Contrato quitado

Com prestações pagas, mutuário tem direito a cédula hipotecária

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25 de dezembro de 2006, 6h00

Se todas as prestações da casa própria estiverem quitadas, o agente financeiro deve liberar a cédula hipotecária, independentemente de haver ou não saldo residual. O entendimento é do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Os desembargadores classificaram como relação de consumo o contrato de mútuo habitacional e acolheram o recurso do apresentado Wladimir Cutareli contra a Caixa Econômica Federal. Depois de pagar todas as parcelas do financiamento (180, no total), ele ainda devia R$ 270 mil ao banco.

O entendimento do TRF significa, na prática, que no final do pagamento das prestações, o mutuário pode mover ação para pedir a exclusão da cláusula que diz que ele se responsabilizará pelo saldo residual.

Na ação, Cutareli afirmou que pagou todas as parcelas do financiamento contratado. Quando pediu para que o imóvel fosse transferido para o seu nome, a Caixa apresentou cobrança do saldo devedor, com base na cláusula 39 do contrato. O dispositivo diz que é de inteira responsabilidade do devedor o pagamento de eventual saldo devedor residual, mesmo depois do término do prazo ajustado. Na Justiça, o aposentado pediu a anulação da cláusula e a aplicação do Código de Defesa do Consumidor sobre o contrato firmado.

Já a Caixa alegou ilegitimidade passiva, porque o crédito discutido na ação é da Empresa Gestora de Ativos — instituição pública criada para adquirir bens e direitos das entidades públicas e assumir suas obrigações.

A Emgea contestou argumentando que não se aplica ao contrato em questão o Código de Defesa do Consumidor. A empresa defendeu a necessidade de cumprimento dos contratos e que sempre esteve em dia com todas as suas cláusulas.

Antes de decidir, os membros do tribunal analisaram a jurisprudência sobre a aplicação do CDC. No Superior Tribunal de Justiça é pacífico o entendimento de que em seu artigo 6º, o código permite que o consumidor tem o direito de modificar cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão por conta de fatos que as tornem excessivamente onerosas.

Por isso, o TRF-5 concluiu que o princípio pacta sunt servanda [os contratos devem ser cumpridos] não atinge de modo integral nem o fornecedor nem o consumidor. “Assim, é inconteste a aplicação do CDC aos contratos de mútuos habitacionais”, diz a decisão.

Ultrapassada essa questão, o tribunal passou a verificar os valores do saldo devedor. “Um fato que chama a atenção é a evolução do saldo devedor, sempre crescente, o que leva à conclusão de que a dívida será impagável no prazo contratual”, destaca o acórdão.

Com base nos dados analisados, o TRF-5 julgou abusiva e determinou a nulidade da cláusula 39 do contrato. Os desembargadores destacaram que muitas vezes o valor do saldo residual supera o valor de avaliação do imóvel.

A Associação Nacional dos Mutuários e Moradores comemorou o entendimento do tribunal, que pode beneficiar mutuários de todo o país. De acordo com estimativas da entidade, o número de mutuários do Sistema Financeiro de Habitação que possuem saldo residual ao final dos financiamentos fica em torno de 80% a 90%. Com o entendimento do TRF-5, mais de 6 milhões de pessoas podem ser beneficiadas.

Leia a decisão

Trata-se de ação de rito ordinário, proposta por WLADIMIR CUTARELI, devidamente qualificado e representado por advogado habilitado, contra a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL — CEF, cujo objeto é a revisão do saldo devedor do contrato de mútuo firmado com a ré, para aquisição de imóvel, mais a declaração de nulidade de cláusulas do referido contrato.

Fundamentou a parte autora, a sua pretensão, alegando, em síntese: a) ter realizado o pagamento de todas as parcelas do financiamento contratado junto à CEF; b) após o pagamento do contrato a ré realizou nova cobrança, apresentando valores muito altos sob o argumento de se tratar do saldo devedor; c) a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao contrato em questão; d) a nulidade de diversas cláusulas do contrato firmado entre as partes. Requereu, dessa forma, a nulidade do saldo devedor, em decorrência da nulidade da cláusula contratual que trata do pagamento do mesmo, além da nulidade de diversas outras cláusulas contratuais, sob a alegação de que afrontam o Código de Defesa do Consumidor. Liminarmente, requereu que a rés e abstivesse de praticar qualquer execução judicial ou extrajudicial contra o autor, bem como em negativá-lo em cadastros de mau pagadores.

