Salvo conduto

Se MP não contesta, réu pode recorrer em liberdade

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24 de dezembro de 2006, 6h00

Se o Ministério Público não recorre de sentença que condicionou a prisão do réu ao trânsito em julgado da condenação, acusado tem o direito de ficar em liberdade. Esse foi o entendimento usado pelo ministro Gilmar Mendes para manter a liberdade do médico Ademar Pessoa Cardoso, acusado de homicídio qualificado. Durante um “racha” com motorista de outro carro, o médico matou cinco pessoas.

O médico foi condenado pelo Tribunal do Júri a pena de doze anos e nove meses de reclusão por cinco homicídios simples, com um agravante: entre as vítimas havia um idoso. A sentença condenatória permitia que o réu ficasse em liberdade até o trânsito em julgado da decisão.

O Ministério Público não recorreu da decisão. A defesa do médico, sim. A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a decisão do Tribunal do Júri. No entanto, determinou a imediata prisão do réu. Contra o acórdão, os advogados do condenado apresentaram Embargos de Declaração no próprio TJ e um pedido de Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça.

O STJ julgou antes o pedido e o acolheu, em parte. Os ministros concluíram que ele deveria ficar livre só até o julgamento dos Embargos de Declaração pelo Tribunal de Justiça. Dessa decisão liminar, a defesa entrou com outro pedido de liminar em Habeas Corpus no STF. Alegou constrangimento ilegal. Para eles, contrariar a disposição expressa na sentença caracteriza <i>reformatio in pejus</i>.

Para começar a decidir, Gilmar Mendes observou a jurisprudência do STF no sentido de que o Supremo não julga pedido de liminar em Habeas Corpus contra decisão de tribunal superior que rejeitou liminarmente o mesmo pedido. O entendimento está previsto na Súmula 691.

No entanto, o ministro abriu uma exceção e resolveu considerar a alegação de constrangimento ilegal. Segundo ele, o rigor da aplicação da súmula tem sido abrandado em hipóteses especiais.

Superada essa questão, Gilmar Mendes levantou outra jurisprudência da corte que não impede a prisão do condenado, mesmo com interposição de recurso especial ou extraordinário. Ele observou que tem indeferido pedidos de liminar quando existe ato judicial que determina a prisão cautelar e quando a fundamentação preencha os pressupostos previstos no artigo 312 do Código de Processo Civil.

“Em princípio, porém, verifico que a hipótese dos autos parece ser distinta”, entende Gilmar Mendes. Por isso, se baseou em precedente aberto, em março de 2006, pelo ministro Carlos Velloso. O caso era semelhante. O ministro também abriu exceção à Súmula 691 e deferiu o pedido de liminar por entender que se o Ministério Público não recorreu da sentença, o réu tem direito a ficar em liberdade.

Leia o voto

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 90.229-4 MINAS GERAIS

RELATOR: MIN. GILMAR MENDES

PACIENTE(S): ADEMAR PESSOA CARDOSO

IMPETRANTE(S): BRUNO RODRIGUES

COATOR(A/S)(ES): RELATOR DO HC Nº 71.331 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus preventivo, com pedido de medida liminar, impetrado por BRUNO RODRIGUES, em favor de ADEMAR PESSOA CARDOSO, em face de decisão monocrática proferida pelo relator do HC nº 71.331/MG, Ministro Felix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça. Eis o teor do ato impugnado que indeferiu a medida liminar (DJ de 12.12.2006):

“Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de ADEMAR PESSOA CARDOSO, condenado como incurso nas sanções do art. 121, caput, do Código Penal, à pena de 12 (doze) anos de reclusão a ser cumprida no regime inicialmente fechado, contra v. acórdão prolatado pela c. Primeira Câmara Criminal do e. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

Aduz a impetrante que a expedição de mandado de prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado da r. sentença condenatória.

É o breve relato.

Decido.

Vislumbro na espécie o fumus boni iuris do pedido, tendo em vista que não esgotada a instância ordinária, uma vez que opostos embargos declaratórios, bem como o periculum in mora, já que o mandado de prisão expedido pelo e. Tribunal a quo já foi cumprido, razão pela qual concedo parcialmente a liminar a fim de que o ora paciente aguarde o julgamento dos embargos opostos em liberdade. Nesse sentido: HC nº 11.215/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU de 28/02/2000 e HC 10.666/SP, Rel. Min. Edson Vidigal, DJU de 02/05/2000” (HC nº 71.331/MG, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 12.12.2006 – fl. 214).


O paciente foi condenado à pena de 12 (doze) anos e 9 (nove) meses de reclusão pela prática de cinco delitos de homicídio simples (CP, art. 121, caput), com a agravante de um deles ter sido praticado contra pessoa idosa (CP, artigo 61, inciso II, alínea “h”), c/c os artigos 29 e 70, todos do Código Penal (fls. 57-65).

