Violência urbana

Estado do Rio é condenado a indenizar vítima de bala perdida

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28 de dezembro de 2006, 6h00

O estado do Rio de Janeiro foi condenado a pagar indenização de R$ 400 mil para o comerciante Otacílio Carvalho França. Ele ficou paraplégico depois de ser atingido por uma bala perdida. O estado ainda terá de pagar pensão mensal de R$ 2,3 mil — quantia que a vítima recebia antes do acidente — e as despesas com fisioterapia, acompanhamento médico, cadeira de rodas e terapia ocupacional. A decisão é do juiz Gustavo Bandeira, da 5ª Vara da Fazenda Pública do Rio. Cabe recurso.

O incidente ocorreu no dia 14 de março de 2001, na Estrada Grajaú-Jacarepaguá. O juiz considerou que o estado do Rio de Janeiro foi omisso porque deixou de prestar segurança de forma eficiente numa área notadamente de grande risco.

“Ora, é sabido que a aludida via é reputada de alta periculosidade, que cercada por favelas dominadas pelo tráfico de entorpecentes, sendo certo que, na ocasião do disparo, restou apurada a existência de tiroteio entre bandidos dos morros Cotios e Cachoeirinha, objetivando o controle dos pontos de venda de drogas”, disse Gustavo Bandeira.

O juiz afirmou que as medidas administrativas adotadas pelo estado na região e na cidade do Rio de Janeiro são insuficientes para assegurar a ordem urbana e oferecer aos cidadãos a segurança mínima que se espera em um grande centro urbano. “Trata-se de zona de alto risco, na qual é freqüente tanto o confronto entre traficantes, como falsas blitzes, revelando a insuficiência de medidas administrativas eficientes capazes de evitar danos como o sofrido pelo autor.”

O argumento do estado do Rio de que o dano foi causado por terceiros e não por um agente estatal, o que o isentaria de responsabilidade, foi rechaçado pelo juiz. De acordo com Gustavo Bandeira, pessoas são freqüentemente vítimas de balas perdidas, sempre nos mesmos locais, cuja periculosidade é conhecida de todos, o que torna específica e abusiva a omissão do estado no que se refere à prestação de segurança pública, prevista na Constituição Federal.

“Naqueles locais em que se verifica uma omissão específica do dever de segurança pública, caracterizada pelos reiterados incidentes envolvendo a ação de bandidos, sem uma ação estatal eficiente para evitar ou pelo menos diminuir tal atuação reincidente destes marginais, deve o réu ser chamado à sua responsabilidade de indenizar aqueles que venham a sofrer um dano decorrente desta omissão específica do dever de agir.”

Processo 2003.001.008532-9

Leia a decisão

ESTADO DO RIO DE JANEIRO PODER JUDICIÁRIO COMARCA DA CAPITAL JUÍZO DE DIREITO DA 5ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA Processo nº 2003.001.008532-9 Autor: Otacílio Carvalho França Réu: Estado do Rio de Janeiro Ação: Ordinária SENTENÇA Vistos etc… I OTACÍLIO CARVALHO FRANÇA ajuizou ação pelo rito ordinário, com pedido de antecipação de tutela, em face do ESTADO DO RIO DE JANEIRO, pretendendo indenização a titulo de danos materiais, morais e estéticos em decorrência de bala perdida, oriunda de guerra entre traficantes, ocorrida nas favelas existentes na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, que o vitimou e resultou na sua paraplegia.

Alega, em síntese, a omissão do Estado em relação ao dever constitucional de segurança publica (art.144 da CF), tendo por fundamento o art. 37 § 6º da CF, considerando que Estrada Grajaú-Jacarepaguá, onde foi atingido, é via de grande circulação e que o tiro foi decorrente de guerra entre traficantes, sendo certo que o réu é omisso na prestação da segurança pública no referido local. Pede a condenação do Estado no pagamento da indenização que especifica na inicial. Petição inicial a fls.02/15, acompanhada pelos documentos de fls.18/211.

