A voz do fiscal

Entrevista: desembargador Gilberto Passos de Freitas

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12 de fevereiro de 2006, 6h00

Gilberto Passos de Freitas - por SpaccaSpacca" data-GUID="gilberto_passos_freitas.jpeg">Encarregada de zelar pela moralidade, regularidade dos atos e eficiência de quase dois mil juízes, 40 mil funcionários e mais de 500 cartórios extrajudiciais espalhados pelas centenas de comarcas, a direção da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça paulista é o que se pode chamar de cargo espinhoso. Em compensação, é também o posto mais importante, depois da Presidência do tribunal.

O atual ocupante do cargo, desembargador Gilberto Passos de Freitas, pode se orgulhar não só de ter sido eleito, na primeira semana de dezembro, para um cargo cujas qualidades exigidas são óbvias, mas também pelo fato de ter obtido a mais alta votação dentre todos os eleitos para todos os demais cargos.

A família Passos de Freitas tem estado em evidência. Seu irmão, Vladimir, ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é considerado pela maior parte da magistratura federal como o melhor candidato a uma vaga do Supremo Tribunal Federal.

Afável e tranqüilo, Gilberto foge do protótipo ameaçador do corregedor de cara amarrada. Nesta entrevista da qual participou também o jornalista Márcio Chaer, questionado a respeito desse perfil, invocou a célebre frase atribuída a Ernesto Guevara, o Che: “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamas”.

Gilberto Passos de Freitas enaltece o grau de moralidade do juiz paulista, enaltece a colaboração da advocacia — rechaçando a noção de que haja natural antagonismo entre advogados e juízes — e celebra o papel do Ministério Público, a cujos quadros pertenceu antes de tornar-se juiz.

Mestre e doutor em Direito pela PUC de São Paulo, o corregedor, no início da carreira, foi assessor de Manuel Pedro Pimentel, então secretário de Segurança do estado. Promovido a procurador de Justiça, foi o último membro do Ministério Público a ingressar no tribunal, no início de 1988, pelos critérios da antiga Constituição.

Aos 66 anos, o desembargador tem entre suas obras mais citadas os livros Abuso de Autoridade, Crimes Contra a Natureza, Ilícito Penal Ambiental e Reparação do Dano.

Leia os principais trechos da entrevista

ConJur — Qual é o papel de uma Corregedoria, hoje?

Gilberto Passos de Freitas — Fiscalizar a atuação da Justiça de primeiro grau. Essa fiscalização abrange juízes, funcionários e cartórios. São 40 mil funcionários, quase dois mil juízes no estado e mais de 500 cartórios extrajudiciais. Nós também atuamos em parceria com juízes da Febem, com presídios e com a vara das execuções criminais.

ConJur — Com a estrutura de hoje, a Corregedoria dá conta de todo esse trabalho?

Gilberto Passos de Freitas — Sim, apesar de todas as dificuldades. Na Corregedoria temos 12 juízes auxiliares que trabalham muito, com sacrifício. São Paulo é um estado gigantesco. Eu despachava agora com um juiz que cuida da questão dos menores. Ele atende não só unidades de menores como a Febem, mas também participa da questão da adoção internacional, que é ligada ao Judiciário.

ConJur — A Corregedoria recebe muitas representações?

Gilberto Passos de Freitas — Neste ano, de janeiro até agora, entraram 51 representações. Treze delas foram arquivadas e 68 estão em andamento, isso porque vieram também do ano passado. É interessante observar que grande parte das representações não é contra a atuação do juiz. É contra a decisão. E nisso não podemos intervir.

ConJur — Ninguém gosta de perder a causa.

Gilberto Passos de Freitas — Às vezes nem recorre, mas reclama. E quanto a isso nada podemos fazer. O juiz decide, ele é soberano.

ConJur — Em quais casos se suspende um juiz?

Gilberto Passos de Freitas — Nós temos desde a advertência até a remoção compulsória. A nossa lei prevê essas penas disciplinares conforme a gravidade.

ConJur — Qual é a punição máxima? E quando ela acontece?

Gilberto Passos de Freitas — A máxima é a perda do cargo. Mas pelo fato de o juiz gozar da garantia da vitaliciedade, somente com uma ação judicial ele pode perder o cargo. Muitas vezes demora, mas tem de ter o devido processo legal. O sujeito perde o cargo em caso de corrupção, por exemplo.

ConJur — De cada dez representações, quantas são da OAB?

Gilberto Passos de Freitas — São poucas.

