A casa caiu

Governo de SP deve garantir moradia para famílias desabrigadas

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28 de dezembro de 2006, 13h52

O estado de São Paulo deve garantir moradia temporária para as 40 famílias que moravam em um casarão que desabou no bairro da Liberdade, no centro da capital paulista. O desembargador Antônio Rulli concedeu liminar em Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública do estado. Em caso de descumprimento, a multa diária fixada é de R$ 10 mil.

O pedido apresentado pelo defensor Carlos Henrique Aciron Loureiro foi baseado no artigo 2º da Lei Estadual 10.365/99. O dispositivo determina que o estado faça a locação de imóveis particulares para abrigar pessoas de baixa renda, inclusive quando expostas a condições subumanas em área de risco ou que tenham tido a moradia atingida por alguma espécie de catástrofe.

Segundo Loureiro, alguns pagavam aluguel por um quarto. Outros apenas ocupavam um espaço no casarão. Se o estado não recorrer, o defensor diz que a liminar deve valer enquanto as pessoas permanecerem sócio-economicamente pobres. Ele ressalta que a locação social não é absolutamente satisfatória. “Isso só acontece quando forem inseridos em programas para adquirir um imóvel próprio, financiado pelo estado”. Uma ação para requerer o direito de integrar um programa de financiamento também deve ser ajuizada em favor dos desabrigados.

O cortiço sofreu dois incêndios antes de desabar. Há suspeita de que os incêndios podem ter sido criminosos. O caso foi registrado no 1º Departamento de Polícia.

O local foi interditado pela prefeitura de São Paulo. As famílias foram transferidas para albergues na região central e na zona oeste. Segundo a Defensoria, a prefeitura não cumpriu o acordo para que as famílias fossem encaminhadas para uma escola municipal ou para o mesmo albergue.

Histórico

Em primeira instância, o pedido foi negado. A Defensoria Pública entrou com Agravo de Instrumento no Tribunal de Justiça de São Paulo. O defensor argumentou que é obrigação do Estado concretizar política de habitação em favor da população de baixa renda, conforme previsto no artigo 23 da Constituição Federal.

Segundo Loureiro, os assentamentos informais são uma alternativa para o acesso à moradia pela a população de baixa renda, “que se funda numa realidade de profunda exclusão social”. Por isso, para ele, o Estado deve criar projetos de urbanização que passem pela regularização dos assentamentos informais. Além disso, defendeu a urgência da transferência dos moradores para imóveis alugados pelo estado, uma vez que o segundo incêndio aconteceu depois que a ação foi proposta.

O desembargador Antônio Rulli concluiu que realmente há urgência na transferência dos ocupantes do cortiço. Por enquanto, a liminar ainda não foi cumprida pelo governo do estado.

Leia a inicial e a liminar:

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA MM __ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE SÃO PAULO.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, pelo Defensor Público que esta subscreve, vem a presença de V. Exa., com fundamento no art. 1º, inc. VI c/c 5º da Lei 7.347/85, c/c art. 5º, inc. VI, alínea ‘g’ da Lei Complementar Estadual 988/06, art. 182 e 183 da CF88, c/c art. 170, “caput”, e inc. III c/c art. 1º, “caput” e inc. III e art. 3º, incs. I e III da CF/88, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido liminar, em face da Fazenda Pública do Estado de São Paulo, pessoa jurídica de direito público interno, representado pelo Procurador Geral do Estado, Dr. Elival da Silva Ramos, com sede nesta Capital, a R. Pamplona, 227, 7º andar, pelos motivos de fato e de direito a seguir expostos:

I – DA LEGITIMIDADE ATIVA

1. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem legitimidade ativa para propor a presente, eis que, como instituição essencial à função jurisdicional, a qual incumbe a defesa dos necessitados (art. 134 da CF/88 e art. 103 da CESP/89) é órgão da administração pública, pelo qual se concretizam objetivos fundamentais da república, como o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, e mais especialmente o de erradicar a pobreza e a marginalidade, reduzindo as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incs. I e III da CF/88 c/c art. 3º da Lei Complementar Estadual 988/06).

