Violência doméstica

Agressão reiterada contra filho é crime de tortura

Autor

7 de fevereiro de 2006, 17h45

Pai que reiteradamente agride, queima com cigarro, ameaça de morte, causando ao filho intenso sofrimento físico, moral e psicológico, pratica crime de tortura e não de maus tratos. O entendimento é da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que condenou um homem a cinco anos e 10 meses de reclusão, em regime inicial fechado por agredir freqüentemente a filha de 3 anos.

O Ministério Público apresentou a denúncia e pediu a condenação por tortura. Segundo a relatora do recurso, desembargadora Elba Aparecida Nicolli Bastos, “maus tratos, conforme definição do artigo 136 do Código Penal, é quando o agente se excede nos meios de correção, não se verificando quando a agressão é gratuita”.

A desembargadora entendeu que a Lei 9.455/97, que define os crimes de tortura, revogou o artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, dando tratamento mais rigoroso à tortura, atendendo à disposição constitucional de proteção à criança.

Segundo a denúncia, de 1999 a 2003 o pai, residente em Porto Lucena, costumava queimar a filha com ponta acesa de cigarro, golepeá-la no rosto e agredi-la fisicamente, causando-lhe intenso sofrimento físico e mental. Em outra situação, ameaçou matá-la com uma faca.

“Suficientemente comprovado que o réu praticou o delito de tortura contra a vítima, pela prova testemunhal produzida, presente o dolo, evidenciada a intenção de causar sofrimento físico, psicológico na pequena, sua filha, a quem tinha obrigação de proteger. A alegada embriaguez não o isenta, porque voluntária, negava-se a admitir o alcoolismo”, afirmou a desembargadora.

Leia a íntegra da decisão:

TORTURA E MAUS TRATOS – DISTINÇÃO INFLIÇÃO DE SOFRIMENTO DESNECESSÁRIO – TORTURA NO ECA – ARTIGO 233 – LEI 9.455 ART 1º II, §4º- DESCRIÇÃO NA DENÚNCIA – PROVA.

A Lei 9.455/97 revogou o antigo 233 da Lei 8.069/90 – ECA dando tratamento mais rigoroso à tortura, atendendo a disposição constitucional de proteção à criança (artigo 227), o necessário respeito aos direitos humanos e ao sentimento de decência vigente na sociedade repugnando a inflição de tormentos e suplícios na criança causando sofrimento psíquico moral e físico.

Quem sem qualquer motivo queima com cigarro, reiteradamente, filho na mais tenra idade (03 anos) sob sua autoridade em razão do pátrio poder, ameaça de morte encostando faca na sua barriga e a agride sempre que embriagado em qualquer parte do corpo causando-lhe intenso sofrimento físico, moral e psicológico pratica tortura e não maus tratos.

Maus tratos, conforme definição do artigo 136 do CP, é quando o agente se excede nos meios de correção não se verificando quando a agressão é gratuita, comprazendo-se com o pânico demonstrado pela pequena que continua a temer a presença do pai, inserindo-se no artigo 1º da Lei 9455/97 que substituiu o artigo 233 do ECA.

PARCIALMENTE PROVIDO O APELO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA CONDENAR O RÉU WILSON ATALIBIO WESCHELDER POR INFRAÇÃO AO ART. 1º, § 4º, Lei n.º 9.455/97, À PENA DE 05 ANOS E 10 MESES DE RECLUSÃO, EM REGIME INICIAL FECHADO, COM RELAÇÃO AO PRIMEIRO FATO, MANTIDA A ABSOLVIÇÃO PELOS SEGUNDO E TERCEIRO FATOS, COM BASE NO ART. 386, INC. VI, DO CPP.

Apelação Crime: Terceira Câmara Criminal

Nº 70012316352:Comarca de Santo Cristo

MINISTERIO PúBLICO: APELANTE

WILSON ATALIBIO WESCHENFELDER: APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, dar provimento em parte ao apelo do Ministério Público para condenar o réu Wilson Atalibio Weschelder por infração ao art. 1º, § 4º, lei n.º 9.455/97, à pena de 05 anos e 10 meses de reclusão, em regime inicial fechado, com relação ao primeiro fato, mantida a absolvição pelos segundo e terceiro fatos, com base no art. 386, inc. VI, do CPP.

Determinar a expedição de mandado de prisão contra o réu.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores Des. Newton Brasil de Leão (Presidente e Revisor) e Des. José Antônio Hirt Preiss.

