Mãos de tesoura

Em 2006, Supremo cortou reajustes salariais e asas do CNJ

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30 de dezembro de 2006, 6h01

Este texto faz parte da Retrospectiva 2006, uma série de artigos em que são analisados os principais fatos e eventos nas diferentes áreas do direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que terminou.

O ano de 2006 foi o da tesoura no Supremo Tribunal Federal. O STF cortou o reajuste dos parlamentares, o aumento dos promotores e as asas do Conselho Nacional de Justiça. Foi também o ano em que o tribunal reafirmou que a independência entre os três Poderes não impede o Judiciário de intervir sempre que o Legislativo e o Executivo tentarem burlar a Constituição.

Cerca de 10 mil processos por mês foram despejados nas mãos de cada um dos 11 ministros, pouco mais do que em 2005. Na ocasião, cada gabinete recebeu em torno de 9 mil processos por mês. De acordo com dados divulgados pela presidente do STF, ministra Ellen Gracie, a corte conseguiu desaguar 69,3 mil.

O ano de 2006 também foi marcado por mudanças no time que decide as questões mais importantes no país. Saiu Carlos Velloso e entrou Ricardo Lewandowski. Com a saída de Nelson Jobim, o STF ganhou a sua segunda mulher, ministra Cármen Lúcia. Em 2006, o comando da corte suprema foi entregue para outra mulher, Ellen Gracie. Como presidente do Supremo, a ministra também assumiu o comando do Conselho Nacional de Justiça e teve a oportunidade de participar dos dois lados do atrito entre o CNJ e o STF.

De um lado, o CNJ se rendeu ao clamor da comunidade jurídica. De outro, o Supremo barrou o Conselho que, na ânsia de não criar desafetos, brigou com a Constituição da República. Em 2006, o Supremo começou a desenhar os limites de atuação do CNJ. Ele referendou a regulamentação da proibição do nepotismo no Judiciário, a primeira resolução marcante do CNJ. Por outro lado, barrou todas as tentativas do CNJ de ocupar o papel de legislador.

Sobre as férias coletivas, por exemplo, o CNJ inicialmente editou resolução reafirmando o que diz a Emenda Constitucional 45: elas estão vedadas. A comunidade jurídica criticou, a direção do CNJ mudou e a resolução foi revogada. Cada tribunal ficou liberado para decidir sobre o descanso coletivo. O caso chegou ao Supremo e os ministros fizeram com que tudo voltasse como era antes.

A intenção dos conselheiros de restituir o descanso coletivo durante janeiro e julho para que, nos outros meses, os tribunais possam funcionar normalmente pode até ser nobre, mas não os autoriza a rasgar a Constituição. As férias coletivas só podem ser restituídas por meio de Emenda Constitucional, decidiu o Supremo. E editar Emenda Constitucional é tarefa do Legislativo, não do CNJ.

Em 2007, mais um ato do CNJ deverá ser analisado pelo STF: a resolução que permite que férias não gozadas possam ser transformadas em dinheiro. Para a Procuradoria-Geral da República, que contesta a permissão, a regra só pode ser inserida por meio de lei complementar. Mais uma vez, tarefa do Legislativo.

O Supremo também teve de bater de frente com o Conselho Nacional do Ministério Público, que aprovou o aumento do teto salarial para os membros dos MPs estaduais. Os promotores que acumulam funções poderiam ganhar até R$ 24,5 mil, salário de ministro do STF e teto do funcionalismo público. Ou seja, poderiam ultrapassar o teto atual dos estados de R$ 22,1 mil. A resolução foi suspensa liminarmente pelos ministros do Supremo.

Deputados e senadores também foram brindados pelas mãos de tesoura do STF. Os parlamentares aprovaram um aumento de 91% nos próprios salários. O reajuste foi suspenso. Para os ministros, o aumento deveria ter sido votado pelo Plenário do Congresso Nacional e não apenas pelas mesas diretoras das duas casas.