A liminar foi deferida às fls. 57/59.

A CEF interpôs agravo retido contra o deferimento da liminar (fls. 65/84).

Contestando a ação (fls. 104/106), a CEF argüiu sua ilegitimidade passiva e, no mérito, adotou as razões da contestação da EMGEA. Esta, por sua vez, contestou a ação (fls. 108/129) sustentando que não se aplica ao contrato em questão o Código de Defesa do Consumidor, defendeu a força obrigacional dos contratos, aduzindo que sempre cumpriu com todas as cláusulas do contrato, pugnando, ao fim, pela rejeição de todos os pedidos da parte autora.


Devidamente intimada, a parte autora se manifestou sobre a contestação apresentada pela CEF (fls. 185/186), apresentando, também, resposta ao agravo retido da ré (fls. 187/189), bem como impugnação à contestação da EMGEA (fls. 190/199), em todos os casos reiterando os termos da inicial.

Intimadas as partes para especificarem as provas que pretendiam produzir (fl. 225), apenas a CEF pugnou pela produção de prova pericial (fl. 231).

Despacho à fl. 235, deferiu a produção de prova pericial, nomeando perito para tanto.

A parte autora requereu a desistência de um de seus pedidos, para que não seja necessária a realização de perícia (fl. 237), intimada para se pronunciar sobre este pedido de desistência, a CEF não concordou, somente anuindo se houvesse renúncia ao direito pleiteado (fl. 269).

É o relatório.

II – FUNDAMENTOS

PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE DA CEF

Sustentou a CEF, preliminarmente, sua ilegitimidade passiva, uma vez que essa empresa não é mais titular do crédito objeto da presente demanda, haja vista a cessão do mesmo à Empresa Gestora de Ativos — EMGEA. Esta empresa pública, criada mediante autorização da MP nº 2.196-1, de 28 de junho de 2001, teria o objetivo de adquirir bens e direitos das entidades públicas, podendo, em contrapartida, assumir obrigações destas.

De fato, a referida cessão operou-se anteriormente à propositura da presente ação. Dessa forma, resta evidente a legitimidade passiva da EMGEA, posto que essa empresa já era titular do crédito à época da propositura da ação.

Todavia, sendo a CEF a responsável pela gerência e administração do financiamento habitacional, deve permanecer no pólo passivo da demanda, para responder por eventuais irregularidades que tenham sido praticadas na evolução do contrato. Nesse sentido já decidiu o egrégio TRF4ª Região: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. SFH. CONTRATO DE MÚTUO. CESSÃO DE CRÉDITOS À EMGE A.LEGITIMIDADE PASSIVA. MANUTENÇÃO DA CEF NA LIDE.- A EMGEA – Empresa Gestora de Ativos, criada pelo Decreto nº 3848, de 26 de junho de 2001, deve compor o pólo passivo da demanda, em face da cessão dos créditos hipotecários relativos ao contrato sob exame. De igual modo deve ser mantida a CEF no pólo passivo por ser a administradora do contrato, na qualidade de agente financeiro.” (grifos nossos)(TRF 4ª Região. AI nº 162733. Quarta Turma. Relator: Juiz Edgard A. Lippmann Junior. Publicado no DJ em 14/01/2004, página 320).

Rejeito, pois, a preliminar sustentada pela Caixa.

MÉRITO

Antes de adentrarmos na análise do caso concreto, esboçaremos o entendimento doutrinário e jurisprudencial no tocante à aplicação do CDC aos contratos de mútuo.

O CDC define consumidor como sendo “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.” E, mais adiante, esclarece que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, e crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Por sua vez, o colendo Superior Tribunal de Justiça já pacificou entendimento de que os bancos, como prestadores de serviços especialmente contemplados no art. 3º, § 2º, estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor.

A regra inserta no art. 6º, V, do CDC prevê, como direito básico do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”

O insigne professor Nelson Nery Júnior (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado Pelos Autores do Anteprojeto, Ed. Forense Universitária, 5ª edição, pp. 379/380), ao comentar o aludido dispositivo, preleciona que: (…) “esse artigo modifica inteiramente o sistema contratual do direito privado tradicional, mitigando o dogma da intangibilidade do conteúdo do contrato, consubstanciado no antigo brocardo pacta sunt servanda”.