Porto Alegre, 01 de setembro de 2005.

DESA. ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS,

Relatora.

RELATÓRIO

Desa. Elba Aparecida Nicolli Bastos (RELATORA):

WILSON ATALÍBIO WESCHENFELDER foi denunciado pelo Ministério Público da Comarca de Santo Cristo, como incurso nas sanções do art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, c/c § 4º, II do mesmo art. de lei, por diversas vezes, na forma do art. 69, caput, do CP, pela prática dos seguintes fatos delituosos:

I) PRATICADOS CONTRA A VÍTIMA NEIVA BECKER WESCHENFELDER: Nos anos de 1.999, 2.00, 2.001, 2.002 e 2.003, em diversas oportunidades, em datas e horários indeterminados, na localidade denominada Linha Secção “F”, na Cidade de Porto Lucena/RS, o denunciado WILSON ATALÍBIO WESCHENFELDER submeteu sua filha Neiva Becker Weschenfelder, criança atualmente com 03 (três) anos de idade, com emprego de violência e grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicar-lhe castigo pessoal. Em três das mencionadas oportunidades, o acusado, movido pela intenção de fazer a vítima sofrer, queimou o corpo dela com a ponta acessa de um cigarro, atingindo-a, em duas destas ocasiões, no rosto. Outras inúmeras vezes, com idêntica finalidade, agrediu reiterada e violentamente a filha Neiva Becker Weschenfelder com o uso de força física. Em outra situação, também com o objetivo de causar sofrimento físico e mental á vítima, ameaçou matá-la utilizando-se de uma faca.


II) PRATICADOS CONTRA A VÍTIMA NELCI BECKER WESCHENFELDER: Nos anos de 2.001, 2.002 e 2.003, em diversas oportunidades, em datas e horários indeterminados, na localidade denominada Linha Secção “F”, na Cidade de Porto Lucena/RS, o denunciado WILSON ATALÍBIO WESCHENFELDER submeteu seu filho Nelci Becker Weschenfelder, criança atualmente com 02 (dois) anos de idade, com o emprego de violência e grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicar-lhe castigo pessoal. Nas mencionadas oportunidades, o acusado, movido pela intenção de fazer a vítima sofrer, agrediu-a reiterada e violentamente com o uso de força física.

III) PARTICADOS CONTRA A V ÍTIMA NÉRI SEGER: Nos anos de 2.001, 2.002 e 2.003, em diversas oportunidades, em datas e horários indeterminados, na localidade denominada Linha Secção “F”, na Cidade de Porto Lucena/RS, o denunciado WILSON ATALÍBIO WESCHENFELDER submeteu seu enteado Nério Seger, adolescente atualmente com 12 (doze) anos de idade, com o emprego de violência e grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicar-lhe castigo pessoal. Nas mencionadas oportunidades, o acusado, movido pela intenção de fazer a vítima sofrer, agrediu-a reiterada e violentamente com o uso de força física.

A denúncia foi recebida em 09 de julho de 2003, oportunidade em que foi decretada a prisão preventiva do acusado (fls. 40/43).

O réu foi interrogado (fls. 57/verso), e através de seu defensor constituído apresentou defesa prévia, oportunidade em que arrolou testemunhas (fls. 58/61).

Na instrução, foram ouvidas 03 (três) testemunhas da acusação (fls. 74/76; 77/78; 79), 03 (três) testemunhas da defesa (fls. 80; 81; 82), e 02 (duas) das vítimas (fls. 92; 94).

Foi feita uma avaliação psicológica das vítimas menores (fl. 103). No prazo do art. 499 do CPP, o Ministério Público requereu a atualização dos antecedentes policiais e criminais do denunciado (fl. 105), e a defesa postulou pela realização de uma avaliação psicológica, bem como médica, no denunciado, e, após, a determinação da perícia, a abertura à defesa de nova vista aos autos, para apresentação de quesitos ao Sr. Perito (fls. 136/137). O agente ministerial opinou pelo indeferimento do pedido, eis que não se tem nos autos notícias de que o réu seja acometido de doença mental (fl. 139). O pleito foi indeferido pela MM. Magistrada (fl. 140).