ConJur — Fora essas representações que tratam da atividade jurisdicional, que outras questões chegam à Corregedoria?

Gilberto Passos de Freitas — Muitas vezes a questão é pequena. Já vi reclamação sobre audiência que estava marcada para as 13h e foi feita às 15h. A pessoa teve de esperar um pouco e reclamou. Tem até alguma questão de tratamento, casos de o juiz ter sido mais ríspido. Mas não sai muito disso. As coisas mais graves são apuradas.


ConJur — Poderíamos dizer, então, que o índice de moralidade do juiz paulista é alto?

Gilberto Passos de Freitas — Sim.

ConJur — Quanto ao aspecto da produtividade, o desafio do Judiciário paulista é maior, pelo tamanho. Isso exige mais dos juízes?

Gilberto Passos de Freitas — Eu faço uma análise densa. A maior queixa contra o Judiciário é a morosidade. Em primeiro lugar, a nossa legislação processual precisava ser alterada em alguns aspectos. Em segundo lugar, depois de 1988 houve a abertura dos juizados — que eu acho acertadíssima — que deu a oportunidade de todo o cidadão ter acesso à Justiça. Mas o Judiciário não estava aparelhado para isso. Há alguns dias, um colega de Santo Amaro me disse que em menos de dois meses entraram 41 mil ações ligadas à Telefônica no Juizado Especial.

ConJur — Já há juízes exclusivos para os Juizados?

Gilberto Passos de Freitas — Sim, desde a administração que se encerrou em dezembro. O TJ paulista transformou varas que tinham sido criadas por lei em varas do Juizado. Isso foi um grande passo, porque a especialização tem surtido efeitos magníficos.

ConJur — Faz parte da sua função ou é um projeto seu percorrer outras comarcas?

Gilberto Passos de Freitas — Está na função fiscalizadora da Corregedoria. Em um mês na Corregedoria, já fui a várias comarcas. Fui conversar com os juízes, sentir o problema e ouvir sugestões para serem implantadas em outras comarcas e varas. E sinto boa receptividade nessas visitas. Tem as visitas correcionais, quando já há uma representação sobre um caso mais grave ou o comunicado da ocorrência de um fato. Essas são as correições extraordinárias. E tem as correições ordinárias, sobre as quais fizemos um plano para o ano todo.

ConJur — Quantas visitas estão previstas?

Gilberto Passos de Freitas — Uma comarca por mês até o fim do ano, fora as extraordinárias quando se faça necessário. Estamos adotando um outro método: nas correições, vamos com a equipe fiscalizar o trabalho, ver como está a comarca, o prédio e condições gerais. Tem que ter essa parte. Vemos alguns prédios em péssima situação, o juiz trabalhando em condições ruins.

ConJur — É possível adotar medidas no sentido de eventualmente socorrer uma vara que está mais sobrecarregada?

Gilberto Passos de Freitas — Essa é uma das nossas metas. Vou dar um exemplo. Uma vara cível da capital, além de todos os processos que recebe, ganhou duas falências: a das Fazendas Boi Gordo e a do Consórcio Garavelo. Só o processo da Boi Gordo já está com quase mil volumes. O juiz tem que despachar um por um, os pedidos de restituição, de apreensão, entre outras coisas. Fizemos uma proposta e o presidente designou um juiz para atuar só nessa falência.

ConJur — Quem ficou com o caso das Fazendas Boi Gordo?

Gilberto Passos de Freitas — Paulo Furtado, juiz do Jabaquara [bairro da Zona Sul da capital paulista] especializado em falências.

ConJur — Mesmo assumindo a Corregedoria, o senhor tem de continuar fazendo seu trabalho de desembargador. O senhor acha que isso deveria mudar?

Gilberto Passos de Freitas — Agora não recebo mais processos. Estou apenas com aqueles que me foram distribuídos anteriormente e também participo dos julgamentos. Mas, como relator, eu não recebo mais. Às vezes pode ficar mais sacrificado, mas eu acho que é importante participar.

ConJur — Quais são as principais mudanças do Judiciário paulista do tempo em que o senhor atuava no Ministério Público para os dias de hoje?

Gilberto Passos de Freitas — Eu vim para cá em 1988. No tribunal havia 36 desembargadores. Hoje são 360. As ações eram outras, os crimes eram outros. Outro dia eu estava conversando com um colega e lembrei que quando eu comecei a carreira, a criminalidade não era assim violenta e a lei era rigorosíssima. Hoje inverteu. Nós vivemos numa comunidade violenta e com a lei mais atenuada.

