Ano de confusão legal

A Constituição perdeu organicidade, com sucessivas emendas

Autor

  • Walter Ceneviva

    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor entre muitas outras obras do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas na Folha de S. Paulo.

30 de dezembro de 2006, 11h23

Escrevendo a coluna na quinta-feira (28/12) não é possível dizer quantas leis serão publicadas até o fim de 2006. Por aproximação, apenas na esfera federal: saíram três leis complementares, 155 leis ordinárias, além de algo como 400 decretos presidenciais. A produção legislativa de 27 Estados, do Distrito Federal e dos quase 6 mil municípios é impossível de calcular. Pior, ainda: a Constituição, lei das leis, perdeu organicidade, transformada em colcha de retalhos, com sucessivas emendas. Começamos 2000 com a Emenda 25 e chegamos ao fim de 2006 com a de nº 53, mais que o dobro. Cada vez que uma emenda constitucional é aprovada, o direito vigente se altera, na medida em que interfere nas normas legais de nível inferior.

Para quem vive a advocacia civil, as novidades foram de endoidar. Durante 2006, seis leis modificaram o Código de Processo Civil, sendo que a última (?) delas alterou 87 artigos. Se o leitor pensar que cada artigo, parágrafo ou inciso deve ser referenciado às normas mantidas, compreenderá por que o novo processo civil brasileiro vai demorar anos até ser decifrado. Das mudanças se extrai, porém, uma direção clara: destinam-se a facilitar a cobrança, pelos credores. Menos a cobrança pelos credores do Executivo e de suas empresas ou autarquias. O Executivo continua protegido pelas leis, que os dois outros poderes editam ou aplicam. Em favor do Judiciário, para ser justo, há sinais de uma reação contra o calote sistemático.

Tive oportunidade de assinalar, em comentário anterior, o lado positivo da inserção da mulher no mercado de trabalho. Em breve o número de advogadas deverá superar o de advogados. Não obstante a resistência de alguns tribunais, elas também avançam sobre a Justiça oficial. Serve de exemplo recente mensagem do presidente da República ao Senado (para aprovação deste) indicando o nome da procuradora federal Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha para ministra do Superior Tribunal Militar, cujas quinze cadeiras foram, até aqui, reserva sacrossanta dos homens.

Na Justiça do Trabalho tenho a impressão de que as mulheres encontraram o foro mais apropriado para a função de julgar. No Tribunal Regional da Terceira Região, em SP, a acolhida das juízas foi rápida e numerosa, mais que na Justiça Estadual, com elas ocupando até sua presidência, hoje confiada à desembargadora federal Diva Malerbi. No extenso rol de 357 desembargadores na ativa do Tribunal de Justiça de SP contei treze desembargadoras, menos de 4% do todo. Para comparar: no Supremo Tribunal Federal há duas ministras em onze membros, ou seja, quase 20%, e no Superior Tribunal de Justiça, cinco ministras em 33 componentes, ou seja, 15%. É agradável lembrar que a Secretaria da Justiça do Estado de SP está sob as ordens da professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente.

As questões remuneratórias, a contar do teto pago aos ministros do Supremo Tribunal Federal, dominaram o noticiário do final de ano. Já tratei do assunto e não vou azedar a coluna, voltando a ele, porque as conturbações do ano terminaram com a grave ofensa ao direito dos passageiros das viagens aéreas, em que a incompetência e o descaso misturaram, no mesmo fosso, empresas e o Poder Público.

Artigo publicado na edição deste sábado (30/12) da Folha de S. Paulo.

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  • é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor, entre muitas outras obras, do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas, na Folha de S. Paulo.

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