distressed investors e fornecedores através de créditos extra-concursais desde o início de sua reabilitação.

É de suma importância destacar que todo o processo de recuperação judicial foi conduzido seguindo rigidamente a lógica e seqüência tradicional, ou seja, by the book, e que sua administração entende que a indústria necessita de maior consolidação para solucionar o problema de excesso de capacidade.

O caso Varig é o maior da história nacional. Líder de mercado em vôos internacionais com 79% de participação — 23 destinos internacionais em 20 países, ocupa a 3ª posição no mercado doméstico com 27% de participação; R$ 9 bilhões de passivo; 12 mil funcionários; 75 aeronaves, 62 em operação. Existem algumas similaridades entre os problemas que assolaram a Varig e a United, porém a forma e abordagem de solução são bastante distintas. A crise financeira e processo recuperatório da Varig tiveram início na década passada, agravando-se sobremaneira nos últimos quatro anos, e em meados de 2005 a empresa entrou com pedido de recuperação judicial sob a égide da nova Lei 11.101/05 que ora entrava em vigor.

Apesar do longo período em que a empresa se encontra em reestruturação, dos inúmeros consultores e entidades financeiras nacionais e estrangeiras contratadas, e dos diferentes administradores que a comandaram em seu declínio, o processo degenerativo continuou a agravar-se exponencialmente até o ponto em que suas linhas de crédito foram sustadas e seus fornecedores impuseram-lhe condições mais dramáticas, ficando a empresa exposta a uma crise de liquidez e de credibilidade sem precedentes. A empresa tem condições de recuperação, porém necessita obrigatória e peremptoriamente observar a seqüência tradicional, tomando as duras medidas necessárias (by the book) como fez a United para que seu processo de salvamento tenha possibilidade de êxito.

As perspectivas para a preservação dos negócios viáveis são favoráveis, porém condicionadas a importantes desenvolvimentos:

(i) aumento da consciência preventiva por parte da empresa e credores;

(ii) acionamento mais cedo de medidas de correção de rumo, nos primeiros sinais de alerta;

(iii) maior transparência e celeridade;

(iv) maior envolvimento por parte das instituições financeiras e credores de uma forma geral, uma vez que possuem o expertise que os permitem identificar mais cedo os sinais de alerta, além de terem um papel vital a desempenhar como agentes de mudanças — solicitando que sejam feitos check ups periódicos por empresas especializadas;

(v) atuação do Judiciário — criação de varas especializadas, intercâmbio de informações, treinamento contínuo;

(vi) desenvolvimento de profissionais especializados em recuperação de empresas — com a vocação exigida, além da certificação para aumentar o grau de segurança, pois geralmente não há segunda chance em casos de gestão de crise;

(vii) aumento do numero de recuperações informais e extrajudiciais;

(viii) maior conscientização por parte da empresa e credores quanto a necessidade de contratação de especialista em recuperação de empresas — em tempo hábil;

(ix) gradativa redução da cultura de conflitos migrando para maior consciência do principio da interdependência;

(x) desenvolvimento do mercado secundário de dívida;

(xi) desenvolvimento de fundos de investimentos especializados em empresas em dificuldade;

(xii) aperfeiçoamento da lei e desenvolvimento de legislação dispondo sobre a recuperação de empresas envolvendo múltiplas jurisdições.

O processo de aperfeiçoamento da aplicação da nova lei deve ser conduzido através de iniciativas proativas por parte do Judiciário, bancos, fundos de investimento e empresas, o que sem dúvida contribuirá para o desenvolvimento econômico e o bem estar social, atraindo novos investimentos e reduzindo o risco financeiro e o spread bancário.

Autores

  • Brave

    é especialista em recuperações de empresa e presidente do Instituto Brasileiro de Gestão e Turnaround. É também representante junto a Insol International e membro do American Bakruptcy Institute.

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