Em alegações finais, o Ministério Público requereu a procedência da ação penal e a conseqüente condenação do réu como incurso no crime do art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, c/c § 4º, II, do mesmo artigo de lei (fls. 141/150), sendo que a defesa, por sua vez, postulou pela improcedência da denúncia, com a sua conseqüente absolvição, ou, alternativamente, na hipótese de condenação, a desclassificação do delito de tortura para o crime de maus tratos, capitulado no art. 136 do CP (fls. 151/157).

No dia 25 de fevereiro de 2004, sobreveio sentença que julgou parcialmente procedente a ação penal para desclassificar o delito imputado ao réu Wilson Atalíbio Weschenfelder, no primeiro fato descrito na denúncia, para o delito previsto no art. 136 do CP. Considerando que a pena prevista para o delito de maus tratos não é superior a um ano, com o trânsito em julgado da decisão, determinou a remessa dos autos ao Juizado Especial Criminal, competente para apreciar o delito residual, e absolver o acusado da imputação descrita no segundo e terceiro fatos descritos na denúncia, como incurso nas sanções do art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, c/c § 4º, II, do mesmo artigo de lei, forte no art. 386, VI, do CPP. Em razão da desclassificação, ordenou a soltura do réu. (fls. 159/172).

Irresignado, o órgão ministerial interpôs recurso de apelação (fl. 179).

O apelo foi recebido (fl. 180).

Em razões, aduz ter restado provada a conduta praticada pelo réu, fato tipificado como crime de tortura. Alega que o apelado não visava quaisquer das finalidades previstas no caput do art. 136 do CP (fls. 181/196).

Foi nomeada defensora dativa para o réu (fl. 213).

Vieram as contra-razões da defesa, no trilho da manutenção do comando sentencial e do não provimento do recurso interposto, uma vez que não há nos autos quaisquer provas suficientes para um juízo condenatória, certo que não há laudo pericial que comprove o alegado, e, eventual prova indireta não existe (fls. 217/220).

Nesta instância, o ilustre Procurador de Justiça, Dr. Luiz Henrique Barbosa de Lima Faria Corrêa, exarou parecer opinando pelo provimento do recurso (fls. 223/225).

Sobreveio julgamento desta Corte que, à unanimidade, deram provimento ao apelo ministerial para desconstituir topicamente a decisão desclassificatória, mantendo a classificação das condutas atribuídas a Wilson Atalíbio Weschenfelder nas lindes do art. 1º, II, § 4º, da Lei n. 9.455/97, devolvendo-se o processo ao Juízo de origem para o exame do mérito (fls. 230/235).


Novamente, foi nomeada nova defensora dativa ao réu (fl. 243).

Em 25 de maio de 2005, foi julgada improcedente a ação penal, para absolver o acusado da imputação descrita no primeiro fato na denúncia, como incurso nas sanções do art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, c/c § 4º, II, do mesmo artigo de lei, forte no art. 386, VI, do CPP (fls. 245/254).

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso do decisum (fl. 256).

A apelação foi recebida (fl. 258).

Em razões, argüi a revogação do veredicto absolutório, eis que comprovada a autoria e a materialidade dos delitos (fls. 259/274).

Vieram as contra-razões da defesa (fls. 275/278).

O nobre Procurador de Justiça, Dr. Luiz Henrique Barbosa Lima Faria Corrêa, opinou pelo provimento do recurso (fls. 282/285).

Após, vieram-me os autos conclusos para julgamento.

É o relatório.

VOTOS

Desa. Elba Aparecida Nicolli Bastos (RELATORA):

WILSON ATALÍBIO WESCHENFELDER foi absolvido das imputações previstas no artigo 1º, inciso II, da Lei n.º 9.455/97, c.c. o § 4º, inciso II, diversas vezes, na forma do art. 69, caput, do Código do Penal, com base no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, conforme se vê da sentença de folhas 245/254.

Inconformado o Ministério Público interpôs apelação, buscando a condenação do acusado, uma vez comprovada a autoria e materialidade dos delitos.

1 – Este processo veio ao Tribunal de Justiça do RS, sob o número 70009918640, por ter a MM. Juíza de Santo Cristo desclassificado a conduta para as linhas do artigo 136, do CP, desconstituída topicamente a decisão desclassificatória que remeteu ao Juizado Especial, mantendo a classificação da conduta no artigo 1º, inciso II, § 4º, da Lei n.º 9.455/97, devolvendo-se para o exame do mérito.