Decisão de fls. 219 indeferindo a antecipação dos efeitos da tutela e deferindo a gratuidade de justiça. Regularmente citado, o réu apresentou contestação (fls. 230/241), devidamente instruída com os documentos de fls.242/261, alegando, em síntese, que não houve atuação de agente estatal a justificar a responsabilização com fundamento no art. 37, § 6 da CF, sendo o caso de responsabilidade subjetiva, a qual depende da prova da conduta culposa, ausente na hipótese.

Esclarece que o dano foi causado por terceiros, razão pela qual inexiste nexo de causalidade para responsabilização do Estado. Quanto às parcelas indenizatórias, pelo principio da eventualidade, impugna os valores pretendidos a título de danos materiais, salientando inexistir especificação da deformidade sofrida, para deferimento do dano estético e que o dano moral deveria ser fixado entre 50 a 100 salários-mínimos.

Réplica reiterando o pedido inicial. Instada as partes a produzirem provas, a parte autora requereu a produção de prova testemunhal e pericial. Laudo pericial a fls.328/331, devidamente complementado a fls.342. Parecer do Ministério Público de fls.347/352, pela improcedência do pedido autoral.


II É O RELATÓRIO.

FUNDAMENTO E DECIDO.

A questão em exame consiste em saber se existe, ou não, responsabilidade civil do Estado pelos danos sofridos pelo autor, o qual se encontra paraplégico, em razão de ter sido atingido por ´bala perdida´, oriunda de guerra entre traficantes, quando conduzia seu veículo pela Estrada Grajaú-Jacarepaguá. Sustenta o autor que o evento danoso se deu em razão de omissão do Estado no dever de prestar segurança pública adequada e eficaz, razão pela qual deve ser indenizado, a teor do art. 37, § 6º da CF.

O Estado-Réu, por sua vez, defende a tese de que o dano não decorreu da conduta de seus agentes, mas sim em razão de troca de tiros entre bandidos, ou seja, ´bala perdida´, razão pela qual não pode ser responsabilizado, sendo inaplicável a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º da CF, incidindo, no caso, a responsabilidade subjetiva, na qual se exige a prova da conduta culposa do agente estatal, inexistente na hipótese.

A solução da questão, portanto, reside em saber, primeiramente, qual a teoria regente da hipótese, se subjetiva ou objetiva, para em seguida determinar se o dano suportado pelo autor é ou não passível de responsabilização do Estado. Neste ponto, a doutrina não é uniforme. Para alguns, como CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO e RUI STOCO, a responsabilidade seria subjetiva, pois estar-se-ia diante de uma conduta omissiva, consubstanciada, no caso, na falha na prestação do serviço de segurança pública, sendo inaplicável o art. 37, § 6º da CF. Para outros, considera-se que a responsabilidade objetiva do Estado prevista no art. 37, § 6º da CF, engloba tanto a conduta comissiva como omissiva, desde que se trata de omissão específica.

Seguindo esta última orientação encontram-se, dentre outros, HELY LOPES MEIRELLES, SERGIO CAVALIERI FILHO e CARLOS ROBERTO GONÇALVES, destacando-se doutrina deste último, no sentido de que: ´Pode-se, assim, afirmar que a jurisprudência tem entendido que a atividade administrativa a que alude o art. 37, § 6º da Constituição Federal, abrange tanto a conduta comissiva como a omissiva. No último caso, desde que a omissão seja a causa direta e imediata do dano.´ (in Responsabilidade Civil, ed. Saraiva, 8ª ed., p.182.)

De fato, examinando o referido dispositivo constitucional, verifica-se que o legislador constituinte não faz distinção entre conduta comissiva ou omissiva, afirmando, tão somente, que ´as pessoas jurídicas de direito público…responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros…´. Ora, é sabido que a omissão, examinada pelo seu aspecto normativo, possui relevância jurídica sempre que o agente, tendo o dever de agir, queda-se inerte, permitindo a produção do dano que poderia e deveria ter evitado.