2. Com efeito, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo é órgão estatal, que representa adequadamente, haja vista suas próprias funções institucionais, os interesses dos necessitados no âmbito do processo coletivo.

3. Decerto, no presente caso, há pertinência temática entre a defesa dos interesses das pessoas pobres, que constitui o núcleo funcional da atuação da instituição, e a questão colocada na presente ação, que diz com a concessão de benefício de assistência habitacional para famílias de baixa renda (art. 1º da Lei Estadual 10.365/99).

4. Decerto, constitui atribuição institucional da Defensoria Pública promover ação civil pública para a tutela de qualquer interesse difuso, coletivo e individual (art. 5º, inc. VI, alínea ‘g’ da Lei Complementar Estadual 988/06), sendo que qualquer Defensor Público cumpre executar as atribuições institucionais da Defensoria Pública, na defesa judicial, no âmbito coletivo, dos necessitados (art. 50 da Lei Complementar Estadual 988/06).


5. Assim, a Defensoria Pública se afirma como instituição dotada de legitimidade autônoma, para a condução do processo, no que disser respeito ao interesse coletivo dos necessitados.

6. Conforme ensina a Prof. Cláudia Carvalho Queiroz:

“É certo que a Lei n. 7.347/85 – que disciplina a ação civil pública – só confere legitimidade autônoma, concorrente e disjuntiva para a condução do processo coletivo ao Ministério Público, União, Estados-membros, Municípios, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista ou associações constituídas há, no mínimo, um ano e que tenham entre as suas finalidades institucionais a defesa dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos pleiteados.

Apesar da “suposta” taxatividade do rol elencado no art. 5º. da supracitada lei, os elaboradores do Código de Defesa do Consumidor, inspirados na “class action” do direito norte-americano, introduziram, entre as normas de proteção a parte mais vulnerável da relação de consumo, a tutela coletiva, conferindo, por meio da disposição inserta no Título III, no inciso III do art. 82 do aludido diploma legal, legitimidade para o ajuizamento das ações coletivas às entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica.

Deste modo, diante da determinação contida no art. 117 da Lei n. 8.078/90 de aplicação, no que for cabível, dos dispositivos constantes no Título III do CODECON para a defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, a doutrina e jurisprudência pátrias, embora de maneira ainda acanhada, vêm firmando o entendimento de que, para fins de publicização da ação civil pública, deve-se utilizar um critério pluralista, de forma a incluir entre os legitimados para a propositura de tal ação até mesmo entidades ou órgãos públicos sem personalidade jurídica.

Acrescente-se também que o art. 129, § 1º., da Constituição Federal assinala em termos genéricos a legitimidade de “terceiros” para propor ação civil pública na defesa dos interesses metaindividuais.

Explicitando o entendimento supra, Watanabe preleciona que:

Não se limitou o legislador a ampliar a legitimação para agir. Foi mais além. Atribui legitimação ad causam a entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, o que se fazia necessário para que os órgãos públicos como o PROCON (Grupo Executivo de Proteção ao Consumidor), bastante ativos e especializados em defesa do consumidor, pudessem também agir em juízo, mesmo sem personalidade jurídica.

Igualmente, Mancuso propõe que

“a melhor solução parece mesmo ser a pluralista, isto é, a que abre uma legitimação… difusa a quem pretenda (e demonstre idoneidade) para tutelar interesses que são… metaindividuais.”

Complementando a lição, assevera que:

Presentemente, registra-se a tendência a reconhecer legitimação para agir aos grupos sociais de fato, não personificados. E isso em função de duas considerações: a) a natureza mesma da tutela aos interesses metaindividuais conduz, de per si, a uma legitimação… difusa, de modo que pareceria incoerente um excessivo rigor formal na constituição de grupos ou associações que pretendam ser portadores de tais interesses em juízo; b) corolariamente, segue-se a desvalia da exigência da personalidade jurídica como pressuposto da capacidade processual em tem de interesses difusos.

A bem da verdade, em tema de interesses metaindividuais, o critério legitimante não decorre da titularidade do direito material requestado, mas sim da idoneidade do seu portador, razão pela qual a Lei Consumerista, acertadamente, outorgou legitimidade ativa para a propositura de ações civis públicas a entidades ou órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que detentores de mera personalidade judiciária.

