Propriedade intelectual

Mais proteção ao direito autoral não significa mais rigor

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30 de dezembro de 2006, 6h00

Estão em curso no Brasil duas campanhas repressivas que escancaram algumas deficiências da nossa Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98). De um lado, temos a Associação Brasileira de Direitos Reprográficos adotando medidas judiciais para fechar copiadoras em universidades. De outro, a Federação Internacional da Indústria Fonográfica que, em parceria com a Associação Brasileira de Produtores de Discos, anunciou que irá acionar judicialmente 20 brasileiros que compartilham arquivos de músicas pela Internet.

O que há de comum entre as duas iniciativas? E porque elas são preocupantes do ponto de vista do interesse social? Bem, inicialmente é interessante perceber que as campanhas estão sendo capitaneadas por entidades que congregam empresas de copyright e não entidades representativas dos autores. Este fato reforça o pensamento do professor José de Oliveira Ascenção[1], de que estamos vivenciando o surgimento de um Direito de Autor sem autor, ou seja, a prevalência de uma tutela voltada para a proteção do investimento e não mais para os aspectos personalísticos da criação intelectual.

Mas isso por si só não é suficiente para invalidar as medidas adotadas pela ABDR e IFPI. Afinal, na qualidade de detentoras de direitos patrimoniais de autor elas têm legitimidade para propor as ações judiciais que considerem cabíveis para a defesa de seus interesses. O que é preocupante nessas campanhas repressivas é o fato de que elas afetam diretamente a nossa liberdade de fazer uso de criações intelectuais de terceiros.

A proteção aos direitos de autor — e o sistema de propriedade intelectual como um todo, aliás — se equilibra entre dois interesses distintos e relevantes: (i) o interesse particular do criador em obter o reconhecimento pela sua obra e usufruir dos seus proveitos econômicos e (ii) o interesse social que almeja a criação e difusão bens culturais.

De que forma esses interesses são balanceados? Através da imposição de limites aos direitos de autor, no tocante a sua abrangência, duração e extensão.

Diz-se que tais direitos são limitados em sua abrangência, na medida em que existem certas criações que não se revestem dos requisitos mínimos para proteção sendo, portanto, imunes[2] aos direitos de autor (conforme previsão do artigo 8º da Lei 9.610/98).

Verificado que a obra intelectual encontra-se abrangida pelos direitos de autor, sua proteção, contudo, é limitada temporalmente. A temporaneidade dos direitos assegurados ao criador é uma característica intrínseca do sistema de proteção ao autor (que encontra previsão expressa no artigo 5º, XXVII da CF/88).

Todavia, ainda que a criação esteja no âmbito de proteção das obras artísticas, literárias e científicas, e mesmo durante o prazo de exclusividade assegurado em lei, existem limites quanto à extensão do direito do autor, ou seja, hipóteses nas quais o exercício da faculdade de exclusão de terceiros pelo autor é mitigada.

Ocorre que a Lei 9.610/98 adotou um regramento que amplia desmedidamente os direitos assegurados ao autor e limita excessivamente a possibilidade de utilização lícita de obras de terceiros.

O artigo 46 desta lei traça as hipóteses de utilização que não caracterizam violação aos direitos autorais. Trata-se rol taxativo, portanto, qualquer forma de uso que não esteja prevista nesta listagem será considerada ilícita. Segundo o nosso regramento atual, os direitos do autor constituem um imenso oceano infestado de tubarões, no qual ninguém pode nadar sem correr o risco de ser mordido. Há apenas uma pequena ilhota — representada pelo artigo 46 — na qual as pessoas podem se abrigar em segurança. Não pretendemos que o oceano deva ser esvaziado, mas sim, que a ilhota seja ampliada.

Uma questão fundamental e que está no centro das campanhas movidas pela ABDR e IFPI, diz respeito à possibilidade de reprodução lícita de obras de terceiros para fins privados. Ou seja, trata-se de possibilitar que uma pessoa que comprou um CD possa copiar uma de suas músicas para o seu computador ou tocador de MP3, ou que um aluno de uma faculdade possa tirar cópia de um trecho de um livro considerado importante para fins didáticos.

Segundo a regra da Lei 5.988/73 – que vigorou entre 1974 e 1998 – não era considerada ilícita a reprodução “em um só exemplar, de qualquer obra, contando que não se destine à utilização com intuito de lucro” (art. 49, II). Admitia-se, desta forma, a reprodução integral de uma obra para fins privados.

A Lei 9.610/98 modificou esse dispositivo para restringir, ainda mais, a possibilidade de reprodução. Segundo seu artigo 46, II, somente será permitida a reprodução “em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro”.