Neste ponto é que reside a causalidade da omissão, seja pela teoria subjetiva, seja pela objetiva. Logo, basta o nexo de causalidade entre a conduta, seja ela comissiva ou omissiva, e o dano, para que surja o dever de indenizar do ente estatal. Feito o enquadramento da hipótese pelo prisma da responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º da CF, resta apurar se os requisitos da aludida obrigação se fazem presentes, em especial a conduta omissiva, o dano e o nexo causal.

Tanto a doutrina como a jurisprudência têm firmado o entendimento de que o Estado não seria responsável por situações que caracterizem uma omissão genérica do seu dever de agir, tendo como exemplo o assalto em via pública, cujo acontecimento, por sua inevitabilidade, escapa à possibilidade de controle estatal. Entender o contrário, afirma a doutrina, é qualificar o Estado como segurador universal, inviabilizando, com isso, a própria prestação adequada do serviço de segurança pública, cuja falência seria inevitável. Admite-se, entretanto, a responsabilização do Estado, nas hipóteses em que a aludida omissão se caracteriza como específica, ou seja, quando há uma situação específica que denote uma omissão concreta do dever jurídico de agir do ente estatal.

Neste sentido, doutrina o Des. Sergio Cavalieri Filho que ´os nossos Tribunais têm reconhecido a omissão específica do Estado quando a inércia administrativista é a causa direta e imediata do não-impedimento do evento (…)´. (in Programa de Responsabilidade Civil, 4ª ed., p.247) Assim, para a correta solução da lide, deve-se indagar se o fato narrado na inicial, ´bala perdida´ decorrente de tiroteio entre bandidos, vindo a atingir cidadão em via expressa, caracteriza ou não uma violação específica do dever de prestar segurança pública capaz de resultar na responsabilização do Estado.

O exame dos autos e em especial das regras de experiência comum (art. 335 do CPC), revelam que a situação fática em julgamento é reflexo da omissão estatal na prestação eficiente da segurança pública que lhe incumbe, a teor do art. 144 e seus parágrafos da CF. Com efeito, o aludido dispositivo prevê que, verbis: ´Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…) § 5º.


Às policias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (…) § 7º A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.´ É evidente que tal comando constitucional não importa em querer impor ao Estado a responsabilidade por todo e qualquer roubo, lesão ou morte, decorrente da ação de marginais, pois que tal seria querer o impossível, um estado de nirvana que não se encontra nem mesmo em países do primeiro mundo.

No entanto, o que se deve indagar é se, em casos como o presente, em que ação de marginais em certas localidades se demonstra reiterada, sem que haja uma resposta eficiente da Administração Pública, há ou não violação específica do dever de segurança pública, eficiente ou minimamente eficiente? Ou seja, o fato em questão poderia ter sido evitado pelo Estado, caso a segurança pública fosse minimamente eficiente? Ou ainda, é razoável admitir que em um estado de direito, guerra entre traficantes e ´balas perdidas´ sejam rotinas em certas vias expressas e comunidades carentes, sem que isso caracterize uma omissão específica do dever de agir?

Não se pode analisar tal questão de forma isolada, levando-se em consideração tão somente o fato ocorrido com o autor, pois a previsibilidade e a evitabilidade, que devem ser apurados segundo uma visão global da situação, são fatores determinantes para apuração da responsabilidade no caso. Assim, devem-se apurar os fatos, primeiramente, dentro de um contexto geral, tendo por enfoque uma visão macro dos acontecimentos análogos ocorridos nesta cidade, ou seja, levando-se em consideração a situação real e concreta da segurança pública na cidade do Rio de Janeiro.

A partir daí é que se deve examinar a situação concreta objeto desta demanda, de forma a saber se, no caso, o dano experimentado pelo autor foi ou não decorrente da violação do dever de segurança pública estatal. O art. 335 do CPC dispõe que ´o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (…)´. Referido dispositivo trata das máximas de experiência, a qual é bem delineada por Nelson Nery Jr., in CPC Comentado, 9ª ed., p.536, como sendo ´juízo de valores, tanto na aplicação da lei, como na aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito, juízos de valores estes individuais.