Assim sendo, nada obsta que a Defensoria Pública, órgão público essencial ao exercício da função jurisdicional, proponha ações civis públicas para defesa de interesses metaindividuais, sobretudo por se tratar de instituição imbuída da função estatal de prestar assistência jurídica integral e gratuita a todos aqueles, individual ou coletivamente considerados, disponham de parcos recursos financeiros.

Hugo Nigro Mazzilli, apesar de corroborar esse entendimento de possibilidade de inclusão dos órgãos e entidades da administração pública entre os legitimados ativos para propositura da ação civil pública ou coletiva, estabelece uma restrição, pontificando que:

Isso significa que órgãos públicos especificamente destinados à proteção de interesses transindividuais, ainda que sem personalidade jurídica, autorizados pela autoridade administrativa competente, podem ajuizar ações civis públicas ou coletivas, não só em matéria defesa do consumidor, como também do meio ambiente, de pessoas portadoras de deficiência, de pessoas idosas, ou quaisquer áreas afins, o que é conseqüência das normas de integração entre a LACP e CDC. Esses órgãos públicos não podem, sponte sua, ajuizar as ações; dependem de autorização administrativa competente (princípio hierárquico), que pode ser específica ou genérica, mas, em qualquer caso, sempre necessária.


Não obstante a proficiência do magistério supra, discordamos da imprescindibilidade de autorização da autoridade administrativa superior para propositura de ações civis públicas por órgãos ou entidades públicas, especialmente quando a mesma for ajuizada pela Defensoria Pública.

Após a publicação da Emenda Constitucional de n. 45, em 31 de dezembro de 2004, o legislador constituinte conferiu às Defensorias Públicas autonomia administrativa, funcional e financeira, de forma que não há como se vincular sua atuação a qualquer autorização de autoridade superior, notadamente porque se trata de órgão público absolutamente independente e sem qualquer subordinação ao chefe da administração pública direta.

Sobre o princípio da independência funcional da Defensoria Pública, Marília Gonçalves Pimenta afirma que:

A instituição é dotada de autonomia perante os demais órgãos estatais, estando imune de qualquer interferência política que afete sua atuação. E, apesar do Defensor Público Geral estar no ápice da pirâmide e a ele estarem todos os membros da DP subordinados hierarquicamente, esta subordinação é apenas sob o ponto de vista administrativo. Vale ressaltar, ainda, que em razão deste princípio institucional, e segundo a classificação de Hely Lopes Meirelles, os Defensores Públicos são agente políticos do Estado.

Bem assim, impende observar que, consoante o preceito da unidade e da indivisibilidade, a Defensoria Pública corresponde a um todo orgânico, não estando sujeita a rupturas ou fracionamentos, de forma que aos Defensores Públicos permite-se, no exercício do mister de patrocinar a assistência jurídica gratuita aos necessitados, substituir-se uns aos outros, independentemente de qualquer autorização do Defensor Público Geral, haja vista que atuam sempre sob a ótica dos mesmos fundamentos e finalidades.

Majore-se, ainda, que a jurisprudência pátria vem acolhendo, sem maiores obstáculos, a legitimidade da Defensoria Pública para propositura da ação civil pública, sendo válido colacionar os seguintes arestos:

Direito Constitucional. Ação Civil Pública. Tutela de interesses consumeristas. Legitimidade ad causam do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública para a propositura da ação. A legitimidade da Defensoria Pública, como órgão público, para a defesa dos direitos dos hipossuficientes é atribuição legal, tendo o Código de Defesa do Consumidor, no seu art. 82, III, ampliado o rol de legitimados para a propositura da ação civil pública àqueles especificamente destinados à defesa de interesses e direitos protegidos pelo Código. Constituiria intolerável discriminação negar a legitimidade ativa de órgão estatal – como a Defensoria Pública – as ações coletivas se tal legitimidade é tranqüilamente reconhecida a órgãos executivos e legislativos (como entidades do Poder Legislativo de defesa do consumidor. Provimento do recurso para reconhecer a legitimidade ativa ad causam da apelante.

