Repúdio republicano

Nação não pode suportar Judiciário que priorize governabilidade

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8 de fevereiro de 2006, 16h33

Em artigo intitulado “Chuva no molhado – Interpelação a Nelson Jobim é oportuna, mas inócua”, publicado na revista Consultor Jurídico no dia 2 de fevereiro último, seu autor, Cláudio Weber Abramo, diretor executivo da Transparência Brasil (organização dedicada ao combate à corrupção no país), insiste na afirmação destacada no título.

Como argumento principal, sustenta que a situação criada pelo presidente do STF não terá solução apenas com sua saída do tribunal, mas somente apresentará conseqüência prática se lhe for impedida qualquer veleidade eleitoral, desdobramento que obviamente estaria fora do âmbito da interpelação judicial formulada perante o STF. Aliás, já por isso, inusitada, não se tendo notícia anterior de interpelação de ministro do Supremo, muito menos de seu presidente, na própria corte onde atua.

Lamentavelmente, devo discordar do pensamento formulado pelo ilustre autor daquele artigo, mesmo ressaltando que a divergência é mais de forma que de fundo, razão por que me animo a convidar aquele articulista a uma reflexão sobre os conceitos ali emitidos.

Com todo o respeito, o equívoco já começa no pórtico do artigo, diante do subtítulo a ele atribuído, que leva seu autor, por inadvertência possivelmente decorrente de limitação do tempo para entrega do trabalho, a engalfinhar-se com a semântica como, para evitar subjetivismo interpretativo, se verifica por uma rápida visita ao Aurélio – Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira, 1ª edição (14ª reimpressão).

Com efeito, ali se lê que oportuno (do latim, opportunu) significa “que vem a tempo, a propósito, ou quando convém; apropriado” (pág. 1.002). Já inócuo (innocuu, no latim) expressa, em contrapartida, “que não faz dano; inocente, inofensivo” (pág. 768).

Como facilmente se concluirá, nada que seja verdadeiramente oportuno pode se mostrar inócuo, não sendo a inocuidade, por isso mesmo, compatível com o sentido de oportunidade. Os significados — a partir dos próprios significantes de origem — se repelem mutuamente.

Aliás, ainda no terreno da semântica, a questão relativa à duplicidade de personalidades e de papéis em que se enrola o ministro Jobim, buscando incorporar ao mesmo tempo o exercício da magistratura com as atividades de político em campanha, melhor responde à sua correspondência com os termos integridade (integritate), como qualidade do íntegro, inteireza, retidão, imparcialidade (pág. 773, Aurélio) e defraudação (defraudatione), esta última como o ato ou efeito de defraudar; espoliação fraudulenta; defraudamento, fraude (pág. 426).

Também se equivoca o artigo aqui comentado ao estabelecer a idéia de que a lei não proíbe a candidatura ou pré-candidatura em movimento. A esse respeito, são claras as vedações incluídas no artigo 95, parágrafo único, III, CF, e no artigo 26, II, “c”, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, de caráter absoluto quanto ao exercício de atividade político-partidária, diante de sua total incompatibilidade com a natureza da função jurisdicional.

De mais a mais, como salientado na interpelação, qualquer pessoa com um mínimo de bom-senso percebe essa incompatibilidade, já que, em suas atividades funcionais, deve o juiz pairar acima de toda e qualquer disputa pública de natureza político-partidária que possa comprometer sua isenção no julgamento das causas a ele submetidas, principalmente quando se trata de um membro da Suprema Corte, onde desembocam as questões de maior repercussão política.

Não por outra razão, o jornalista Augusto Nunes, na brilhante coluna “Coisas da Política” (Jornal do Brasil) de 2 de fevereiro, intitulou-a “Devolve a toga, companheiro”, obtendo larga repercussão facilmente medida pela explosão da seção “Cartas ao Editor” dos dias subseqüentes.

Também nessa linha, veiculou o jornal O Estado de S. Paulo, do último dia 4 de fevereiro, editorial sob o título (auto-explicativo) “Interpelação com pé e cabeça”, onde destaca como ponto central da interpelação de Jobim a clara demonstração do risco de comprometimento da credibilidade do Supremo, assinalando que a grave acusação de postura de subserviência ao Executivo também está embasada numa exaustiva enumeração dos pedidos de vista que Jobim formulou em ações diretas de inconstitucionalidade de interesse do governo, mantendo-as engavetadas por vários anos e impedindo-as de serem votadas.