Peço vênia para transcrever a análise dos fatos, sem apreciação do elemento subjetivo, realizada no acórdão 70009918640, julgado em 09 de dezembro de 2004, de minha relatoria, com relação à vítima Neiva, quando da interposição do apelo ministerial, no tocante à desclassificação da conduta para as linhas do artigo 136 do CP:

“O Conselho Tutelar de Santo Cristo, fl. 05, recebeu uma denúncia anônima de que Wilson Weschenfelder, residente na Linha Santa Catarina – Porto Lucena maltratava os filhos pequenos de 04 e 02 anos, também, a esposa Celita Becker e o enteado Néri Seger de 11 anos. A informação é de que ele queimava as crianças com cigarro e agredia psicologicamente os menores. Há comunicação de que a família e a comunidade estavam preocupadas, porque o réu acidentara-se, propositadamente, com o veículo com a família com a intenção de matá-los.

Instaurado inquérito, ouvida Celita, fl. 17, confirmou que o réu quando em estado de embriaguez a agride e também os filhos, uma menina de 03 anos “queimou com cigarro três vezes”. Wilson bate também no enteado Néri de 12 anos, um dia Wilson pegou uma faca para matar a menina. O menor Néri Seger confirmou que por três vezes ele queimou a pequena Neiva; a última vez com um palheiro no olho, outra vez no braço e outra no rosto. Ele pegou Neiva (03 anos) e queria matar, levantou a blusa para dar uma facada”, mas a mãe tirou a faca. O réu teve sua prisão preventiva decretada, fl. 40.

O réu fl. 57 nega a autoria e diz que, “encostou, acidentalmente, o cigarro duas vezes na menina e que as acusações devem-se à sua esposa, com quem discute muito e quer prejudicá-lo”. Evidente que está a justificar-se de agressão a crianças tão pequenas, que certamente não estavam a exigir correção. Neiva tinha 03 anos, quando dos fatos e o outro menor Nelci menos de 02 anos.

Celita o que se lamenta de uma mãe conivente com os suplícios e agressões impostas aos filhos, já voltou a visitar o réu no Presídio (depoimento do filho Néri). Contudo, Celita confirma em juízo fl. 75 que “a partir do ano passado o acusado passou a agredir Nelci e Neiva. Nelci foi uma vez que ele atirou a criança em cima da cama que até achou que o tinha desnucado. A depoente, no entanto, mais adiante no depoimento reconhece que: “que Nelci passou a ser agredido desde que tinha dois meses de idade, quando do depoimento contava 01 ano e 07 meses. Conclui-se que era um bebê quando sofreu as agressões. A filha, em três oportunidades apresentou queimaduras: uma na vista, uma no rosto e outra no braço. O réu lhe disse que foi por descuido. Na pequena Neiva, ele batia pelo menos uma vez por mês; sempre que se embriagava, segundo a mãe, e “batia forte”; Neiva se queixava e, “por diversas vezes tirou a pequena da presença do réu”. Quando bêbado batia também em Néri que era enteado do réu. Uma vez o menino para defender-se jogou uma cadeira em Wilson.

Arremata dizendo que as crianças sofreram com as agressões; tem muito medo de dormir à noite devido o trauma pelas agressões do réu. O réu batia forte em Neiva e, em qualquer lugar.

A Conselheira Tutelar Janice Weber declarou que Celita procurou o Conselho relatando as agressões do réu que culminara por queimar as crianças com pontas de cigarro. As pessoas da Comunidade, foram várias, passaram a telefonar, quando o réu envolveu-se em um delito de trânsito, propositalmente, para tentar matar a família, quando então o Conselho decidiu encaminhar ao Ministério Público, porque a localidade era distante, interior de Porto Lucena.

As testemunhas, fl. 80, 81, 82 são uniformes sobre a embriaguez do réu e as notícias de agressão à mulher e os filhos.

A menina Neiva com quatro anos “confirmou em um depoimento sem qualquer preparação, que o pai a queimava com cigarro, batia com uma vara; não gosta do pai. Néri 12 anos, fl. 94, reitera as agressões do réu a si e sua irmã Neiva. O réu queimou Neiva com um toco de cigarro de duas a três vezes. As agressões eram sem motivo. Confirma que o réu ameaçou Neiva dizendo que ia cortá-la com uma faca. O réu o ameaçava se contasse alguma coisa. Perguntado o menor disse que a mãe está visitando o réu no Presídio”.