Garantias constitucionais

A atuação do Supremo Tribunal Federal diante de possíveis abusos dos outros dois Poderes foi ainda mais marcante em 2006. O STF mostrou que, sempre que considerar que algum princípio constitucional está sendo violado, iniciativas tanto do Executivo quanto do Legislativo podem ser barradas.

A corte sinalizou que pode dar caráter efetivo ao Mandado de Injunção e impedir que omissões legislativas prejudiquem direitos constitucionais. Gilmar Mendes e Eros Grau votaram para que, frente à omissão do Legislativo, o próprio Judiciário regulamente os direitos. A posição foi defendida em três Mandados de Injunção sobre o direito de greve dos servidores que, embora previsto na Constituição, carece de regulamentação.

Marco Aurélio, relator de outro Mandado de Injunção sobre o direito à aposentadoria especial por atividade insalubre, também entendeu que o Judiciário tem de interferir, ainda que temporariamente, para garantir os direitos constitucionais quando houver omissão legislativa. Todos os quatro julgamentos foram suspensos por pedidos de vista.

O Mandado de Injunção, ferramenta prevista na Constituição para suprir as lacunas deixadas pelos parlamentares, tinha sido até então freado pela influência marcante do ministro aposentado Moreira Alves. Prevalecia na corte o entendimento de que o Judiciário não pode exercer o papel de legislador, mesmo perante a omissões que privem o cidadão de determinado direito constitucional.

Em contrapartida, o ano de 2006 também foi marcado pela iniciativa do ministro Eros Grau, que barrou a própria Constituição da República ao considerar que, em alguns casos, é melhor ferir a carta maior em nome da segurança jurídica. Em um voto bastante criticado, o ministro entendeu que o município baiano Luís Eduardo Magalhães foi criado irregularmente. Mas, depois de seis anos, era melhor mantê-lo do que ferir a segurança federativa. O caso não foi decidido ainda. Logo após o voto de Eros Grau, relator, o ministro Gilmar Mendes pediu vista.

Mudanças na jurisprudência

Ventos diferentes levaram o tribunal a rever antigos posicionamentos. Foi assim quando o STF decidiu que vício formal de Medida Provisória contamina lei. Ou seja, não adianta mais o Congresso correr para aprovar determinada Medida Provisória. Se os ministros considerarem que a MP é inconstitucional, quando elaborada de forma diversa da prevista na Constituição, a lei de conversão também será. Antes, a lei de conversão dava imunidade jurídica para a MP e a ação proposta contra ela perdia o objeto.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que não há inconstitucionalidade na penhora do imóvel de família do fiador. E na ação que julga a constitucionalidade da prisão civil para devedor em alienação fiduciária, os ministros podem rever a prisão civil para o próprio depositário infiel. A discussão foi acesa pelo ministro Gilmar Mendes. O Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, permite prisão civil apenas em caso de inadimplência de dívida alimentícia.

Para o ministro, o pacto tem menos poder do que a Constituição brasileira, mas é hierarquicamente superior à legislação infraconstitucional. Portanto, não revoga a possibilidade de prisão civil para depositário infiel, mas revoga a lei que regulamenta essa previsão constitucional. Com base nesse entendimento, a prisão para o depositário cairia num vago legislativo e não poderia ser aplicada.

O entendimento inovador fez com que o ministro Celso de Mello pedisse vista, pois o que começou a ser discutido foi a hierarquia entre Constituição, legislação infraconstitucional e acordos internacionais. Por enquanto, oito ministros já votaram pela inconstitucionalidade da prisão para o devedor em alienação fiduciária.

Também foi adiada a decisão final sobre a restituição de ICMS na substituição tributária. Dos três ministros que já votaram, dois — Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski — entenderam que a restituição é um direito do contribuinte. Apenas Nelson Jobim, já aposentado, entendeu que a restituição só é possível quando o fato gerador não ocorrer, ou seja, quando a mercadoria não for vendida. Quando o fato ocorrer parcialmente (mercadoria vendida por um preço inferior ao presumido), não cabe a restituição, entendeu Jobim.