Agravo de instrumento. Ação Civil Pública. Defesa de direito coletivo. Legitimidade ativa da Defensoria Pública. Existência. Decisão que impede a interrupção do fornecimento de energia elétrica motivada pelo não pagamento das contas. Imperceptível a necessária verossimilhança. Ausente a razoabilidade, quando se premia a inadimplência, pondo em perigo de colapso o fornecimento de energia elétrica, levando, assim, o risco de dano irreparável a toda a coletividade. Recurso provido. Decisão cassada.

Ação Civil Pública – Defensoria Pública – Legitimidade ativa – Crédito educativo – Agravo de instrumento. Ação Civil Pública. Crédito Educativo. Legitimidade ativa da Defensoria, para propô-la. Como órgão essencial à função jurisdicional do Estado, sendo, pois, integrante da Administração Pública, tem a Assistência Judiciária legitimidade autônoma e concorrente, para propor ação civil Pública, em prol dos estudantes carentes, beneficiados pelo Programa do Crédito Educativo. Assim, a decisão que rejeitou a argüição de ilegitimidade ativa, levantada pelo Parquet, não lhe causou qualquer gravame, ajustando-se, in casu, à restrição acolhida na ADIN 558-8-RJ – Recurso reputado prejudicado em parte e em parte desprovido.

Irrefragável, pois, o reconhecimento de legitimação ativa autônoma para a condução do processo coletivo, concorrente e disjuntiva, à Defensoria Pública, especialmente como forma de cumprimento do comando constitucional de garantir aos necessitados o pleno acesso à Justiça”. “A legitimidade da Defensoria Pública para propositura da ação civil pública”. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 867, 17 nov. 2005. Disponível em: .

II – DOS FATOS

7. No dia 16/12/06, o prédio sito a Av. Liberdade, 340, aproximadamente as 2:00 hs., desabou, em sua parte da frente, ferindo 5 pessoas, inclusive 1 criança, e deixando desabrigadas, aproximadamente, 40 famílias.

8. O local foi interditado pela Prefeitura do Município de São Paulo, tendo sido oferecido pela Assistência Social da Subprefeitura da Sé abrigo no alburgue da Boracéia, que, tradicionalmente, presta assistência a população moradora de rua.

9. A maior parte da população moradora do local, onde funcionava um cortiço, porém, recusou a oferta da Prefeitura, eis que só poderiam dormir nos abrigos, sem poder levar quaisquer de seus pertences, que ainda estão entre os escombros, passando a se abrigar nos fundos do prédio, onde funciona um estacionamento.

10. Assim é que as vítimas do desabamento deste cortiço permanecem completamente expostas, entre elas, dezenas de crianças, idosos e deficientes, sem qualquer moradia que lhes sirva de abrigo, de modo a lhes proporcionar uma vida mais digna.

11. Ocorre que, em assim sendo, houve violação a ordem urbanística, eis que os então ocupantes do cortiço desabado, todos de baixa renda, deixaram de fruir dados benefícios de uma cidade sustentável, pela aplicação dos instrumentos de política habitacional do Estado.

12. Com efeito, os então ocupantes, todos de baixa renda, foram atingidos por uma catástrofe, estando, ainda agora, se abrigando em condições sub-humanas, completamente expostos, e ainda, de qualquer modo, em área de risco.

13. Decerto, conquanto tais ocupantes tenham direito a concessão dos benefícios de assistência da política habitacional do Estado, em condições prioritárias, inclusive, a não realização das ações do programa de locação social, definido pela Lei 10.365/99 viola um direito coletivo à ordem urbanística, na medida em que desconsidera a obrigação do Estado, de dar moradia a estes ocupantes em outro local, como conseqüência de uma política de desenvolvimento habitacional (art. 23, inc. IX).

14. Com efeito, estes ocupantes tem direito a moradia digna, como direito social, fundado na obrigação dos Poderes Públicos de concretizar políticas públicas de habitação social.