O parecer psicológico é esclarecedor: “A menina tem medo de falar, temendo que o pai fique sabendo e volte para prejudicá-los. As crianças não querem que o pai volte.” O pequeno Nelci de 01 anos e 10 meses tem um medo impressionante, tem que estar sempre com a mãe. Segundo ela Wilson só não a matou porque ele interferia, supõe-se que se refira a Néri, 12 anos, e não ao pequeno Nelci que não passava de um bebê.

Tem razão o Ministério Público ao denunciar por Tortura e recorrer da decisão desclassificatória. O delito definido na Lei 9.455/97 revogou o artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente que assim dispunha:

Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância à tortura:

Pena – de 01 a 05 anos de reclusão.

Evidente que a revogação e o enquadramento em crime equiparado a hediondo oferece a medida da proteção ao menor, mormente em tenra idade como o caso de Neiva e Nelci para os quais as agressões praticadas pelo réu não tinham natureza corretiva, conforme se depreende do depoimento de Néri Seger, fl. 94. O menor 12 anos, também sofria as agressões do padrasto: segundo suas declarações “ele batia sem motivo”.

É de perguntar-se que medida de disciplina e correção, conforme a definição do artigo 136 do CP poderia ser necessária a uma criança de 03 anos, uma menina, assustada, cada vez que o pai chegava embriagado “apanhava” com vara (fortemente), conforme diz a mãe e em qualquer parte do corpo. Culminando, por descontar na pequena eventuais frustrações, queimando-a por três vezes voluntariamente, por maldade, a fim de infundir terror na pequena vítima causando-lhe sofrimento físico, moral e psicológico. A mãe conivente, mesmo apanhando do réu, conforme Janice Weber, fl. 77, procura mitigar a conduta abusiva do marido. Ela só tomou providências em denunciar quando ele provocou um acidente, a fim de matar a família, segundo informes da comunidade ao Conselho Tutelar.

O legislador ao substituir o artigo 233 do ECA pelo artigo 1º, II da Lei 9.455/97 o fez para dar um tratamento mais rigoroso a quem tem obrigação de assegurar à criança a saúde, integridade, …dignidade, além de colocá-la ao abrigo da violência e opressão como está no artigo 227 da Constituição Federal.

A família é a primeira responsável pelo cumprimento das disposições constitucionais. O Estado brasileiro introduziu a legislação da Tortura de 1997, aderindo à Convenção de Nova York sobre Direitos da Criança, 1990; Convenção contra a tortura, ONU -1984; Pacto de São José da Costa Rica – OEA – consideram como tortura contra a criança qualquer ato que configura ofensa ao senso comum, à dignidade, a decência e aos direitos humanos.

A tortura, pela sua natureza caracteriza-se pela inflição de suplícios que exasperam na dimensão física, moral e psíquica e projetam-se sobre a criança causando sofrimentos pelo tratamento abusivo, cruel, desnecessário que não se confunde com meros maus tratos. Estes se referem apenas ao excesso de correção e castigos vinculados ao poder disciplinar e orientador dos pais ou responsáveis.

Mas qual a necessidade de corrigirem-se comportamentos de uma criança de três anos, apavorada, insegura pela embriaguez do pai que se traduzia em agressão à mãe e, por fim imotivadamente à criança, queimada por pontas de cigarro, ameaçada de morte com faca e agredida com vara, sem que tivesse dado qualquer motivo à agressão desmesurada do pai.

Discordando da redefinição dada pelo juiz monocrático, nos termos do artigo 383 do CPP que entendeu configurar, em tese conduta do artigo 136§ 3º do CP, maus tratos, delito de menor potencial ofensivo e remeteu o processo ao Juizado Especial Criminal, recorreu o Ministério Público, a fim de que prevaleça a classificação inicial do artigo 1º, II, § 4º da Lei 9.455/97 e o juiz examine o mérito.

Conforme o acima exposto, entendo que tem razão o Ministério Público. As provas recolhidas indicam tratar-se de delito de tortura e não de maus tratos. A tipificação do último tem, exige exacerbação, excesso de meios de correção por pais ou pessoas que tenham menores sob sua guarda e proteção. Não se coaduna com o tipo do artigo 136 o contexto dos autos, neste, não estava o réu corrigindo a pequena, não havia qualquer motivo para os suplícios infligidos, portanto, o tipo denunciado é próprio, devendo a juíza monocrática, assim como o fez com relação às vítimas Nelci (01 ano e 10 meses) e Neri Seger, 12 anos pelos quais absolveu, examinando o mérito, também apreciar quanto à vítima Neiva, valorando o contexto probatório.

