Parlamento humilhado

Jobim ameaça a harmonia e independência entre os poderes

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4 de fevereiro de 2006, 12h25

A pantomima merece um desfecho um pouco mais dramático. Há muito tempo o lamaçal em que nos afundamos pede um impeachment: o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não dá? Já estou me contentando com o de Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal. Se os senadores respeitarem o Legislativo e tiverem em coragem o que sobra em desfaçatez ao outro, instauram, como lhes compete, um processo por crime de responsabilidade contra aquele que deveria ser a própria encarnação da Justiça.

Eu acuso Jobim de ameaçar a independência e a harmonia entre os Poderes da República, afrontando o artigo 2º da Constituição. E seu papel é zelar por ela, não esbulhá-la. Ele o fez ao atacar, de forma leviana e irresponsável, as CPMIs, instância máxima da investigação do Poder que, por excelência, é expressão da democracia. Já se viram ditaduras com Executivo e sem Judiciário e Legislativo; já se viram ditaduras com Executivo e com Judiciário, mas sem Legislativo; já se viram até mesmo ditaduras com Executivo, Legislativo e Judiciário (esta muito afeita ao coração que bate no peito do preclaro: afinal, Getúlio, Costa e Silva, Médici e Geisel eram seus conterrâneos…). Mas jamais se viu democracia com um Parlamento humilhado e enxovalhado pelo chefe do Judiciário ou por qualquer outro. Eu acuso Jobim de promover o choque entre os Poderes da República.

Eu acuso Jobim de fugir às suas funções e de emitir prejulgamentos de causas que terão no Supremo a sua última morada. Ora, um juiz que prejulga, que fala fora dos autos, que faz proselitismo, desmoraliza-se: assume um dos lados da contenda, chafurda em mesquinharias, avilta-se, manda a Justiça às favas, quebra a balança, arranca a venda dos olhos para ver com as viseiras da paixão política, do interesse pessoal, da carreira. Eu acuso Jobim de não estar servindo ao Supremo Tribunal Federal, mas de estar dele se servindo para a promoção pessoal. Eu acuso Jobim, mas não sou ninguém. Jobim mete o dedo no nariz do Parlamento brasileiro, e ele é o chefe de um dos Poderes da República.

O Senado tem o dever funcional e moral — mais do que isso: tem a obrigação — de votar o impedimento do ministro. Não lhe cabe, por conveniência, covardia ou complacência, esperar que a Excelência renuncie ao posto, migrando ou para a banca privada ou para a carreira política. Ambicionar a Presidência da República, diga-se, metendo-se em articulações do PMDB, dá mostra de seu delírio de grandeza.

É um ato compatível com seus juízos estouvados, embora busque afetar a infalibilidade de um Licurgo. Quando empina o nariz, com o rosto grave como um deus, sustentado em mãos infalíveis (a famosa pose: “Eis um homem que pensa”), parece mesmo que vai revisitar o que lhe fora transmitido pelo Oráculo de Delfos, a exemplo do legislador espartano: homem e mito. Uma lenda. Só percebemos que pode ser humanamente falível quando se deixa fotografar com a boca na bomba de chimarrão.

Seu estrelismo combina com a retórica balofa de seus pareceres, embora ele a exercite como se o Altíssimo lhe soprasse aos ouvidos as Tábuas da Lei; é congruente com o ex-constituinte que confessou, sem mesuras, ter redigido à socapa um trecho da Carta. Das duas uma: ou o fez para nos salvar, e só o silêncio obsequioso lhe ficaria bem, ou o fez porque desprezava seus pares e os tinha como escória. Já que ele falou, a dúvida se dissolve.

Mas Jobim sonha mesmo com a Presidência? Sim, mas não agora. O que faz é se oferecer, na prática, como serviçal prestimoso do Executivo: ao mesmo tempo em que achincalha um Poder e desmoraliza o outro, fortalece, obviamente, a posição de Lula, de quem sonha ser vice numa futura composição com o PMDB. E por isso tenta melar o jogo de Anthony Garotinho — sabe que, numa eventual convenção do PMDB, seus partidários não lotariam um Fusca. Mas seu papel é atrapalhar e atuar como cunha na aproximação do partido com o líder petista. Se tudo sair como ele imagina, o Apedeuta se reelege tendo um rábula filistino como vice, que partirá para o jogo solo em 2010.