IV – DO DIREITO

15. O Direito à moradia é um direito fundamental, reconhecido pela Constituição (art. 6º da CF/88) e por diversos Tratados de Direito Internacional dos quais o Brasil é signatário (Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948 – art. XXV, item 01; Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966 – art. 11); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965 (art. V); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979 – art. 14.2, item h; Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989 – art. 21, item 01; Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, de 1976 – Seção III “8” e Capítulo II “A.3”; Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992 – Capítulo 7, item 6), e, como tal, têm dois aspectos: um negativo, que diz com a proibição de políticas públicas que dificultem ou impossibilitem o exercício do direito à moradia, e outro, positivo, que diz com a obrigação do Estado de criar políticas públicas tendentes a promover e proteger o direito à moradia.

16. Nesse sentido, o art. 6º da CF/88 define o direito fundamental à moradia como direito social, que resta relacionado ao dever do Estado de concretizarem à suas políticas públicas de habitação social.

17. Assim, cabe, dentro da programação de políticas públicas urbanas, a promoção e a proteção do direito à moradia, com a intervenção do Estado no domínio econômico para a garantia do acesso à propriedade imobiliária, seja através da regulamentação do seu uso, de modo a atender a sua função social, ou pela regulamentação do mercado fundiário, na disposição de sistemas de financiamento de habitação de interesse social ou na disposição de projetos de urbanização que passem pela promoção da regularização dos assentamentos informais.

18. Os assentamentos informais, de aparelhamento urbanístico precário, tem sido a alternativa de acesso a moradia dada a população de baixa renda, que se revela verdadeira compulsão, eis que se funda numa realidade de profunda exclusão social, que passa basicamente por uma aguda desigualdade na distribuição de renda, tudo de modo a perceber-se tal como ardiloso dispositivo de permanente indisposição com a condição digna da vida humana.

19. Daí a intervenção do Estado no domínio econômico, de modo a criar projetos de urbanização que passem pela regularização fundiária dos assentamentos informais, como forma de tentar solucionar o problema do direito à moradia, mais do que encaminhamento a uma questão de justiça social (art. 3º, incs, I e III da CF/88), é um resposta ao desafio de defender a dignidade humana como direito fundamental (art. 1º, inc. III da CF/88).

20. Daí que o art. 2º da Lei Estadual 10.365/99, determina que o Estado contrate a locação de imóveis particulares, para abrigar pessoas de baixa renda, inclusive, com preferência de atendimento (art. 4, inc. I), quando expostas a condições subumanas, em área de risco ou que tenham tido sua moradia atingida por alguma espécie de catástrofe.

21. Assim sendo, cabe ressaltar, neste passo, o objetivo renovado da própria Jurisdição, que, nessa medida, torna-se elemento de inclusão social, que tem sua legitimidade na medida que atua no sentido da realização dos objetivos republicanos fundamentais (art. 3º da CF/88),

22. Com efeito, na lição do Prof. Jonatas Luiz Moreira de Paula,

“… a jurisdição é uma atividade que se destina à formação e composição de uma sociedade livre, justa e solidária, onde está garantido o desenvolvimento social nacional, com a pobreza e a marginalização erradicados e reduzidas as desigualdades sociais e regionais, com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.

Este é o tipo de sociedade que se busca formar; noutras palavras, a sociedade justamente constituída, é o ‘todo’ que se busca construir mediante o consórcio de esforços dos demais setores da sociedade e do Estado, sendo a atividade jurisdicional um dos elementos de formação.

Não se pretendeu qualificar a jurisdição como ‘instrumento’ de inclusão, visto que se busca algo mais do que um simples caráter adjetivo do direito processual ou da atividade jurisdicional. Neste particular, a atividade jurisdicional, e implicitamente o direito processual, assume um caráter material, à medida em que passa a compor a ordem social.

De igual forma, a jurisdição é algo mais que um ‘meio’ de inclusão social, porque a atividade jurisdicional esta incluída no comprometimento dos fins do Estado. Se fosse um simples ‘meio’ não se perceberia este compromisso, mas uma simples atividade de mero exercício, à margem dos fins do Estado.

