Direito na rede

Em 2006, Justiça e Legislativo deram novos rumos à Internet

Autor

  • Omar Kaminski

    é advogado e consultor gestor do Observatório do Marco Civil da Internet membro especialista da Câmara de Segurança e Direitos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de Internet da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB-PR.

26 de dezembro de 2006, 12h53

Este texto sobre Direito Informático faz parte da Retrospectiva 2006, uma série de artigos em que especialistas analisam os principais fatos e eventos nas diferentes áreas do direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

O ano foi significativo para essa “nova área” do Direito. Com destaque para as acaloradas discussões sobre o Projeto de Lei 76/2000 do Senado, sobre crimes informáticos ou cibercrimes, que acabou apelidado de projeto Big Brother. Com a reunião de três projetos em um parecer com substitutivo, que recebeu várias versões, instaurou-se a discussão do controle versus privacidade no âmbito das condutas penais.

A respeito da polêmica, vale citar decisão proferida em setembro do corrente ano pelo Superior Tribunal de Justiça, na Carta Rogatória 297 oriunda do Tribunal da Comarca de Düsseldorf, Alemanha. A finalidade da ação foi a de obter dados cadastrais de usuário dos serviços da UOL, em inquérito que investiga a ocorrência de sabotagem informática. Naquela oportunidade, o STJ afirmou que a Corte “já proferiu decisão no sentido de que o fornecimento de dados cadastrais, como o endereço p. ex., não está protegido pelo sigilo”.

O Orkut e o Google permaneceram sob fortes holofotes em vista das iniciativas do Ministério Público Federal de São Paulo, em especial para coibir a pornografia infantil. Tais práticas resultaram na disponibilização de uma ferramenta de “super-moderação” à Polícia Federal e a decretação do fim da privacidade no Orkut, segundo interpretaram alguns.

Projetos que versam sobre o envio e recebimento de e-mails não solicitados também receberam substitutivo na Câmara e o debate sobre o spam promete se intensificar em 2007, uma vez que o “envio único” e as multas ainda permanecem.

Mudanças legais

Mereceu destaque a recente Lei 11.419/06, que regulamentou a informatização do processo judicial ou o “processo eletrônico”. A norma foi sancionada no dia 19 de dezembro, junto a outras leis que instituíram a súmula vinculante e a repercussão geral, destinadas à desburocratização e à filtragem dos recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, evitando recursos meramente protelatórios.

De acordo com seu artigo 14, os sistemas a serem desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário deverão usar, “preferencialmente, programas com código aberto, acessíveis ininterruptamente por meio da rede mundial de computadores, priorizando-se a sua padronização”.

Também o parágrafo único do artigo 541 do Código de Processo Civil, modificado pela Lei 11.341/06, abrangendo a Internet como fonte de dissídio jurisprudencial, demonstra que o legislador aos poucos começa a dar ênfase aos meios eletrônicos e utiliza esses termos em diplomas de grande importância e magnitude.

A IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal aprovou novos enunciados relativos ao Código Civil, e destacamos o de número 297, ao se referir ao artigo 212: “o documento eletrônico tem valor probante, desde que seja apto a conservar a integridade de seu conteúdo e idôneo a apontar sua autoria, independentemente da tecnologia empregada”.

A 1ª Seção do STJ emitiu a Súmula 334 em 13 de dezembro de 2006: “o ICMS não incide no serviço dos provedores de acesso à Internet”.

Conceitos como o tele-trabalho e utilização da Internet e correio eletrônico no ambiente laboral aparecem na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho demonstrando uma preocupação progressiva do Poder Judiciário com a prática justecnológica, e mais uma vez, com a privacidade do obreiro e os limites patronais para monitorá-lo.

Quanto às transações por meio digital, o ano de 2006 reforçou a importância do uso da certificação digital para melhor segurança. Com a adoção da nova identidade da OAB, contendo chip e certificado digital, será propiciada aos advogados a prática de atos processuais à distância, bem como a manifestação dos atos de manifestação de vontade através do meio eletrônico.

Com esse impulso para que a certificação digital adentre ao cotidiano do causídico brasileiro, será possível uma grande economia na substituição de ritos até então presenciais e realizados com o uso do papel, e maior celeridade em uma série de procedimentos como o peticionamento eletrônico.