Os legisladores pátrios, influenciados por pressões externas pós Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade (TRIPS), adotaram a tese do quanto mais melhor no que diz respeito aos direitos de propriedade intelectual (a história da Lei 9.279/96 está cheia de exemplos nesse sentido).

Essa política se mostrou absolutamente equivocada, já que não produziu os resultados esperados. Apesar de possuirmos uma das leis mais rígidas do mundo continuamos sofrendo ameaças de retaliação por parte dos EUA, com base na violação de direitos de propriedade intelectual. E, fundamentalmente, a ampliação desarrazoada dos direitos dos autores rompe o equilíbrio entre os interesses colocados em tensão.

Esse desbalanceamento do sistema de proteção às obras literárias, artísticas e científicas — somado ao surgimento de novas tecnologias que extrapolam as hipóteses taxativas do artigo 46 — nos leva a seguinte conclusão: somos todos piratas. Esse fato foi exposto de forma brilhante na matéria de autoria de Rafael Pereira, publicada na revista Istoé de março de 2006:

“Hoje, pelo menos 2,5 milhões de brasileiros trocam pela internet arquivos de música, vídeo, programa de computador e jogos. Essa turma conectada inclui, para todos os efeitos, qualquer um que use computador ativamente. Copiar é tão fácil que nem sabemos quando estamos infringindo alguma lei. A verdade, caso alguém ainda tenha alguma dúvida a respeito, é bastante singela. Somos todos criminosos. Somos todos piratas. Todos? Bem, talves nem todos. Mas você conhece alguém que – de verdade – nunca tenha feito uma cópia ilegal de músicas, filmes ou programas de computador?”

O que podemos fazer para reequilibrar o sistema? A modificação dos dispositivos da Lei 9.610/98 que tratam dos limites aos direitos de autor é um imperativo.

Neste sentido, nos parece que a proposta de alteração do artigo 46, sugerida pela Associação Brasileira de Propriedade Intelectual seja absolutamente correta:

“Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais, a reprodução parcial ou integral, a distribuição e qualquer forma de utilização de obras intelectuais que, em função de sua natureza, atenda a dois ou mais dos seguintes princípios, respeitados os direitos morais previstos no art. 24”:

I – tenha como objetivo, crítica, comentário, noticiário, educação, ensino, pesquisa, produção de prova judiciária ou administrativa, uso exclusivo de deficientes visuais em sistema Braile ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários, preservação ou estudo da obra, ou ainda, para demonstração à clientela em estabelecimentos comerciais, desde que estes comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização, sempre na medida justificada pelo fim a atingir;

II – sua finalidade não seja essencialmente comercial para o destinatário da reprodução e para quem se vale da distribuição e da utilização das obras intelectuais;

III – o efeito no mercado potencial da obra seja individualmente desprezível, não acarretando prejuízo à exploração normal da obra.

Parágrafo Único – A aplicação da hipótese prevista no inciso II deste artigo não se justifica somente pelo fato de o destinatário da reprodução e quem se vale da distribuição e da utilização das obras intelectuais ser empresa ou órgão público, fundação, associação ou qualquer outra entidade sem fins lucrativos.

A proposta substitui uma listagem taxativa por uma abordagem mais flexível, baseada em condições gerais, que permite uma avaliação mais adequada das particularidades de cada caso concreto. Os detratores da sugestão argumentam que ela aumentaria a insegurança jurídica das relações, diminuindo os incentivos à criação de novas obras intelectuais.

Não podemos concordar com a idéia de que o princípio da segurança jurídica possa se sobrepor ao interesse social em usufruir bens culturais, e muito menos com a suposição de que a adoção de um regramento baseado em condições gerais possa desencorajar a criação intelectual.

De fato, nos parece que o estado atual das coisas, isto é, a proteção excessiva aos interesses das empresas de copyright, é responsável pela “judicialização” da atividade intelectual e pelo desestímulo à criação, ou nas palavras do professor Lawrence Lessig: “a oportunidade para criar e transformar está enfraquecida em um mundo no qual a criação depende de permissão judicial e a criatividade precisa sempre consultar um advogado."[3]

Faz-se necessário, portanto, que as autoridades legislativas atentem para o problema e conscientizem – se do fato de que, em se tratando de propriedade intelectual, não se pode adotar o raciocínio simplista “do quanto mais melhor”.


[1] ASCENÇÃO, José de Oliveira, Direito de Autor e Desenvolvimento Tecnológico: Controvérsias e Estratégias, Revista de Direito Autoral da ABDA, ano I, n. I, agosto de 2004, p. 30-31.

[2] Para fazer uso da nomenclatura adotada pela Profa. Eliane Y. Abrão.

[3] LESSIG, Lawrence, Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade, São Paulo : Trama, 2005. p. 184.

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