Ante o exposto, Provê-se o Apelo do Ministério Público para desconstituir a decisão desclassificatória para o artigo 136 § 3º do CP quanto à vítima Neiva. Deixando por ora de examinar o apelo do Ministério Público com relação à absolvição pelos dois outros fatos, postergando-se a apreciação para após a sentença integral da acusação com relação a fato atribuído que tem como ofendida a menor Neiva”.


Suficientemente comprovado que o réu praticou o delito de tortura contra a vítima Neiva, pela prova testemunhal produzida (Celita, folhas 17 e 75, Neiva, folha 92, Néri, folha 94, parecer psicológico, folha 103), presente o dolo, elemento subjetivo da conduta do artigo 1º, § 4º, da Lei 9.455/97, evidenciada a intenção de causar sofrimento físico, psicológico na pequena Neiva (03 anos), sua filha, a quem tinha obrigação de proteger. A alegada embriaguez não o isenta, porque voluntária, negava-se a admitir o alcoolismo.

Provido o recurso ministerial para condenar o réu WILSON ATALÍBIO WESCHENFELDER, como incurso nas sanções do artigo 1º, § 4º, da Lei n.º 9.455/97.

Passo a individualização da pena ao réu.

Culpabilidade. A conduta merece intensa reprovação. Exigível de um pai se não o trato carinhoso, pelo menos o respeito, configurando covardia inominável a variedade dos atos agressivos, além de batê-la fortemente utilizando uma vara, em qualquer parte do corpo, queimou-a com cigarro em três ocasiões, e ameaçava-a psicologicamente, inclusive, de matá-la com uma faca, chegando a correr atrás para executar o ato. Antecedentes não registra. Conduta social, os autos registram as freqüentes queixas ao Conselho Tutelar, batia na mulher e também em outros filhos. Personalidade a agressividade, autoritarismo, a deliberada atemorização, tornam desfavorável. Motivos não bem esclarecidos, aparentemente sempre que se embriagava descontava na menina suas frustrações. Circunstâncias desfavoráveis, ante a tenra idade, menina, apenas 04 anos de idade, e os recursos para aterrorizá-la, bater com vara, queimar com cigarro, ameaça com faca, provocou um acidente a fim de matar a família, segundo informes da comunidade ao Conselho Tutelar. Conseqüências os traumas são evidentes, conforme nos autos Parecer Psicológico (folha 103), e relato da própria mãe de que as crianças têm muito medo de dormir à noite em conseqüência do trauma. Nada sobre o comportamento das vítimas. Fixo a pena-base em 05 (cinco) anos de reclusão.

Faço incidir, ainda, a causa de aumento prevista no § 4º, por ter sido cometido o delito contra criança, aumentando a pena em 1/6 (um sexto), tornada em definitiva em 05 (cinco) anos e 10 (dez) meses de reclusão. O cumprimento em regime inicial fechado, levando em conta o artigo 1º, § 7º, da Lei n.º 9.455/97. Determino a incapacidade para o exercício do pátrio poder, como efeito da condenação, de acordo com o artigo 92, inciso II, do CP, devendo ser comunicado aos órgãos de Proteção à Criança, ficando responsável a mãe, se voltar a viver com o réu, imediatamente deve ser a menina retirada e entregue a parentes próximos (avós, tios) até a decisão do Juízo da Infância e Adolescência.

Expeça-se mandado de prisão.

2 – Com relação ao 2º e 3º fatos descritos na denúncia, no entanto, não há provas suficientes para condenar o réu pelo delito de tortura.

Com relação ao segundo fato, conforme a denúncia, o réu submeteu o filho Nelci, com dois anos de idade, á época do fato, a intenso sofrimento físico e mental, com emprego de violência e grave ameaça, como forma de aplicar-lhe castigo pessoal.

O réu, em seu interrogatório (folha 57) afirmou que nunca bateu no filho Nelci.

É verdade que Celita Becker Seger (folhas 74/76) no início de suas declarações, informou que o réu batia também em Nelci, no curso dos relatos, no entanto, mais adiante, disse que nunca bateu no menino, afirmou que “a partir do ano passado o acusado passou a agredir também os filhos Nelci e Neiva, bem como a agredir o enteado Néri. O filho Nelci que hoje está com um ano e sete meses passou a ser agredido desde quando tinha dois meses de vida. O réu pegava o filho Nelci e jogava-o no canto da cama. O réu retirava o filho Nelci dos braços da depoente e atirava-o na cama. O réu fez apenas uma vez este ato, depois desse fato não agrediu mais o filho Nelci. O réu nunca bateu no filho Nelci” (folha 75). O contraditório depoimento não permite com absoluta certeza vislumbrar o dolo.