Finalmente, ainda quanto à repercussão do ajuizamento da medida na imprensa, cabe um registro de sua veiculação na revista Veja de 8 de fevereiro, onde a matéria “O melancólico Jobim” assinala em destaque, sobre fotografia do abraço trocado entre o presidente Lula e Jobim na solenidade de abertura do ano do Judiciário, que “Ministro debocha das instituições ao tentar, a um só tempo, agradar ao governo e virar candidato desse mesmo governo” (pág. 42).

Na mesma matéria, se refere que “A dupla militância de Jobim é um soco no estômago da liturgia que se espera do mais alto magistrado do país. Ao agir assim, o presidente do STF, que deveria ser o maior guardião da Constituição, é o primeiro a pisoteá-la. Seu comportamento é um deboche às instituições nacionais e uma afronta à separação dos poderes da República, além de macular a liturgia do cargo que ocupa e ofender as normas previstas no próprio estatuto da magistratura, que exige a completa neutralidade política de um juiz — princípio que Jobim mandou às favas.”

E referindo-se expressamente à interpelação em discussão: “Na semana passada, um grupo de juristas entrou com uma interpelação judicial no STF para que, em cinco dias, Jobim responda se é ou não candidato nas próximas eleições. Se a resposta for sim, como se suspeita, os juristas querem que ele renuncie ao cargo de ministro do STF, sob pena de ser denunciado por crime de responsabilidade”. (pág. 43).

Não fosse bastante, no fechamento da edição de Veja, artigo de Roberto Pompeu de Toledo registra, referindo-se ao mesmo personagem, que “Desde o começo do escândalo do mensalão, ele tem primado pelas manobras que tentam ajeitar o Supremo ao gosto do governo. Ao ex-ministro José Dirceu, por exemplo, tentou ajudar de diversos modos e em diversas ocasiões. A mais vistosa ocorreu durante o julgamento da tese de que Dirceu não poderia ser submetido a processo de cassação na Câmara porque, à época da quebra de decoro de que o acusavam, era ministro de Estado. Quando o ministro Ayres de Britto defendeu que, com mais razão ainda, por estar no cargo de ministro, um deputado deveria se comportar com decoro, Jobim cortou: ‘Essa é uma leitura udenista da questão. E foi o udenismo que levou ao suicídio de Vargas”. Em vão se procurará o que faziam o udenismo e o suicídio de Vargas num arrazoado que se deveria tecer à luz das razões constitucionais. Jobim, cada vez mais nervoso, meteu-se ainda a provocar o ministro Gilmar Mendes. O Supremo, por artes de seu presidente, viveu um dia de bate-boca de botequim… Atribui-se a Jobim o desejo de ser o vice de Lula. Essa seria a prioridade, mas, se não der, também aceitaria ser o vice de José Serra. Se ainda não der, não descartaria o governo do Rio Grande do Sul nem quem sabe uma vaga no Senado ou na Câmara. A flexibilidade ideológica só não é maior do que a disponibilidade para diferentes cargos… No mesmo dia, chegava ao Supremo, assinada por 36 personalidades, entre as quais o jurista paulista Goffredo da Silva Telles e o Arcebispo de Mariana, dom Luciano Mendes de Almeida, uma interpelação requerendo que Jobim declare se é ou não candidato. Em caso positivo, que ele renuncie imediatamente, sob pena de sofrer processo de impeachment. Não se tem notícia de um ministro do Supremo submetido a constrangimento parecido” (pág. 114).

Em conclusão, a interpelação em curso no STF — disponível para consulta na Consultor Jurídico — certamente já produziu efeitos apreciáveis, quando menos o de criar para o interpelado e para aqueles que buscam sua trilha tormentosa e, sobretudo, inconstitucional de doublé de juiz e político em campanha, um constrangimento de dimensões quase tão vertiginosas quanto o daquele a que sua conduta degradante e defraudadora da Constituição impôs ao país.

Em temporada de permanentes escândalos que tanto têm desacreditado o Executivo e o Legislativo, a nação não pode suportar mais esta afronta de um Judiciário com militância partidária e que priorize a garantia da governabilidade em relação à sua função primordial de proteger a intangibilidade da Constituição.

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