Daí que, por ser elemento, significa que a jurisdição integra o ambiente social complexo e desigual e tem por essa razão essencial o cumprimento dos fins delineados no art. 3º, da CF. Por isso, a atividade jurisdicional é teleologicamente, uma atividade material, tendo em vista que visa a promoção da justiça social, alterando substancialmente o ambiente em que está inserida.

Não cumprindo com os fins determinados no art. 3º, da CF/88, a jurisdição torna-se ‘elemento estranho’, uma parte que não colabora com o ‘todo’ e que não constrói. Assim ocorrendo, a jurisdição padeceria de legitimidade no plano político e atuaria em simples conservação de direitos no plano do ordenamento jurídico, estancando o desenvolvimento e a promoção social” (A Jurisdição como elemento de inclusão social – revitalizando as regras do jogo democrático, 1ª Edição, 2002, Ed. Manole, pág. 87-88).

23. É preciso dizer, neste passo, que a legitimidade procedimental da jurisdição não deve significar arbítrio jurisdicional, com a decisão representando sua vontade de tornar seus valores dublando a vontade do direito, os fundamentais, aqueles que estariam em jogo na solução do problema posto em questão.

24. A afirmação da legitimidade procedimental da jurisdição vem, decerto, pela ponderação de valores: tal é necessária num debate democrático conduzido razoavelmente pelo discurso da jurisdição. Porém, com a desilusão histórica das concepções metafísicas do Direito, e o desengano com a concepção positivista, enquanto mecanismos de legitimação do jurídico, a esperança de uma fundamentação absoluta se perde definitivamente: esta nova consciência jurídica já não permite sustentar a legitimidade do direito num suposto consenso valorativo material. Daí, um novo paradigma se apresenta para a jurisdição constitucional, o modelo procedimental / discursivo habbermasiano.

25. Tal modelo, ao transcender as diversas visões de mundo, funda-se sobre uma pluralidade de perspectivas valorativas, sustentadas racionalmente, permitindo, a par da ampla participação de todos os possíveis interessados, na forma do contraditório, uma adequação das normas às circunstâncias do caso concreto.

26. Dito isto, e com os olhos voltados para as exigências de uma abertura para o diálogo que o modelo procedimental pede para a realização do princípio democrático na jurisdição constitucional, vejamos os contornos do caso em concreto.

27. Constitui obrigação do Estado concretizar sua política de habitação em favor da população de baixa renda, nos termos do art. 23, inc. IX da CF/88 c/c Lei Estadual 10.365/99.

28. Nesse sentido, cabe a concretização dessa política de desenvolvimento urbano, pela imediata disponibilidade de imóveis que possam servir de abrigo a essa população vítima desta catástrofe.

29. Em verdade, o judiciário tem legitimidade para o exercício do controle das políticas públicas, não obstante não tenha investidura democrática. Decerto, sua legitimidade não é política, mas sim constitucional: sua missão é garantir o exercício das políticas públicas tal como elaboradas pelo legislador diante do administrador, a fim de dar efetividade aos direitos fundamentais. Com efeito, na lição do Prof. Américo Bedê Freire Júnior

“Claro que existe legitimidade do juiz para atuar além da lei, mas tal situação depende de uma fundamentação adequada. Nesse diapasão, Aury Lopes Jr. Afirma com propriedade que ‘a legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático da Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem uma nova posição dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial’

Frise-se que, quando se reconhece a legitimidade do juiz para atuar além da lei, isso não significa que o juiz está colocado acima dela. Colocar o juiz acima do legislador é repetir o erro que se critica (superioridade do legislativo, ou do executivo) (grifo nosso), apenas mudando o conteúdo subjetivo do erro. (…)

Não se quer uma nova ditadura, agora, de juízes, pelo contrário, o que se pretende é a prevalência dos direitos humanos e, para tanto, não se concebe o Juiz Pilatos, ou seja, o que não pretende assumir sua importantíssima missão na nova ordem constitucional.

Como foi dito (…), há uma rediscussão da própria noção de democracia, o que implica não ser, necessariamente, o voto o único fator de legitimação.

Ademais, para utilizar uma expressão tão cara a doutrina norte-americana, os juízes são um poder contramajoritário, para reisistir, como lembra John Elster, comparando a Odisséia de Homero aos cantos das sereias.