Embora individuais, adquirem autoridade porque trazem consigo a imagem do consenso geral, pois certos fatos e certas evidências fazem parte da cultura de uma determinada esfera social.´ Com efeito, o juízo de valor que se extrai na hipótese, dado os fatos que vêm ocorrendo reiteradamente na cidade, no que tange à segurança pública, revela que a segurança pública na cidade do Rio de Janeiro tem se revelado insuficiente para assegurar a ordem urbana e oferecer aos cidadãos o mínimo de segurança que se espera em um grande centro urbano. Lamentavelmente, é fato público e notório (art. 334, I do CPC), portanto incontroverso, que a cidade do Rio de Janeiro vem vivenciando um grave e crescente problema de segurança pública, caracterizado por diversos fatores, como: Tráfico de entorpecentes, guerra entre facções por domínio de pontos de venda de drogas (com intensos tiroteios com armas de grosso calibre), domínio de favelas pelo tráfico ou milícias, balas perdidas, falsas blitz, assaltos em vias expressas (envolvendo até mesmo autoridades públicas fortemente protegidas por seguranças), etc. A ineficiência do sistema de segurança pública da cidade do Rio de Janeiro é fato reconhecido pela grande maioria da população, que assim como faz com relação à saúde pública e educação, passa a buscar meios alternativos para compensar a omissão estatal na prestação deste dever jurídico, contratando seguranças particulares para guardar condomínios, blindando veículos, gradeando prédios, contratando seguros (atualmente mais caros para quem utiliza certas vias expressas), evitando parar em sinais de trânsito à noite e até de sair de casa após determinadas horas. O cidadão, cada vez mais, vai privando a sua liberdade por temor, por não confiar na segurança pública da sua cidade. E a bandidagem, cada vez mais, torna-se mais ousada em suas empreitadas.

Trata-se de fato público e notório, que não somente é vivenciado por todos, cidadãos comuns ou autoridades que vivem nesta cidade ou nela estão apenas de passagem, mas é diariamente retratado pelos veículos de comunicação, como se viu nos últimos dias, em que as manchetes eram: ´AÇÕES DA POLÍCIA NÃO CONTÊM ASSALTOS EM VIAS EXPRESSAS-Linha Vermelha volta a ser fechada um dia após ataque a ministros do Supremo´ (O Globo, primeira página, dia 9/12/06) ´ROTINA NA LINHA VERMELHA: TIROS- Traficantes e PMs se enfrentam na via expressa cinco dias após ataque a ministros do STF´ (O Globo, primeira página, dia 13/12/06) ´PESQUISA: VIOLÊNCIA É O MAIOR PROBLEMA DO RIO- Falta de segurança foi apontada por 99% das 1.200 pessoas ouvidas´ (O Globo, p. 29 do dia 15/12/06) No dia 7 de dezembro de 2006, a Presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. Ellen Gracie, e seu Vice-Presidente, Min. Gilmar Mendes, não obstante o esquema de segurança que os acompanhavam, foram vítimas de assalto na Linha Vermelha, revelando a ousadia dos meliantes frente a uma segurança pública cada vez mais ausente.


Sobre o fato, o Min. Gilmar prestou as seguintes declarações: ´(…) o tema segurança pública não é preocupante só no Rio, mas é uma questão que diz respeito ao Brasil. O tema precisa ser tratado como prioridade, pois é a liberdade do cidadão que está sendo cerceada. O estado atual é quase que um quadro de terrorismo urbano. O crime organizado está atuando quase que livremente. Creio que, ao longo de muitos anos, o governo foi negligente com o tema segurança pública.´ (grifei) ´A impressão que dá é que há certo descompasso. Que o crime está mais organizado do que as forças de repressão e age em um espaço mais ou menos livre.