ConJur — Os juízes não escapam, como toda a sociedade, do quadro de violência. E existe até um motivo adicional para eles serem alvos preferenciais, já que colocam os criminosos na cadeia. Como é que a Corregedoria vê isso e o que ela pode fazer para proteger os juízes?

Gilberto Passos de Freitas — Vemos a situação não só com relação aos juízes, mas com relação a toda a sociedade. No dia-a-dia vemos quantos policiais são mortos apenas porque os bandidos descobriram que eram policiais. Chocam notícias como a do nosso colega de Pinheiros [João Carlos Sá Moreira de Oliveira, que foi baleado durante um assalto]. E a Corregedoria procura dar todo o apoio, mas a questão é a segurança em geral. Há duas semanas, um colega do tribunal estava em Piracicaba e foi assaltado com a família. Por sorte, não viram que ele era desembargador. Depois que o criminoso descobre que a vítima é uma autoridade judiciária ou policial, ele quer matar porque sabe que vai haver uma perseguição maior e que ele vai ser preso. É uma questão delicada.


ConJur — O senhor acredita que isso acabe influenciando no rigor com que os juízes conduzem os casos criminais?

Gilberto Passos de Freitas — Em princípio não. Eu conheço tantos casos de juízes que sofreram violência maior. Eu já fui assaltado, mas graças a Deus nada de maior gravidade. A gente separa e julga o que está no processo.

ConJur — Em outros estados há muitos juízes fazendo cursos de tiro. Aqui em São Paulo existe isso também?

Gilberto Passos de Freitas — Só fazem o curso aqueles que gostam de atirar por esporte. Outro dia até me falaram sobre o curso. Eu respondi: “Eu não vou atirar”. Tenho uma arma em casa que é lembrança de meu pai, mas está guardada. Não tenho interesse. Isso é para quem gosta. O bandido já vem predisposto a matar. Se eu estivesse com um revólver, não sei se teria coragem de usar.

ConJur — A AMB divulgou recentemente uma pesquisa feita entre juízes. O trabalho foi idealizado pela professora Maria Tereza Sadek. Uma parte da pesquisa trazia a opinião dos juízes sobre a independência do STF. Qual a sua opinião sobre o tema?

Gilberto Passos de Freitas — Eu entendo que o Supremo é independente. Não vamos citar nomes, mas vemos quantos ministros foram nomeados e as suas decisões. Às vezes comenta-se que o processo foi de um jeito, mas não se conhece o processo. E quando vão ver, a decisão estava corretíssima. Não acho que falta independência.

ConJur — O senhor concorda com a forma de escolha dos ministros?

Gilberto Passos de Freitas — Acho que deve o presidente indicar, buscando uma pessoa de conduta ilibada e notável saber jurídico. Há um projeto do senador Jefferson Peres (PDT-AM) no sentido de propor mudanças na forma de escolha, mas não fugiria muito ao atual sistema.

ConJur — Com a saída do ministro Nelson Jobim e a possível saída do ministro Sepúlveda Pertence, o presidente Lula indicaria mais dois nomes ao Supremo. Como ele já indicou cinco, ele se tornaria o presidente eleito de forma direta que mais indicou ministros. O senhor acha que pode existir algum tipo de vantagem para ele ou isso não significa nada?

Gilberto Passos de Freitas — Não significa nada. Os ministros são homens absurdamente independentes, consagrados juristas. Eu entendo que não traz nenhuma vantagem ao presidente.

ConJur — O TJ paulista abre o ano Judiciário com quase 600 mil processos aguardando julgamento. Apesar de ter a missão de cuidar da primeira instância, como a Corregedoria pode ajudar o tribunal a diminuir esta montanha?

Gilberto Passos de Freitas — O famoso resíduo de processos acumulados tem sido motivo de grande preocupação por parte da Presidência. A Corregedoria tem buscado algumas medidas. Por exemplo, o processo que vem de primeiro grau, depois é autuado aqui, ganhando nova capa. A nossa sugestão é que não se faça nova autuação. Põe-se uma tarja com o nome da autuação e pronto. Não precisa outra capa; é uma economia de tempo e dinheiro. Outra sugestão que estamos apresentando para alguns presidentes de câmaras é a adoção de súmulas para os casos repetitivos. Tem também a informatização que o TJ vem desenvolvendo há algum tempo.

ConJur — As decisões do tribunal ainda não chegam online na primeira instância.