A regra da maioria não pode ser absoluta, sob pena de superarmos a ditadura de um tirano e criarmos a ditadura da maioria (mil tiranos). Afirmar, portanto, o caráter contramajoritário de um poder em nada significa retirar a sua legitimidade, pois, repita-se,a legitimidade dos juízes decorre da própria Constituição e da fundamentação de suas decisões. Referente a isso Thomas Fleiner pontifica:

‘A democracia existe para a maioria étnica (ou econômica) (grifo nosso). O Estado utiliza a roupagem constitucional e democrática para dissimular a discriminação humilhante da maioria’

‘ A democracia não deve ser compreendida como forma estatal de dominação da maioria, pois esta pode não ter razão. Os direitos humanos, por exemplo, nunca devem ser sacrificados em favor dos interesses da maioria’

Ademais, devemos lembrar, com José Adércio Leite, que ‘a concepção de democracia, como se defende neste artigo, não se reduz a meros procedimentos de selação de dirigentes, nem a identidade necessária entre a vontade da maioria ou da opinião pública com a vontade de Deus. A vitória eleitoral não importa a escravidão silenciosa dos derrotados, nem a apuração momentânea e circunstancial de uma opinião pública, sem apoio em reflexões e debates suficientemente informados, reveladora apenas de emoção ou de slogans de propagandas políticas bem-sucedidas’

Há muito que já foi dito que a eleição não corresponde a um cheque em branco e que, portanto, a atuação parlamentar deve respeito à Constituição, devendo o magistrado ter sensibilidade para permitir que a Constituição seja respeitada pelas forças políticas.

Nessa alheta, ainda é de lembrar as ponderações de David Diniz ao destacar que, ‘centrando-se o foco nos direitos fundamentais, o papel do juiz – tomando-se por referência o estado constitucional – é de garantidor da intangibilidade dos direitos individuais do cidadão e não de protetor dos interesses da maioria. Como observa Pawlowski, o juiz que assegura autonomia privada ao cidadão é essencial ao Estado de Direito na medida e que garante que o princípio democrático não terminará em ditadura da maioria’

É claro que tal missão, o controle da política pelo direito, não é fácil. Klaus Stern lembrou-se em palestra:

‘Como minha pátria, o País no qual tenho a honra de proferir esta palestra viveu tempos de ditadura. Nós brasileiros e alemães, sabemos, portanto, que, na história, sempre foi mais difícil submeter o Poder ao Direito do que o Direito ao Poder. Se criarmos agora Estados Democráticos de Direitos, temos um elevado bem a preservar’

A atuação do juiz deve ser tal na efetivação das normas constitucionais, especialmente dos direitos fundamentais, mesmo que isso implique desagradar maiorias ocasionais. Claro que deve ter todo o cuidado nessa missão, pois, como alertou Germana Moraes:

‘Grande, enorme, imensa, gigantesca é a responsabilidade do juiz constitucional – ao atribuir corpo e alma aos princípios, ao dar vida à Constituição: cabe a ele libertar os princípios de sua sina escorpiônica – de sua tendência auto-destrutiva, que ameaça a prática de injustiça em nome da justiça de que eles (os princípios) pretendem realizar. Cabe ao juiz constitucional estar atento para que, em nome dos princípios constitucionais, mais injustiças não sejam perpetradas.

Cabe também a ele, o juiz constitucional, escapar das armadilhas do escorpião e de ser ele próprio um. Relembrando a famosa fábula, quando era transportado nas costas de um sapo, na travessia de caudaloso rio, o lacraio pica o batráquio, provocando o naufrágio dos dois.

É preciso cuidar para que não soçobrem juntos juiz e princípios constitucionais’

Pretende-se uma postura mais ativa do Poder Judiciário, visando preservar a Constituição de políticas indevidas ou de sua falta.

Cabe, por fim, trazer a baila precisa decisão do Min. Celso de Mello, assim resumida e vaticinando o efetivo controle judicial de políticas públicas: ‘ADPF – Políticas Públicas – Intervenção Judicial – Reserva do Possível (Transcrições) ADPF 45 mc/df, rel. Min. Celso de Mello, ementa: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao STF. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da reserva do possível. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos fundamentais de segunda geração)” (O Controle Judicial de Políticas Públicas, RT Editora, 1ª Edição, págs. 58-63).