O que mais me impressionou foi perceber que as pessoas que estavam nos outros carros agiram como se estivessem acostumadas a esse tipo de cena (…)´ (O Globo, p.23 do dia 10/12/06) (Grifei) No caso em julgamento, restou comprovado que o autor foi atingido por ´bala perdida´ oriunda de guerra entre traficantes, quando conduzia seu veículo pela Estrada Grajaú-Jacarepaguá, do que resultou a paralisia dos seus membros inferiores.

Ora, é sabido que a aludida via é reputada de alta periculosidade, eis que cercada por favelas dominadas pelo tráfico de entorpecentes, sendo certo que, na ocasião do disparo, restou apurada a existência de tiroteio entre bandidos dos morros Cotios e Cachoeirinha, objetivando o controle dos pontos de venda de drogas (fls.20) De fato, a omissão específica quanto ao policiamento na referida região é fato público e notório, tratando-se de zona de alto risco, na qual é freqüente tanto o confronto entre traficantes, como falsas blitz, revelando a insuficiência de medidas administrativas eficientes capazes de evitar danos como o sofrido pelo autor.

Com efeito, tal situação somente confirma a responsabilidade do réu, pela falha no dever de prestar uma segurança pública minimamente eficiente, de forma a ´preservar o ordem pública´ e garantir a ´incolumidade das pessoas´, tal como exigido pelo art. 144, § 6º da CF, evitando que fatos como este, envolvendo guerra de traficantes por pontos de venda de drogas, de onde surgem ´balas perdidas´ como a que atingiu o autor, continuem a ocorrer com a freqüência inaceitável com que ocorrem.

Isso porque, admite-se que em qualquer país, mesmo de primeiro mundo, haja assaltos, mortes, roubos, assassinatos em série, e até, eventualmente, morte por PAF não identificado, sem que o Estado possa ser responsabilizado por isso, dado o caráter eventual e esporádico com que ocorrem.

No entanto, não se pode admitir que em um estado de direito, no qual haja segurança pública minimamente eficiente, pessoas sejam freqüentemente vítimas de ´balas perdidas´, sempre nos mesmos locais, cuja periculosidade é conhecida de todos, sejam elas oriundas do confronto entre bandidos e polícia, ou o que é pior, do confronto entre facções criminosas na busca pelo domínio de regiões dominadas pelo tráfico, nas quais o Estado se faz ausente. A freqüência com que tais fatos ocorrem na cidade, em especial no local em que o autor foi atingido, torna específica e abusiva a omissão estatal, no que pertine a prestação de segurança pública, afastando a imprevisibilidade e a inevitabilidade que, em regra, serve para justificar a ausência de responsabilidade e afastar a sua obrigação de indenizar.

Neste sentido, vale observar que, de forma análoga, a jurisprudência evoluiu, em dado momento, para admitir a responsabilização das empresas de ônibus, por assaltos ocorridos em certos trechos, cuja freqüência pressupõe a previsibilidade e evitabilidade do fato, in verbis:

REsp 232649 / SP, Relator Min. Barros Monteiro DJ 30.06.2003 p. 250 ´RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. ASSALTO NO INTERIOR DE ÔNIBUS. LESÃO IRREVERSÍVEL EM PASSAGEIRO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO PELA DIVERGÊNCIA, MAS DESPROVIDO PELAS PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. Tendo se tornado fato comum e corriqueiro, sobretudo em determinadas cidades e zonas tidas como perigosas, o assalto no interior do ônibus já não pode mais ser genericamente qualificado como fato extraordinário e imprevisível na execução do contrato de transporte, ensejando maior precaução por parte das empresas responsáveis por esse tipo de serviço, a fim de dar maior garantia e incolumidade aos passageiros. Recurso especial conhecido pela divergência, mas desprovido.