Por esse princípio, as partes são obrigadas a cumprir as estipulações constantes do pacto contratual, para que o objetivo do contrato seja atingido. Não podem negar-se ao cumprimento de prestações assumidas no contrato. No sistema do CDC, entretanto, as conseqüências do princípio pacta suntservanda não atingem de modo integral nem o fornecedor nem o consumidor. Este pode pretender a modificação de cláusula ou revisão do contrato de acordo com o art. 6º, V, do CDC; aquele pode pretender a resolução do contrato quando, da nulidade de uma cláusula, apesar dos esforços de integração do contrato, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes (art.51, § 2º, do CDC).”

Mais adiante, expõe o aludido autor: “O direito básico do consumidor, reconhecido no art. 6º, nº V, do Código, não é o de desonerar-se da prestação por meio da resolução do contrato, mas o de modificar cláusula que estabeleça prestação desproporcional, mantendo-se íntegro o contrato se sobrevier em fatos que tornem as prestações excessivamente onerosas para o consumidor.”


Prosseguindo, diz: “O juiz, reconhecendo que houve cláusula estabelecendo prestação desproporcional ao consumidor, ou que houve fato superveniente que tornaram as prestações excessivamente onerosas para o consumidor, deverá solicitar das partes a composição no sentido de modificar a cláusula ou rever efetivamente o contrato. Caso não haja acordo, na sentença deverá o magistrado, atendendo aos princípios da boa-fé, da eqüidade e do equilíbrio que devem presidir as relações de consumo, estipular a nova cláusula ou as novas bases do contrato revisto judicialmente. Emitirá sentença determinativa, de conteúdo constitutivo-integrativo e mandamental, vale dizer, exercendo verdadeira atividade criadora, completando ou mudando alguns elementos da relação jurídica de consumo já constituída”.

Ainda no que tange ao tema em foco, vale transcrever os seguintes trechos extraídos do voto-vista proferido pelo Desembargador Federal Francisco Cavalcanti nos autos dos embargos infringentes à apelação cível 177362 / SE, TRF 5ª Região, 3ª Turma:”É certo que, ao lado dos entendimentos jurisprudenciais favoráveis aos mutuários excessivamente onerados com o encaminhamento dos contratos habitacionais, não são raros – muito ao contrário – os precedentes fundados na formação consentida do vínculo contratual, pela adesão voluntária do mutuário às cláusulas do negócio jurídico. Assim, consoante o segundo posicionamento, aderindo, o mutuário, ao contrato, presumida a aceitação de suas cláusulas, não haveria como se permitir o descumprimento posterior fundado na inexeqüibilidade do negócio (pacta sunt servanda). De igual modo, contudo, é também certo que os Tribunais têm reconhecido certas situações em que, por motivo de onerosidade excessiva para uma das partes contratantes,não se mostra razoável insistir na execução de contrato em sua feição originária.Nesse sentido e a título de exemplificação e cotejo, não se pode olvidar a compreensão consagrada quando do julgamento de ações revisionais de contratos de aquisição de veículos, calcadas, as pretensões revisionais, na crise cambial verificada no ano de 1999. Acerca da matéria, decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça: ‘Revisão de contrato — Arrendamento mercantil (leasing) — Relação de consumo — Indexação em moeda estrangeira (dólar) — Crise cambial de janeiro de 1999 — Plano real. Aplicabilidade do art. 6, inciso V do CDC — Onerosidade excessiva caracterizada. Boa-fé objetiva do consumidor e direito de informação. Necessidade de prova da captação de recurso proveniente do exterior.O preceito insculpido no inciso V do art. 6o do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetivada excessiva onerosidade advinda para o consumidor.A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da crise cambial de janeiro de1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas.A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, pela prestação do consumidor indexada ao dólar americano.É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado decapitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu direito de informação (art. 6o, III, e 10, ‘caput’, 31 e52 do CDC).Incumbe à arrendadora se recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade da cláusula de correção pela variação cambial. Esta prova deve acompanhar a contestação (art. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela, sob pena de violar o art. 6o da Lei n. 8.880/94. ‘(RESP 268661/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 16.08.2001, publ. em DJ24.09.2001 – Negritos que não estão no original)Entendeu, a Relatora do mencionado Recurso Especial, pela aplicação do art.6o, V, do Código de Defesa do Consumidor, que fixa, como direito básico do consumidor, ‘a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações proporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas’. Sublinhou a MD Julgadora, que, nos termos da lei, a pretensão revisional mereceria acolhimento, uma vez demonstrada a onerosidade excessiva a que passaria a estar submetido o consumidor em virtude de determinada situação. ( … )Diante do precedente, procurou-se a uniformização no tratamento da matéria.Assim:”LEASING CAMBIAL. Desconsideração de cláusula contratual, ao fundamento de que se revelou excessivamente onerosa para o consumidor. Ressalva do ponto de vista pessoal do relator. Recurso especial não conhecido.”(RESP 331.274/MS, rel. Min. Ari Pargendler, j. em 15.10.2001, publ. em DJ de04.02.2002)Considerando, comparativamente, o valor (entendido como nível de relevância social) dos bens envolvidos — veículo (precedentes acima) e moradia (caso concreto)—, não se mostra racionável admitir a possibilidade de revisão contratual por motivo de inexeqüibilidade, no caso de ajustes de compra de automóveis, não a acatando na hipótese de contratos firmados com vistas à aquisição da casa própria. Também em relação a estes, aplica-se a teoria da imprevisão. “No caso concreto, observadas as planilhas de evolução do débito, que apontam para a irrealizabilidade de sua liquidação, a cláusula do resíduo (não cobertura pelo FCVS) exsurge pela onerosidade excessiva que impõe ao mutuário”.