Gilberto Passos de Freitas — Com a unificação, tivemos um problema. Foi preciso reformular tudo para padronizar. Estamos discutindo a questão de a Corregedoria ter um controle online em todo o estado. De modo que daqui do gabinete eu vou saber o andamento de um processo lá em Itapeva.

ConJur — E tem dinheiro para isso?

Gilberto Passos de Freitas — Nossas dificuldades são grandes. O tribunal luta com bastante dificuldade, mas parece que alguma coisa nesse sentido está dentro do orçamento.

ConJur — Como entender que o governo do estado seja tão parcimonioso no repasse de verbas para o Judiciário paulista?

Gilberto Passos de Freitas — Essa questão das verbas é uma coisa muito antiga. O orçamento está aquém do que foi pedido. A Presidência está se movimentando para conseguir mais verbas e sanar alguns débitos, inclusive com funcionários, e promover uma modernização. Temos a questão das custas que não se revertem diretamente para nós. Mas tudo isso a nova direção está vendo se sana, porque sem dinheiro não dá para fazer uma série de medidas, como a informatização total, a reforma do prédio, débitos trabalhistas. O Judiciário paulista tem 40 mil funcionários e dois mil juízes. Há uma despesa muito grande para manter toda a estrutura. No Rio de Janeiro, 100% da verba das custas e dos emolumentos vão para eles.

ConJur — Seu antecessor, Antônio Cardinale, mostrou com números que as vantagens funcionais e salariais da Justiça Federal são tantas e tão marcantes, que a justiça estadual está perdendo seus melhores quadros.


Gilberto Passos de Freitas — Isso é muito preocupante e entristece. Este ano, duas juízas se exoneraram porque foram aprovadas em concurso para juiz federal. Eu posso afirmar que logo que foi instalada a Justiça Federal houve uma debandada de funcionários que prestaram concurso e agora ocorre o mesmo. E não é só para Justiça Federal. Vão para a Procuradoria da República também.

ConJur — Fora esse risco da qualidade do servidor, há uma demanda fortíssima pela velocidade dos julgamentos, mas parece que não há uma preocupação igual com a qualidade dos julgamentos. O senhor não teme que ao apressar o processo, tenhamos uma redução na qualidade da decisão?

Gilberto Passos de Freitas — Isso é perigoso mesmo. Infelizmente essa cobrança de prazo podem efetivamente prejudicar. O ideal seria que pudéssemos incrementar o Juizado Especial e desafogar a Justiça comum, para que o juiz possa se dedicar mais aos processos, se atualizar, estudar. Além disso, lamentavelmente, hoje temos muitos juízes com problemas de saúde. Eles trabalham aos finais de semana, de noite, em feriados.

ConJur — Como é que o senhor vê a participação da advocacia no tripé da administração da Justiça?

Gilberto Passos de Freitas — Colabora bastante.

ConJur — Não há um antagonismo natural entre o juiz e o advogado?

Gilberto Passos de Freitas — Não. Eu sempre falo do interior, porque a minha carreira foi feita lá. A convivência era muito fácil, porque se conhece todo mundo. Aqui em São Paulo você não conhece nem o juiz, nem seu vizinho. Não dá para ter aquele contato.

ConJur — O senhor concorda com a aposentadoria aos 75 anos?

Gilberto Passos de Freitas — Hoje eu estava conversando com um colega que está excelente. Semana que vem ele faz 70 anos. Eu sugeri que ele participasse da mediação que há nas varas, mas ele está chateado porque a vida inteira dele foi no tribunal. Eu acho que hoje mudou, o homem é mais longevo. Há uns dias atrás quatro se aposentaram. Os quatro estão excelentes, em plena condição de trabalhar e têm vasta experiência. Com a aposentadoria compulsória aos 70 anos, perdemos elementos excelentes que deviam estar atuando.

ConJur — Como é que o senhor vê a atuação do Ministério Público?

Gilberto Passos de Freitas — Eu acho tão importante quanto a OAB. Eu vim do Ministério Público. A Constituição de 88 deu muita força para o MP e ele mudou. Eu sai em 1988. A atuação do Ministério Público nesses novos ramos do Direito, como Direito Ambiental, do Consumidor, é magnífica.

ConJur — Há críticas em relação ao Ministério Público no sentido de ter se entusiasmado muito com os poderes dados a ele pela Constituição de 1988. Uma delas é a de que antes mesmo de formular a denúncia, o MP já crucifica o suspeito em público. Como é que o senhor vê esse tipo de abuso?