´ 2003.001.02461 – APELACAO CIVEL DES. JOSE C. FIGUEIREDO – Julgamento: 11/06/2003 – DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL ACAO DE INDENIZACAO ASSALTO NO INTERIOR DE ONIBUS MORTE DE PASSAGEIRO CASO FORTUITO IMPROCEDENCIA DO PEDIDO APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. PASSAGEIRO ATINGIDO POR DISPARO DE ARMA DE FOGO NO INTERIOR DO COLETIVO. A constante frequência de assaltos a ônibus em certas localidades, mormente se considerado o defectivo grau de segurança do Estado do Rio de Janeiro, sem que os transportadores tenham tomado qualquer providência para inibir tais ocorrências, justifica a responsabilidade das empresas de transporte na reparação dos danos suportados pelos seus passageiros, Nos dias de hoje, o assalto à mão armada, nos meios de transporte de passageiros, deixou de possuir o atributo de imprevisível e inevitável, tal a habitualidade de sua ocorrência. As inúmeras estatísticas revelam o crescimento, ano a ano, de assaltos em veículos de transporte coletivo, sem que o Estado garanta a segurança da sociedade, o que, lamentavelmente, reclama medidas particulares. Ademais, a responsabilidade do transportador é regida sem sombra de dúvida, pela teoria do risco proveito, onde assentada a Idéia de que o dano dever ser suportado por aqueles que retira proveito ou vantagem do fato lesivo, sendo, neste ponto, induvidoso o lucro obtido pelas mencionadas empresas. Afastada, portanto, a hipótese de caso fortuito, uma vez que não se trata de fato imprevisível. Recurso parcialmente provido.


No caso em exame, o que se tem, de igual forma, é um fato previsível, que vem se tornando rotineiro na cidade (quem quer que passe por tal via e outras mais existentes na cidade sente temor pela sua integridade física) e portanto evitável, pois cabe ao Estado impedir que este poder paralelo que o tráfico de entorpecentes representa continue a atuar de forma impune e sobreposta, nas regiões em que atua, ao próprio estado de direito, fazendo prevalecer a ´preservação da ordem pública´, tal como exigido pela Constituição Federal.

Cabe ao Poder Judiciário, por outro lado, reconhecer uma realidade fática que, no momento, por sua gravidade, não pode mais ser ignorada. É preciso que o Judiciário dê uma resposta que, apesar de não solucionar o problema, reconheça a deficiência de um sistema de segurança pública que, infelizmente, revela-se a algum tempo incapaz de assegurar minimamente a ordem pública, especialmente em determinados pontos da cidade, como naquele em que se deu o dano sofrido pelo autor.

Em síntese, naqueles locais em que se verifica uma omissão específica do dever de segurança pública, caracterizada pelos reiterados incidentes envolvendo a ação de bandidos, sem uma ação estatal eficiente para evitar ou pelo menos diminuir tal atuação reincidente destes marginais, deve o réu ser chamado à sua responsabilidade de indenizar aqueles que venham a sofrer um dano decorrente desta omissão específica do dever de agir.

Constatada a violação do dever jurídico que impõe a obrigação de indenizar ao réu, resta apurar os danos materiais e morais alegados, começando pelo primeiro. Os danos emergentes, relativos aos gastos com tratamento, desde a internação até a alta médica, foram desembolsados pelo Plano de Saúde do autor, razão pela qual não merece acolhida a pretendida indenização, no valor de R$ 50.022,49. Não obstante, o laudo pericial de fls. 329, conclui que o autor necessitará de fisioterapia, acompanhamento médico, aquisição de cadeira de rodas compatível com sua enfermidade, assim como terapia ocupacional.

Assim, havendo prova destes danos, deve-se determinar o pagamento respectivo, devendo o quantum, na falta de prova nos autos, ser apurado em liquidação de sentença. Os lucros cessantes, por sua vez, também são devidos, tendo em conta a perda definitiva e permanente da capacidade laborativa do autor, cuja leitura do laudo pericial de fls. 328/329, revela ser integral, razão pela qual se impõe o pensionamento equivalente a 100% dos ganhos comprovados do autor.