Assim, é inconteste a aplicação do CDC aos contratos de mútuos habitacionais.

Após essa análise inicial, verifica-se que a parte autora requereu desistência do seu pedido de declaração de que a ré não cumpriu as cláusulas do contrato atinentes ao cumprimento do Plano de Equivalência Salarial, de modo a que não houvesse necessidade de realização de perícia nos autos. Embora a parte ré não tenha concordado com este pedido, verifico que esta não alegou motivo plausível para tanto, mas tão somente porque pretendia a renúncia ao direito alegado. Ademais, o simples pedido de declaração de que a ré não cumpriu com a referida cláusula em nada aproveitaria ao autor acaso os seus demais pedidos forem julgados procedentes, uma vez que já realizou a quitação de todas as 180 parcelas do seu financiamento.

A principal questão a ser dirimida nos autos diz respeito ao saldo devedor e ao saldo residual existente após o pagamento por parte do autor de todas as 180 parcelas oriundas do presente contrato. Um fato que chama a atenção é a evolução do saldo devedor, sempre crescente, o que leva à conclusão de que a dívida será impagável no prazo contratual. Veja-se que mesmo após o pagamento de todas as prestações, o valor devido, e cobrado do mutuário, gira em torno de R$ 270.000,00, por força da cláusula 39ª do contrato em questão.

O fato exposto demonstra a existência de resíduo ao final do prazo contratual, e de valor exorbitante, ressalte-se, sendo irrazoável e injusto imputar ao mutuário a responsabilidade pelo pagamento integral desse saldo residual nas condições estabelecidas no contrato.

Nesse contexto, assim se pronunciou o eminente Desembargador Federal Francisco Cavalcanti, no voto-vista proferido nos autos dos embargos infringentes à apelação cível 177362 / SE, TRF 5ª Região, 3ª Turma (retro citado): “(…) Não é aceitável a imputação ao mutuário de todos os riscos que envolvem o negócio jurídico firmado, enquanto que a instituição financeira fica salvaguardada de contínuas oscilações da economia e dos índices financeiros. Essa assertiva se impõe com ainda maior vigor quando se leva em consideração que o agente financeiro conta com uma estrutura que lhe permite conhecer em detalhes ou prognosticar as variações que refletirão nas prestações e no saldo devedor do contrato, ao passo que o mutuário dificilmente terá esse discernimento. ( … ) A cláusula de resíduo, da forma como atualmente evolui o saldo devedor, transforma mesmo o contrato de mútuo/compra e venda em contrato de aluguel perpétuo, haja vista que, não tendo o mutuário como saldar o débito residual, perderá o imóvel que acreditava estar adquirindo a cada prestação adimplida. Considerando a finalidade do contrato de mútuo, que consiste na transferência da propriedade do bem imóvel ao mutuário, restaria, o referido tipo contratual, descaracterizado diante da insolvabilidade crescente imputada ao prestamista, insolvência que implicará na não transferência da propriedade da coisa fungível. ( … )”

No caso concreto dos presentes autos, o instrumento contratual trata do saldo residual na cláusula 39ª. Façamos, pois, uma análise da mesma.