Gilberto Passos de Freitas — A Lei Orgânica do Ministério Público estabelece que entrevista só pode ser concedida com autorização do corregedor-geral. Infelizmente, às vezes, ocorre algum abuso porque antes de instaurada a ação penal a imprensa já a publicou. Pelas notícias que tenho, em alguns casos, o MP tem tomado medidas para coibir isso, que não passa de um abuso.

ConJur — Como é que o senhor vê a questão do poder investigatório do MP na área criminal?

Gilberto Passos de Freitas — De uma maneira bem simples. Eu acho que o Ministério Público tem legitimidade, porque ele é o titular da ação penal. Ele pode fazer investigação. Tem um aspecto interessante: numa Ação Civil Pública, ele pode instaurar um inquérito civil, investigar, colher toda a prova. Vamos supor que o MP diga que ali tem um crime. Ora, ele denuncia com base naquilo.

ConJur — Assim ele não fica com papéis acumulados?

Gilberto Passos de Freitas — Não, porque ele é o titular da ação.

ConJur — A defesa não fica em desvantagem?

Gilberto Passos de Freitas — Não, porque num inquérito policial não existe o contraditório. Desde que tenha algum elemento, ele pode denunciar. No inquérito civil é que pode ouvir testemunha, fazer perícia e outras coisas. Não vejo duplo papel. Ele é o órgão da acusação.

ConJur — O juiz também poderia investigar?

Gilberto Passos de Freitas — Não. O juiz não é parte, ele vai julgar.

ConJur — No caso do MP, a mesma pessoa que está colhendo as provas é a que vai formular a acusação.

Gilberto Passos de Freitas — Se ele pode colher as provas, se a lei da Ação Civil Pública, no inquérito civil, dá legitimidade para ele colher a prova e propor a ação, na ação penal, ele pode oferecer denúncia com base em inquérito policial ou qualquer papel ou informação. Ele é parte. O Ministério Público pode acompanhar um inquérito policial. Isso está na lei. Enquanto o delegado está apurando os fatos, ele está do lado, orientando. Terminou o inquérito, ele recebe o inquérito e oferece a denúncia.


ConJur — A polícia tem regras para o inquérito. O integrante do Ministério Público não tem. O procurador, por dever de ofício, trabalha pela condenação. Não há distorção na coleta de provas e no processo?

Gilberto Passos de Freitas — Quando um promotor se metia a delegado, um desembargador costumava falar que juiz é juiz, promotor é promotor e delegado é delegado. Se o juiz quer dar uma de delegado, sai bobagem. Quando o delegado quer dar uma de juiz também não funciona. O promotor recebe e, às vezes, pode até fazer alguma investigação, mas não tem o papel de investigador. Tem que separar isso. Na minha opinião, se o Ministério Público for autor da ação penal, ele pode colher as provas.

ConJur — Como o senhor vê o advento do Conselho Nacional de Justiça?

Gilberto Passos de Freitas — Temos notícia de que em alguns estados do Brasil havia necessidade de um controle. Fiquei sabendo recentemente que em um estado do Norte não havia concurso para funcionários. O juiz nomeava quem ele queria. O CNJ é necessário. É interessante que quando se fala em nepotismo, ninguém comenta que nós temos uma lei aqui em São Paulo com mais de dez anos que proíbe nepotismo. Tem algumas questões que precisam ser repensadas no CNJ. O Conselho foi criado como uma instância de recurso. Mas é importante notar que a lei prevê o prazo de um ano para revisão de uma decisão administrativa. Depois disso, não se reabre a discussão. Se a parte sofre uma penalidade aqui ela pode ir ao CNJ pedir a reversão da punição.

ConJur — E quanto aos demais aspectos do CNJ?

Gilberto Passos de Freitas — Algumas questões são supérfluas, por exemplo, obrigar a residir na comarca. Isso já está na nossa Lei Orgânica. Desde sempre. Algumas coisas que estão na Emenda Constitucional 45 já eram observadas aqui em São Paulo. Houve também a distribuição imediata de processos, mas aqui isso tem de ser visto de uma outra maneira, porque aqui tudo é gigantesco. Nós temos 600 mil recursos. E o mesmo tratamento dado a um outro estado que tem mil processos por ano foi dado aqui.

ConJur — Um levantamento feito pela Consultor Jurídico identificou que das ADIs apresentadas contra leis estaduais paulistas, em 70% dos casos se constata a inconstitucionalidade dessas leis. Como é que o senhor analisa o aspecto da capacitação do legislador paulista?