V- DO PEDIDO

30. Isto posto, requer-se de V. Exa.:

a) que determine a citação do Réu, para que, querendo, responda à presente ação, sob pena de revelia;

b) a intimação do I. Representante do Ministério Público, nos termos do art. 7º, § 1º da Lei 7.347/85;

c) que julgue procedente a ação, condenando a Ré a emitir declaração de vontade, no sentido de contratar a locação de imóveis que possam abrigar as pessoas vítimas da perda da moradia do cortiço sito a Av. Liberdade, 340, ocorrido em 16/12/06, nos termos da Lei Estadual 10.365/99, cuja relação segue em anexo.

d) a concessão de liminar, para determinar a primeira co-Ré que coloque a disposição dos então ocupantes do cortiço, moradia digna, em outro local, sob pena de multa diária, nos termos do art. 11 da Lei 7.347/85, de R$ 10.000,00;

31. Provará a Autora o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, em especial, pelo depoimento pessoal dos representantes legais da Ré, sob pena de confesso, oitiva de testemunhas, a serem oportunamente arroladas, perícia técnica de engenharia, e pela juntada de documentos, inclusive através da expedição de ofícios.

32. Atribui-se à causa o valor de R$ 144.000,00 (estimativa de 40 famílias, no valor de R$ 300,00 para cada imóvel, para cada família, durante um ano).

Termos em que,

P. deferimento.

São Paulo, 19 de dezembro de 2006.

Carlos Henrique A. Loureiro

Defensor Público

Leia a decisão liminar

Agravo de instrumento n° 616.949-5/5-00

Proc. n° 137976/2006 – 4ª Vara da Fazenda Pública da Comarca da Capital

Agravante: Defensoria Pública do Estado de São Paulo

Agravada: Fazenda do Estado de São Paulo

Desembargador Antônio Rulli

Trata-se de recurso de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo ativo, interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo contra a r. decisão reproduzida às fls. 109 (fls. 136 dos autos da ação civil pública), que indeferiu a liminar pleiteada.

Alega, em resumo, que a transferência dos ocupantes do cortiço da Av. Liberdade nº 340 para outro local é de extrema urgência, vez que referido imóvel foi tomado por um incêndio após o ajuizamento da demanda e que referidos moradores possuem direito à moradia digna, como direito social, respaldo na obrigação dos Poderes Públicos de concretizar políticas públicas de habitação social.

Sustenta, ainda, que a decisão atacada violou o art. 461, § 3° c/c art. 273 “caput” e inc. I. c/c art. 273 do CPC, c/c art. 19 da Lei 7.347/87 e art. 6º da CF/88 c/c art. 2° da Lei Estadual 10.365/99.

Com tais argumentos, pleiteia a reforma da decisão agravada, com determinação liminar para que a ré, ora agravada, coloque à disposição dos ocupantes do cortiço, nos termos da Lei 10.365/99, moradia em outro local, sob pena de multa diária, nos termos do art. 11 da Lei 7.347/85, de R$ 10.000,00.

É o relatório.

1. Processe-se o agravo de instrumento.

2. Nos termos do art. 558, caput, do CPC, concedo o efeito suspensivo ativo pretendido, dada a relevância da fundamentação, para a transferência dos ocupantes do cortiço, em caráter de urgência, nos termos da Lei nº 10.365/99, providência a ser tomada pela agravada, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) nos termos do art. 11 da Lê 7.347/85.

3. Comprove a agravante o cumprimento do disposto no artigo 526 do Código de Processo Civil.

4. Intime-se a agravada para que apresente contra-razões.

5. Requisitem-se informações ao MM. Juiz da causa.

6. Vista à Douta Procuradoria Geral de Justiça.

7. Atendidas as exigências supra, tornem os autos conclusos ao Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator.

São Paulo, 22 de dezembro de 2006.

Antônio Rulli

Desembargador

(no impedimento ocasional do Relator)

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