Patrulha? Que patrulha?

Jobim, ademais, se mostra um grande trapalhão. Quer-se Maquiavel dos Pampas, mas sua extravagância teórica e sua inoperância prática estão mais para o Analista de Bagé. Ele é formado em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Não sei se lhe ensinaram por lá, entre 1964 e 1968, que um discurso deve ser decoroso e verossímil; por decoroso, deve obedecer a certas regras que não escandalizem a platéia; por verossímil, deve fazer sentido e buscar, ao menos, ser uma imitação da verdade. Se, com o decoro e a verossimilhança, vier também a verdade, ela mesma, tanto melhor para um advogado.

É indecoroso e inverossímil que Jobim venha dizer que não aceita “patrulha”, como se estivesse sob fogo cerrado, e seus inimigos fossem as bestas-feras das ruas, clamando por linchamentos públicos, enquanto lhe caberia, cavaleiro solitário, zelar pela Justiça e pelo Direito. Pior: tal patrulha é uma mentira. Ora, Paulo Okamotto, ex-tesoureiro do PT, diz ter quitado, com dinheiro do próprio bolso, uma dívida do atual presidente da República com o seu partido. O suposto ex-devedor nem mesmo a reconhece. A legenda diz que ela existia.

E o que faz o presidente do Supremo? Considera esse coquetel de desencontros mera notícia de jornal, afirma-se o paladino dos direitos individuais e passa um carão no Congresso Nacional, como se lhe competisse tal papel; arvora-se em ombudsman do Parlamento, repetindo, ademais, o comportamento grosseiro que o tem caracterizado na altercação com os seus pares: ele vai muito além da divergência e, com certa freqüência, busca humilhar o contendor. Têm ficado mais ou menos protegidos de seu veneno os ministros Celso de Melo, Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello, que, visivelmente, sabem mais do que ele e não escondem o fato. Os demais se intimidam por ignorância, subserviência ou timidez. Aliás, chegou a hora de os demais ministros decidirem se são ignorantes, timoratos ou tímidos.

Jobim já deveria ter deixado o Supremo há muito tempo. Não o fez. Já anunciou a sua disposição de sair. O Senado Federal não deveria ficar a reboque de suas decisões, de seu estrelismo (em sentido amplo), de seu histrionismo. Lula, evidentemente, não se fez de rogado. Para variar, diz que nunca antes no país houve um Judiciário tão independente. Ora, claro que não! Nunca antes houve um Judiciário tão independente da Justiça e dependente do calendário eleitoral.

O presidente que agora o elogia, liderava em 2002, então candidato, a grita contra o próprio Jobim, quando este deu seu parecer — que, de resto, considero correto — favorável à verticalização. Acusava-o de estar tentando servir ao governo FHC e ao então candidato do PSDB. A acusação era uma tolice e fazia parte da estratégia petista de gritar “Fogo na floresta!” para poder atuar como incendiário. À época, defendi Jobim. Eu o fiz por bons motivos. Não sei se ele decidiu com a mesma inocência. Talvez tivesse tentado especular com o futuro. O PT dizia que ele agira para beneficiar os tucanos. O PT foi quem se saiu melhor, tanto é que o partido, em recente votação, optou pela manutenção do expediente. Talvez ele tenha tentado ser inutilmente útil ao poder de então. Não lhe seria nada estranho.

Tenho a certeza de que o Senado não vai querer comprar essa briga. Alguns hão de evocar a ética da responsabilidade, o “deixa disso”, “não vamos aumentar o conflito”, “logo ele está saindo”, “é justamente isso o que ele quer”. É um erro. O mesmo erro cometido, não faz tempo, com Luiz Inácio Lula da Silva. A gente deve tratar com essa manha e essa esperteza adversários que tendem a levar o jogo para o limite, mas se mantêm dentro das regras. Jobim transgrediu a regra. Deu carrinho por trás num jogador que nem bola tinha. Cartão vermelho! Tem de ser expulso. Ou vai se generalizar a pancadaria. Com a palavra, ademais, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e as associações de magistrados.

*Artigo publicado nesta quinta-feira (2/2) no site Primeira Leitura.

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