A Internet na Justiça

Em setembro de 2006 foi realizado evento na OAB do Paraná em parceria com o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), objetivando discutir assuntos diretamente relacionados ao advogado e ao uso da Internet. Uma das conclusões foi a necessidade de recadastramento e reformulação das regras para outorga dos domínios com a terminação “adv.br”, cuja utilização, muitas vezes, está dissociada do exercício profissional.

O “escândalo Cicarelli” também chamou bastante atenção, e não apenas provou a força com que as ferramentas de distribuição colaborativa de conteúdo se desenvolveram este ano, mas principalmente que a discussão jurídica já alcançou os calcanhares do que se convencionou chamar de Web 2.0. E o site do “faça você mesmo seu vídeo”, o YouTube, também ganhou lugar de destaque, inclusive com o vídeo da Cicarelli, trechos dos antigos filmes da Xuxa, além de outras indiscrições de artistas em geral e, agora, de pessoas comuns e muitas vezes anônimas.

Neste mesmo diapasão, decisões judiciais envolvendo desde comentários ofensivos em blogs e Orkut até mesmo a utilização de links patrocinados em atos de concorrência desleal prometem chamar a atenção em 2007.

Tais avanços brasileiros foram acompanhados pelas discussões internacionais, muitas vezes voltadas ao desenlace dos prementes conflitos de poder entre quem fabrica “códigos” digitais (softwares, protocolos, linguagens) e quem elabora as normas jurídicas.

O Icann Meeting 2006, ocorrido em dezembro em São Paulo, expôs a pluralidade de interesses e atores inerente à Internet, com destaque ao papel do Comitê Gestor da Internet no Brasil, e a fertilidade das discussões e iniciativas de sua regulamentação, ao mesmo tempo centralizada e fracionada.

Nesse evento, merece registro a formação da primeira Organização Regional “At Large” para América do Sul e Caribe, para representatividade da sociedade civil junto ao órgão maior da Internet mundial. O Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI) foi a primeira entidade brasileira habilitada como “Estrutura At Large” junto ao Conselho Consultivo "At Large" (ALAC) da Icann.

Muitos dos temas que receberam destaque no ano de 2006 serão retomados com maior força em 2007, visto a programação do Internet Governance Fórum 2007, que está previsto para acontecer em novembro, no Rio de Janeiro. Um dos temas de destaque será o grau de neutralidade da rede e o quanto isso afetará a vida de cada um dos usuários. A sociedade civil já se prepara para formar grupos de trabalho e liderar as discussões.

Canivete do século XXI

Como pano de fundo, será que essa “nova área”, ou novo ramo do Direito merece o status de autônoma, a ser discutida e lecionada em universidades, ou irá permear todas as outras? Atuantes em áreas tradicionais terão que se aprimorar nos conceitos da Informática Jurídica? É certo que já há bons cursos, tanto de curta duração como especializações. Mais e mais profissionais direcionam sua atenção para as influências das tecnologias sobre o Direito.

Os que dizem não à criação de um pretendido direito eletrônico (ou internético, ou informático, ou virtual, ou…) têm um bom embasamento a justificar suas posições, haja vista que a Internet não criou nenhum novo bem jurídico a ser protegido — logo não há que se discutir sobre a criação de um novo ramo do Direito.

A ação, segundo os que defendem essa corrente, pode ser eletrônica (um contrato, uma ofensa, um estelionato ou invasão de privacidade, por exemplo), mas o direito não.

Chamam a atenção para a lógica do canivete suíço, que para tudo serve. Se for inserido um pouco numa região não vital, pode resultar em lesão corporal leve; no entanto, se for espetado no coração pode resultar em homicídio. Os antigos legisladores foram sábios e não legislaram sobre o canivete, mas sobre os efeitos de sua empunhadura e do resultado.

E isso é o que tem que ser feito em relação à Internet que, de certo modo, é o canivete do cidadão do século XXI. Ela é um meio, apenas isso.

Esta retrospectiva foi elaborada em âmbito coletivo. Colaboraram Amaro Moraes e Silva Neto, Alexandre Atheniense, Ana Amélia de Castro Ferreira, Dirceu Santa Rosa, Carolina Rossini, Daniel Arbix, Alan Balaban Sasson, Amadeu Vidonho Jr., Leandro Botazzo Guimarães e Eliane Saldan.

Autores

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    é advogado, diretor de Internet do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI) e membro suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

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