Gilberto Passos de Freitas — Primeiro gostaria de falar do Legislativo no âmbito municipal. O que eu tenho observado, e já conversei com vereadores do interior, é o surpreendente número de ADIs procedentes. Na maioria dos casos, as leis são políticas: “proponho que maior de 50 anos fique isento de pagar IPTU”. São leis eleitoreiras. Sob o aspecto do estado e da assembléia, pouquíssimos casos ocorreram.

ConJur — O exame técnico para ingresso na magistratura é ultra-rigoroso e apenas 2% dos inscritos são aprovados. E, muitas vezes, um juiz é melhor ou pior por causa da vocação, que nos parece mais importante que o preparo técnico. Mas o vitaliciamento, onde se verifica a vocação, abençoa 100% dos “candidatos”. Como o senhor vê essa questão?

Gilberto Passos de Freitas — Discute-se isso há muito tempo. Porque hoje, em primeiro lugar, verificamos a parte técnica. Essa parte da vocação é por meio de informações. É feita uma investigação e muitas vezes fica difícil obter dados a esse respeito.

ConJur — De forma geral, o entendimento que se tem é o de que o juiz não pode se abrir para a imprensa. Ele só deve falar nos autos. O juiz não deve se comunicar com a sociedade?

Gilberto Passos de Freitas — O juiz tem que se comunicar. Mas em caso que está julgando ou vai julgar ele não deve manifestar opinião. Eu acho certo, porque senão amanhã eu vou julgar e já estou até impedido porque sou contra determinada coisa sobre a qual me manifestei. Um comentário vai, mas não sobre um caso concreto.

ConJur — Num contexto em que a sociedade não percebe o Judiciário, não é papel do juiz se comunicar melhor com a população?

Gilberto Passos de Freitas — Eu conversava esses dias com o presidente [desembargador Celso Limongi] e veio esse assunto. Vamos fazer uma orientação para o juiz não falar sobre o fato, porque o advogado vai falar que ele está pré-julgando. Isso é vedado. Temos um departamento de comunicação que fornece notícias à sociedade.

ConJur — O senhor é a favor da divulgação das decisões?

Gilberto Passos de Freitas — Sou. Isso é imprescindível e a Constituição prevê. O que o juiz não pode é se manifestar sobre o fato que ele está julgando.

ConJur — Esclarecer, explicar melhor as decisões também ajudaria, não?

Gilberto Passos de Freitas — A minha filha viu outro dia uma notícia no jornal e me disse: “Pai, que coisa que o tribunal fez!” E eu perguntei: “Você conhece o processo?” Ela respondeu: “Não”. Isso é que eu acho importante no papel da comunicação. Nem todos da imprensa conhecem os trâmites judiciais e falam coisas que não levam ao cidadão o que realmente ocorreu. Vejo jornalistas até consagrados falarem, por exemplo, que o juiz deu parecer, ou que o promotor decidiu. Isso é desinformar.

ConJur — O senhor pretende dar um passo no sentido da transparência e divulgação dos atos da Corregedoria?

Gilberto Passos de Freitas — Sim. Os julgamentos são abertos, a não ser que for prejudicar a vítima ou o réu. Mas é preciso dar toda a visibilidade e comunicar o fato. As pessoas precisam saber o motivo das decisões. Isso é bom até para acabar com a idéia de que a representação muitas vezes morre na Corregedoria sem ao menos ser apreciada.

ConJur — Não só o TJ paulista, mas o Judiciário de uma maneira geral projeta uma imagem de certa arrogância. De quem não precisa dar satisfação a ninguém.

Gilberto Passos de Freitas — Sim, mas de uns tempos para cá isso tem mudado. Na Corregedoria do Brasil Império as ordenações do reino eram punir severamente. O corregedor podia decretar prisão e tudo era em segredo. Eram outros tempos, mas isso mudou.

ConJur — As instituições tradicionalmente sempre serviram para proteger o poder?

Gilberto Passos de Freitas — Isso, felizmente, também está mudando. Da Constituição de 88 para cá já há uma mudança que abriu bastante o Judiciário.

ConJur — O senhor é uma pessoa bastante compreensiva, como podemos ver. O senhor não vê nem mesmo indisposição do Executivo paulista em relação ao Judiciário. O senhor não é muito bonzinho para ser corregedor?

Gilberto Passos de Freitas — Lembra aquela frase do Guevara: “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”? Pois então. Não é preciso cara feia nem falar alto para colocar ordem na casa.

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