O juízo-presidente do Tribunal do Júri, ao prolatar a sentença condenatória, concedeu ao acusado o direito de apelar em liberdade, nos seguintes termos:

“Concedo ao réu o direito de recolher desta sentença em liberdade, se assim o desejar, por ter permanecido solto durante todo o processo, e por não vislumbrar, na hipótese, necessidade de recolhimento provisório, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória ora proferida.

Com o trânsito em julgado, lance-se o nome do acusado no rol dos culpados e expeça-se guia para execução penal, bem como mandado de prisão. (fls. 64/65).

O Ministério Público Estadual não recorreu da sentença condenatória (fl. 11).

Somente a defesa, portanto, interpôs recurso de apelação junto ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ/MG).

Em 14 de novembro de 2006, por unanimidade, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais negou provimento à apelação, mantendo a condenação da primeira instância (fl. 16).

Ademais, em 16 de novembro de 2006, a Desembargadora Márcia Milanez, Relatora da Apelação Criminal nº 1.0069.04.013444-2/002, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, requereu a expedição do mandado de prisão em face do ora paciente (fls. 50-52), nos seguintes termos:

“A determinação da MMª Juíza de 1º grau, na sentença condenatória, no sentido de que o mandado de prisão se efetive tão somente após o trânsito em julgado, visa permitir a interposição do recurso pelo réu em liberdade, nunca impedir que o Tribunal de 2º grau, ao negar provimento à apelação, determine a expedição deste logo, do mandado de prisão para cumprimento da condenação.

A ordem de prisão proveniente de decisão unânime de 2º grau é de índole processual destinado a assegurar a execução da pena imposta.

Mantida a condenação pelo ‘Tribunal ad quem’ não impede que se efetive desde logo, a prisão do condenado; o postulado constitucional da não culpabilidade do réu impede tão somente que se lance o nome do acusado no rol dos culpados, enquanto não houver transitado em julgado a condenação penal contra ele proferida.

(…)

A submissão do réu à imediata privação de sua liberdade individual, presente a circunstância de que foi mantida unanimemente a condenação penal contra ele proferida, constitui efeito natural que decorre, ‘ministerio legis’ do exaurimento das vias recursais ordinárias.

Assim sendo, e com a consideração de que a expedição de mandado de captura é efeito regular da sentença condenatória, que foi confirmada pelo v. acórdão, cessa o benefício concedido na Instância inferior e impõe-se o recolhimento do réu à prisão para o cumprimento da pena privativa de liberdade.

Expeça-se incontinenti o mandado de prisão em favor de Ademar Pessoa Cardoso” (fl. 50-52).


Contra o acórdão da 1ª Câmara Criminal do TJ/MG, que rejeitou a apelação, a defesa opôs embargos de declaração.

Desse mesmo acórdão, em 27 de novembro de 2006, a defesa impetrou ainda habeas corpus junto ao Superior Tribunal de Justiça pleiteando aguardar em liberdade até o julgamento dos recursos ordinários e extraordinários possíveis e o conseqüente registro do trânsito em julgado da condenação penal.

Em 28 de novembro de 2006, o Relator do HC nº 71.331/MG do STJ, Ministro Felix Fischer, deferiu parcialmente a liminar pleiteada para que o ora paciente permanecesse em liberdade tão-somente até o julgamento dos Embargos Declaratórios.

Ocorre que, em sessão realizada em 05 de dezembro de 2006, a 1ª Câmara do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, rejeitou os embargos declaratórios, ficando assim obstados os efeitos da decisão liminar proferida pelo Ministro Relator perante o STJ.

No presente habeas corpus, a defesa alega existência de constrangimento ilegal, verbis:

“a deliberação da eminente relatora da apelação criminal no TJMG, de expedir mandado de prisão antes do trânsito em julgado, contrariando disposição expressa da sentença, caracteriza reformatio in pejus, pelo que merece reparo sua decisão e, conseqüente, cabe reformar a decisão do eminente Ministro apontado como autoridade coatora, concedendo-se a liminar na extensão necessária e cabível” (fl. 18).

Por fim, o impetrante requer, verbis:

“O deferimento de liminar determinando que a egrégia 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais se abstenha de expedir ordem de prisão contra o paciente até o julgamento final do presente habeas corpus, já que presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora;

No mérito, (…), espera-se a concessão da ordem, para que o paciente permaneça em liberdade até o trânsito em julgado do processo que resultou em sua condenação” (fl. 19).

Passo a decidir tão-somente o pedido de medida liminar.