Rédeas

Para o advogado tributarista Ives Gandra Martins Silva, o Supremo tende a observar mais o direito do contribuinte. Ele considera que o tribunal deu dois sinais das suas boas intenções com o cidadão: proibiu que o pagamento de precatório seja vinculado ao pagamento das dívidas tributárias e caminha para eliminar a exigência de depósito prévio para se apresentar recurso administrativo contra o INSS. O julgamento sobre o depósito prévio foi suspenso quando estava com o placar de cinco a um para o contribuinte.

Outro julgamento importante também foi interrompido quando estava seis a um para o contribuinte: aquele em que o Supremo vai decidir se o ICMS pode ou não integrar a base de cálculo da Cofins. Ao decidir, o tribunal deve conceituar a palavra faturamento e, a partir daí, muitos consideram que a decisão terá efeito cascata. Se o ICMS for excluído da base de cálculo da Cofins, a expectativa é de que outros tributos também saíam dos cálculos da contribuição.

A partir deste ano, ficou definido que os bancos têm de se submeter ao Código de Defesa do Consumidor, mas podem excluir a fixação dos juros das regras da lei consumerista. Nessa esteira, o Supremo abriu um precedente polêmico e considerado perigoso por alguns, o de que os juízes podem interferir na fixação das taxas de juros se a considerarem abusiva.

Em matéria criminal, o Supremo manteve a posição de priorizar a presunção de inocência de cada um, embora ainda não tenha definido quando começa a execução da pena — se após a decisão de segunda instância ou só depois que a condenação tiver transitado em julgado. O tribunal declarou inconstitucional a proibição da progressão de regime para condenados por crimes hediondos. Para os ministros, a proibição fere o princípio da individualização das penas.

As urnas

O Supremo Tribunal Federal não ficou fora das eleições de 2006. Aliás, sua participação foi marcante e decisiva. Derrubou a cláusula de barreira, garantindo a existência dos partidos nanicos e barrou a farra das alianças partidárias, pelo menos neste ano. Para os ministros, o fim da verticalização, aprovado em Emenda Constitucional neste ano, só valerá a partir de 2007, pois tem de ser respeitado o princípio da anterioridade eleitoral.

O tribunal terminou o ano com um pepino grande nas mãos: o inquérito do mensalão. A missão da corte é tentar julgar, em tempo hábil, o processo contra 40 pessoas, entre parlamentares e não parlamentares. O STF chegou a ensaiar um desmembramento do inquérito, mas voltou atrás. Todos os denunciados vão ser julgados pelo STF.

Conflitos e soluções

Se não há ofensa a direitos indígenas, crime contra ou praticado por índio deve ser julgado pela Justiça Estadual. Processo de servidor público contra administração pública vai para a Justiça comum, e não para a Trabalhista. Na Justiça do Trabalho, os sindicatos podem representar o sindicalizado seja qual for o caso. Mas caso de trabalho escravo, provavelmente, terá de ser desaguado na Justiça Federal. Estes foram alguns dos conflitos de competência que o Supremo definiu.

Em 2006, a advocacia teve vitórias e derrotas no Supremo. O tribunal derrubou alguns dispositivos do Estatuto da Advocacia, como o que permitia que o advogado falasse depois do relator do processo. Na lista de vitórias, foi garantida a participação dos advogados em todos os atos constitutivos de pessoas jurídicas registradas em cartório e a prerrogativa de prisão em sala de Estado-Maior. Caso esta não exista, o advogado pode ficar em prisão domiciliar.

A favor do amplo direito de defesa, o ministro Celso de Mello defendeu o princípio da comunhão das provas. Ainda que o inquérito esteja sob segredo de Justiça, disse o ministro, esse sigilo não atinge os advogados do investigado, que podem ter acesso a todos os documentos do processo, inclusive às provas produzidas pela acusação.

O ano de 2006 termina com o Supremo Tribunal Federal comemorando duas conquistas: as leis da Súmula Vinculante e a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário. Criadas em 2004 pela Emenda Constitucional 45, as duas ferramentas só foram sancionadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no final de dezembro. A aposta, agora, é que os dispositivos reduzam o número de processos no tribunal e que os ministros possam julgar apenas casos de relevância para o país.

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