“CLÁUSULA TRIGÉSIMA NONA — Em decorrência do que dispõe o Decreto-lei nº 2.349, de 29.JUL.87, no presente contrato de financiamento não haverá contribuição ao Fundo de Compensação de Variações Salariais — FCVS, sendo da inteira responsabilidade do DEVEDORE, o pagamento de eventual saldo devedor residual, quando do término do prazo ajustado, conforme letra C deste instrumento.

PARÁGRAFO PRIMEIRO – Na ocorrência do saldo residual, de que trata o caput desta cláusula, esse resíduo deverá ser resgatado pelo DEVEDOR no prazo de 90 (noventa) meses, através de prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira recalculada a partir do referido saldo e para o prazo de prorrogação.

PARÁGRAFO SEGUNDO – Serão mantidas todas as condições aqui contratadas, tais como: taxa de juros, sistema de amortização, incidência do Coeficiente de Equiparação Salarial – CES, no valor de 1,18, sendo os critérios de reajustes, dos encargos mensais, vinculados ao Plano de Equivalência Salarial por categoria Profissional, e dos saldos devedores remanescentes, mensalmente, pelo índice de atualização dos depósitos em caderneta de poupança livre.

PARÁGRAFO TERCEIRO — Se, ao término do prazo de prorrogação especificado no parágrafo anterior, ainda remanescer saldo, o DEVEDOR compromete-se a resgatá-lo integralmente, no prazo de 48 horas, estando o mesmo, até a sua efetiva liquidação, sujeito à atualização monetária e incidência de juros compensatórios, nas bases pactuadas neste contrato, sendo o pagamento integral desse saldo residual condição sine qua non para que ocorra a liberação da hipoteca que grava o imóvel objeto deste financiamento.


“PARÁGRAFO QUARTO – Diante do contido no caput desta cláusula, ao presente financiamento não se aplicará o previsto na cláusula Décima Sétima.”

Como visto acima, o financiamento em discussão não tem a cobertura pelo FCVS, conforme se depreende da planilha de evolução do contrato (fl. 131).

Em síntese, a Cláusula Trigésima Nona do contrato de mútuo em alusão, prevê o resgate, pelo mutuário, no prazo de prorrogação (90 meses), do saldo residual existente ao término do prazo de amortização normal ajustado (180 meses), em prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira recalculada a partir do referido saldo. Findo o prazo de prorrogação e ainda remanescendo saldo, de acordo com o Parágrafo Terceiro, o mutuário é obrigado a quitá-lo, integralmente, no prazo de 48 horas, sendo o pagamento integral do resíduo condição indispensável para a liberação da hipoteca que grava o imóvel. Ademais, consoante o Parágrafo Segundo, no prazo de prorrogação serão mantidas a taxa de juros, sistema de amortização, o CES, bem como os critérios de atualização dos encargos mensais e saldo devedor.

A questão deve ser enfrentada sob o prisma do Código de Defesa do Consumidor, na esteira das correntes doutrinária e jurisprudencial que defendem que o contrato de mútuo habitacional encerra uma relação de consumo.

Dessa forma, tem-se que as estipulações contidas na Cláusula Trigésima Nona do Contrato de Mútuo em discussão, mostram-se excessivamente onerosas para o mutuário/promovente, diante da irrealizabilidade da liquidação do débito, com a conseqüente perda do imóvel, impondo-se um pronunciamento judicial no sentido de declarar a nulidade absoluta da referida cláusula.

Convém consignar, a propósito, que a nulidade da cláusula referida será conhecida e decidida tão-só como questão prejudicial, ex vi do art. 469, inciso III, do CPC.

Com efeito, dada a característica da nulidade (absoluta de pleno direito) e a contrariedade da cláusula abusiva à Lei nº 8.078/90, que é de ordem pública e interesse social, o magistrado tem o dever de se pronunciar de ofício, independentemente de alegação da parte a quem interessa.

Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), em seu art. 1º, estabelece que as normas que regulam as relações de consumo são de ordem pública e interesse social.