O documento de fls. 209, comprova que o autor percebia um salário bruto de R$ 2.315,62, o qual deve ser pago pelo réu, em caráter vitalício, desde a data do acidente. As parcelas vencidas deverão ser pagas com a correção monetária e juros legais de 0,5% ao mês, desde a data do fato, eis que se trata de responsabilidade civil extracontratual (súmula 54 do STJ). O dano estético também se revela presente, conforme apurado pelo expert a fls.330, considerando a paraplegia que resultou do fato, de graves conseqüências, devendo ser indenizado em valor equivalente a R$ 200.000,00.

Finalmente, o dano moral, por sua vez, também merece indenização, considerando as graves conseqüências que resultam do ato ilícito, ressaltadas pela perícia, a qual concluiu que o quadro do autor é de ´incapacidade para movimentar os membros inferiores, controlar a urina e as fezes, e a sensibilidade abaixo dos mamilos foi abolida.´ (fls. 329). Apesar de inexistirem parâmetros fixos a serem observados para a fixação do dano moral, a verdade é que alguns princípios devem ser observados, em especial o critério do lógico-razoável, sopesando os elementos compensatório e punitivo.

Assim, o caráter punitivo, no caso, deve ser suficiente para fazer despertar a Administração Pública para esta grave situação, de forma a fazer cessar esta omissão abusiva e inconstitucional que envolve a prestação do dever de segurança pública na cidade do Rio de Janeiro, resgatando a ordem pública, principalmente naqueles locais notoriamente dominados pelo poder paralelo do tráfico de entorpecentes e das milícias.

Deve-se considerar, ainda, o sofrimento do ofendido, o qual se apresenta, na hipótese, em seu grau máximo, considerando a paraplegia sofrida em razão dos fatos. Portanto, norteado pelos parâmetros em apreço, fixo os danos morais em R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Frise-se, que esta indenização por danos morais não se confunde com àquela fixada a título de danos estéticos, eis que distintas as suas causas, merecendo, pois, indenizações em separado, a teor da doutrina e jurisprudência dominantes, conforme acórdão da lavra do eminente Des. Sergio Cavalieri Filho, in verbis: 2003.001.29132 – APELACAO CIVEL RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. OMISSIS DANO ESTÉTICO E DANO MORAL. Cumulação. Embora em sede doutrinária compartilho do entendimento da douta sentenciante, acompanho a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que evoluiu no sentido de admitir a acumulação do dano estético com o dano moral: ´Nos termos em que veio a orientar-se a jurisprudência das Turmas que integram a Seção de Direito Privado deste Tribunal, as indenizações pelos danos moral e estético podem ser cumuladas, se inconfundíveis suas causas e passíveis de apuração em separado´ (RSTJ 105/332). Provimento parcial dos recursos.

III Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido para condenar a parte ré a pagar ao autor:

1) Pensões vencidas e vincendas, no valor mensal de R$ 2.315,62, o qual deverá ser pago pelo réu, em caráter vitalício, desde a data do acidente. As parcelas vencidas deverão ser pagas com a correção monetária e juros legais de 0,5% ao mês, desde a data do fato, eis que se trata de responsabilidade civil extracontratual (súmula 54 do STJ);

2) Indenização por danos estéticos em valor equivalente a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), corrigido monetariamente e acrescido de juros legais de 0,5% ao mês, a contar do evento;

3) Indenização por danos morais, em valor equivalente a R$ R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), corrigido monetariamente e acrescido de juros legais de 0,5% ao mês, a contar do evento;

4) Indenização por danos materiais, consistentes em fisioterapia, acompanhamento médico, aquisição de cadeira de rodas compatível com sua enfermidade, assim como terapia ocupacional, devendo o quantum ser apurado em liquidação de sentença por arbitramento;

5) Despesas com o processo e honorários de advogado, na base de 10% (dez por cento) sobre as prestações vencidas e 12 vincendas, incluindo o valor referente aos danos morais e estético. P.R.I.

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