Portanto, pelo relato da testemunha, apenas chega-se à conclusão que o réu atirou uma única vez o menino no canto da cama, não evidenciado que batesse no menino, nem se jogou pra lesioná-lo. Apenas não se condena porque não há provas precisas.

Também a testemunha Néri Seger (folha 94) disse que nunca viu o denunciado agredindo Nelci.

Não há comprovação de que tenha submetido o menino a intenso sofrimento físico e mental, capaz de ensejar a condenação com relação à vítima Nelci pela prática do delito de tortura, nem ao menos por maus tratos, pois não há evidência nos autos que tenha feito com o intuito de corrigir criança de tão pouca idade, a fim de enquadrar a conduta nas linhas do artigo 136 do CP. Mantida a absolvição do réu, com base no artigo 386, VI, do CPP.


3 – No que tange ao terceiro fato, praticado contra a vítima Néri Seger, enteado do réu, segundo a exordial, submeteu o adolescente, atualmente com 12 anos de idade, com emprego de violência e grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental, como forma de aplicar-lhe castigo pessoal.

A prova colhida elementos capazes de ensejar a condenação do réu.

O réu negou a imputação (folha 57).

Celita, mãe da vítima (folha 75) disse que: “quando o réu estava embriagado também agredia o seu enteado Néri. Pegava o enteado e enchia de tapas. Néri tinha que fugir do réu. Uma vez, para se defender, Néri pegou uma cadeira e jogou no réu. O réu agrediu Néri uma três vezes, praticava as agressões apenas quando estava bêbado”.

A vítima Neri, ao prestar declarações em juízo (folha 94), disse: “o seu padrasto quando bebia ficava ‘brabo’ e batia no depoente com as mãos (…) Diz que tem medo do réu. Prefere que o réu não retorne mais para casa (…) O réu lhe ameaçava dizendo que se o depoente contasse alguma coisa ele iria lhe surrar. Diz que o réu lhe dava tapas”.

Como referiu a magistrada sentenciante, com relação a este fato imputado réu a prova também é escassa para condenar o réu pelo delito de tortura, apenas evidenciado que desferiu tapas contra a vítima Neri, por diversas vezes, quando alcoolizado, ocasião em que agredia tod a a família. Contudo, a desclassificação para o delito de maus tratos, esbarra em comprovação de que as agressões tenham exposto a vítima a perigo ou tenha violado a sua integridade. É possível que abusasse dos meios de correção, ou simplesmente agredisse o menor por querer, mas não há uma prova específica para condenar.

Desta forma, com relação ao terceiro fato descrito na denúncia, mantida a absolvição do réu, com base no artigo 386, VI, do CPP.

PARCIALMENTE PROVIDO O APELO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA CONDENAR O RÉU WILSON ATALIBIO WESCHELDER POR INFRAÇÃO AO ART. 1º, § 4º, Lei n.º 9.455/97, À PENA DE 05 ANOS E 10 MESES DE RECLUSÃO, EM REGIME INICIAL FECHADO, COM RELAÇÃO AO PRIMEIRO FATO, MANTIDA A ABSOLVIÇÃO PELOS SEGUNDO E TERCEIRO FATOS, COM BASE NO ART. 386, INC. VI, DO CPP.

Des. Newton Brasil de Leão (PRESIDENTE E REVISOR) – De acordo.

Des. José Antônio Hirt Preiss – De acordo.

DES. NEWTON BRASIL DE LEÃO – Presidente – Apelação Crime nº 70012316352, Comarca de Santo Cristo: “à unanimidade, dar provimento em parte ao apelo do Ministério Público para condenar o réu Wilson Atalibio Weschelder por infração ao art. 1º, § 4º, lei n.º 9.455/97, à pena de 05 anos e 10 meses de reclusão, em regime inicial fechado, com relação ao primeiro fato, mantida a absolvição pelos segundo e terceiro fatos, com base no art. 386, inc. VI, do CPP. Determinar a expedição de mandado de prisão contra o réu.”

Julgador(a) de 1º Grau: MIROSLAVA DO CARMO MENDONCA

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