Por sua vez, o art. 51 do referido diploma legal prescreve: “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: ( … )IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; ( … )”

E a própria norma do art. 51, no § 1º, define o que seja desvantagem exagerada:

“§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: (…) III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. ( … )”

Diante das considerações supra, indubitavelmente a nulidade prevista no art. 51 do CDC é da espécie pleno iure. E assim, tratando-se de nulidade absoluta, é viável o conhecimento de ofício, nos termos do disposto no art. 166, VII c/c o art. 168, parágrafo único, ambos do novo Código Civil, in verbis:”Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: (…) VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Parágrafo único. “As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes.”

Em acréscimo, é bom frisar que, dada a natureza jurídica do contrato de mútuo, o mutuário possui o direito subjetivo de ver extinta a sua dívida, uma vez adimplidas as prestações no prazo ajustado. Dessa forma, a cláusula que lhe imputa a responsabilidade pelo saldo residual existente ao término do contrato, como condição para ter a dívida quitada e obter a liberação da hipoteca, o coloca em desvantagem exagerada, por restringir direito fundamental inerente à natureza do contrato e ameaçar o equilíbrio contratual.

No caso em apreço, torna-se patente a inexeqüibilidade do contrato em sua feição original, tendendo o valor do saldo residual a um valor bem superior ao capital mutuado.

Diante desse fato, considerando a finalidade social do Sistema Financeiro de Habitação, cujo objetivo maior é propiciar condição de moradia própria à população menos favorecida, é de se presumir exagerada, por se mostrar excessivamente onerosa para o mutuário/consumidor, a estipulação contratual que lhe impõe a obrigação de arcar com um resíduo financeiro, ao término do prazo contratado, mesmo já tendo pago todas as prestações pactuadas. É de se destacar que, não raras vezes, o saldo residual supera o valor de avaliação do imóvel. E mesmo nessas situações, o mutuário é obrigado a refinanciar o resíduo com juros e correção. Sem dúvida, aludida cláusula é abusiva, devendo ser considerada como não escrita, ou seja, sem qualquer validade nem eficácia.

Na esteira desse entendimento, trago à colocação o seguinte aresto do TRF da 5ª Região:

“Ementa: ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO. SISTEMA FINANCEIRO DE HABITAÇÃO. CONTRATO DE MÚTUO. CLÁUSULA DE EQUIVALÊNCIA SALARIAL. SUA OBSERVÂNCIA. CLÁUSULA DE RESÍDUO DO SALDO DEVEDOR. ABUSIVIDADE. ( … ) 3. É abusiva, devendo ser reputada como não escrita, a cláusula que trata de impor ao mutuário, após o prazo da avença, o pagamento adicional de valores ditos residuais. Precedentes (AC 175.369-SE, Rel. Des. Juiz Francisco Cavalcanti, j. em 21.11.2000, P.M.). 4. Apelação improvida.” (grifos nossos) (AC 149337-SE, Rel. p/ o acórdão Desembargador Federal Nereu Santos, j. em 19.06.2001, publ. em DJ de 02.01.2002).

Portanto, considerando que a Lei nº 8.078/90, em seu art. 51, V, inquina taxativamente de nulidade as cláusulas abusivas, é nula a Cláusula Trigésima Nona, bem como seus parágrafos, do presente contrato de financiamento.

III – DISPOSITIVO

Posto isso, julgo procedente em parte o pedido, declarando a nulidade da Cláusula Trigésima Nona do contrato em questão, restando, por conseguinte quitada a dívida do autor com as rés em relação ao referido contrato, não podendo mais nada lhe ser cobrado em relação ao mesmo, extinguindo o processo com julgamento do mérito, nos termos do art. 269, I, do CPC.

Condeno as rés ao pagamento das custas processuais restantes, bem como dos honorários advocatícios sucumbenciais, os quais arbitro em R$ 300,00 (trezentos reais), nos termos do art. 20, § 4º, do CPC.

Após o trânsito em julgado, expeçam-se dois alvarás: um para a CEF levantar os valores depositados à fl. 254, a título de honorários periciais, uma vez que a prova pericial não se realizou, e outro para o autor, no montante dos valores que vinha consignando em Juízo, por força da liminar deferida às fls. 57/59 dos autos.

Publique-se.

Registre-se.

Intimem-se.

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