Salve-se quem puder

Dicas de segurança não suprem falta de estrutura policial

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14 de fevereiro de 2006, 9h15

Todo mundo sabe que São Paulo é uma cidade extremamente violenta, que a criminalidade grassa em cada esquina e que estamos longe de uma solução para o problema. A imprensa noticia fatos assustadores, como seria de se esperar, porém, às vezes o absurdo é tão grande que se observarmos bem certas matérias sobre a criminalidade chegaremos à conclusão de que o Estado não tem nada a ver com esse problema. Vivemos a violência cotidiana por uma questão de destino, carma, fatalidade, expiação de pecados ou por abandono do Criador.

Para exemplificar o surrealismo de determinados posicionamentos, cito uma reportagem do Jornal da Tarde, do último dia 6 de fevereiro, na qual o jornal informa os pontos mais perigosos da cidade de São Paulo. Segundo levantamento feito por uma organização de taxistas chamada Anjos da Cidade, foram identificados os cruzamentos mais perigosos da metrópole. O campeão de assaltos foi o da Avenida Morumbi com Avenida Santo Amaro. Segundo informações de um segurança não identificado que trabalha no local, a geometria das ruas favorece a ação dos meliantes. Eles ficam escondidos atrás de grades na Avenida Morumbi e não são vistos pelos motoristas dos veículos que vêm em sentido contrário, pela Santo Amaro. Então, escolhem as vítimas, roubam rápido e fogem de motocicleta. Toda a extensão da avenida Santo Amaro foi considerada muito perigosa, pois em seis meses os taxistas registraram 323 assaltos.

O impressionante não são os números elevados. A população, por experiência própria, já fazia idéia dessa situação. O que assusta são outros dados constantes da matéria do JT. Primeiro, conforme informado, a Secretaria Estadual da Segurança Pública não fornece essas estatísticas, é preciso que uma organização não-governamental tome a iniciativa de fazer o cálculo para conhecer melhor nossa realidade.

Segundo, se todo o mundo sabe que determinados locais são extremamente perigosos, a polícia também deve saber. Por que não se reforça o policiamento nessas áreas? É certo que a reportagem constatou a existência de duas cabines da Polícia Militar próximas ao entroncamento considerado de maior risco, mas o problema é que ambas estavam vazias e fechadas com cadeado.

Diante do descalabro, a reportagem jornalística se viu na contingência de recomendar aos leitores que tentem se defender por conta própria e como puderem. Para isso, forneceu dicas que foram apresentadas por “especialistas” em segurança pública. Recomendou-se, então, que os ocupantes de veículos sempre prestem muita atenção ao movimento à sua volta, como se isso tivesse o condão de evitar alguma coisa. Aconselhou-se o leitor a evitar parar perto de cruzamento (!) especialmente na faixa da esquerda. É claro que todo e qualquer motorista ou passageiro dessa cidade ficaria extremamente feliz de não ter que parar em nenhum cruzamento, mas isso é totalmente impossível. Os cruzamentos existem e são os locais mais congestionados. Será que os “especialistas” poderiam explicar como evitá-los? Vamos, também, manter vazias todas as faixas da esquerda?

Outros conselhos fabulosos são para não dirigir sozinho à noite, manter os vidros do carro fechados e, quando em um cruzamento, posicionar-se o mais afastado possível do semáforo e das calçadas. Só faltou a recomendação para levantar vôo ou blindar o carro.

Nada do que os “especialistas” recomendam resolve o problema. É tudo uma bobagem sem tamanho. Ninguém consegue fazer o que eles sugerem e, mesmo que conseguisse, de nada adiantaria, pois o problema não é individual, mas social. Essas dicas para a auto-proteção, na base do salve-se quem puder, só demonstram a situação de calamidade que conseguimos atingir.

O que os “especialistas” em segurança deveriam sugerir é como a polícia poderia ser melhor organizada, agindo com mais firmeza nos pontos de periculosidade e, principalmente, conseguindo prender os bandidos que assaltam impunemente, no mesmo lugar, há anos. Outra medida interessante que não foi apresentada seria o investimento em prevenção, como, por exemplo, priorizar a educação e o planejamento familiar.

O que não se pode admitir é que, diante dessa guerra sangrenta, a única coisa que reste ao cidadão fazer seja fechar os vidros do carro e evitar cruzamentos.

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  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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