Preliminarmente, a jurisprudência desta Corte é no sentido da inadmissibilidade da impetração de habeas corpus, nas causas de sua competência originária, contra decisão denegatória de liminar em ação de mesma natureza articulada perante tribunal superior, antes do julgamento definitivo do writ. Nesse particular, cito os seguintes julgados: HC(QO) nº 76.347/MS, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ de 08.05.1998; HC nº 79.238/RS, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ de 06.08.1999; HC nº 79.776/RS, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, DJ de 03.03.2000; HC nº 79.775/AP, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, maioria, DJ de 17.03.2000; e HC nº 79.748/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, maioria, DJ de 23.06.2000.

Esse entendimento está representado na Súmula nº 691/STF, verbis: “Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”.

É bem verdade que o rigor na aplicação da Súmula nº 691/STF tem sido abrandado por julgados desta Corte em hipóteses excepcionais em que: a) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal; ou b) a negativa de decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior apontado como coator importe a caracterização ou a manutenção de situação que seja manifestamente contrária à jurisprudência do STF. Para maiores detalhes, enumero as decisões colegiadas: HC nº 84.014/MG, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 25.06.2004; HC nº 85.185/SP, Pleno, por maioria, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 1º.09.2006; e HC nº 88.229/SE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, maioria, julgado em 10.10.2006; e as seguintes decisões monocráticas: HC nº 85.826/SP (MC), de minha relatoria, DJ de 03.05.2005; e HC nº 86.213/ES (MC), Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º.08.2005.


Para fins de apreciação do pedido de medida liminar, porém, é necessário, no caso em exame, avaliar se há ou não patente constrangimento ilegal apto a superar a aplicação da Súmula nº 691/STF e a ensejar o cabimento deste habeas corpus.

Inicialmente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal orienta-se no sentido segundo o qual a interposição do recurso especial e/ou recurso extraordinário não impede, em princípio, a prisão do condenado. Nesse contexto, arrolo os seguintes precedentes: HC nº 77.128-SP, Segunda Turma, por maioria, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 17.11.2000; HC nº 81.685-SP, Primeira Turma, unânime, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 17.05.2002; e HC nº 80.939-MG, Primeira Turma, unânime, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 13.09.2002.

Não obstante esses expressivos julgados, o Plenário deste Tribunal tem discutido amplamente a possibilidade de reconhecimento do direito de recorrer em liberdade desde o julgamento da RCL nº 2.391-PR, Rel. Min. Marco Aurélio.

Embora a referida reclamação tenha sido considerada prejudicada por perda superveniente de objeto (sessão plenária de 10.03.2005), o entendimento que estava a se firmar, inclusive com o meu voto, pressupunha que eventual custódia cautelar, anterior, portanto, ao trânsito em julgado de sentença condenatória, somente poderia ser implementada se devidamente fundamentada nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal — CPP e, sobretudo, do art. 93, IX, da Constituição Federal.

A esse respeito e desde então, tenho, inclusive, indeferido o pedido de medidas liminares nas circunstâncias em que: a) exista ato judicial que determine a prisão cautelar; e b) cuja fundamentação esteja em consonância com os pressupostos de cautelaridade, análogos, ao menos em tese, aos previstos no art. 312 do CPP. Nesse sentido, arrolo as seguintes decisões monocráticas proferidas em sede de medida cautelar, nas quais reconheci a idoneidade da fundamentação da custódia preventiva: HC n° 84.434-SP, DJ de 03.11.2004; HC nº 84.983-SP, DJ de 04.11.2004; HC n°85.877-PE, DJ de 16.05.2005; e HC n°86.829-SC, DJ de 24.10.2005, todos de minha relatoria.

Em princípio, porém, verifico que a hipótese dos autos parece ser distinta.

Registre-se, ademais, que, com relação a esse ato decisório, apenas a defesa interpôs o cabível recurso de apelação.

Nesse particular, é válido invocar o precedente firmado por esta Segunda Turma no HC nº 85.856/DF, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ de 10.03.2006:

“EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. SENTENÇA QUE ASSEGUROU AO RÉU O DIREITO DE PERMANECER EM LIBERDADE ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO. APELAÇÃO DA DEFESA. EXPEDIÇÃO DE MANDADO DE PRISÃO. REFORMATIO IN PEJUS.

I. – Se o Ministério Público não recorre da sentença na parte em que condicionou a prisão do réu ao trânsito em julgado da condenação, resta em favor do condenado o direito de ficar em liberdade até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

II. – H.C. deferido.” (HC nº 85.856/DF, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, unânime, DJ de 10.03.2006).

À primeira vista, como apenas a defesa recorreu da sentença condenatória, parece-me que a imposição do cumprimento antecipado da pena pode se configurar como reformatio in pejus.

Segundo jurisprudência firmada por este Supremo Tribunal Federal, a concessão de medida cautelar em sede de habeas corpus somente é possível em hipóteses excepcionais nas quais seja patente o constrangimento ilegal alegado como é o caso destes autos.

Ressalvado melhor juízo quando da apreciação de mérito, constato a existência dos requisitos autorizadores da concessão da liminar pleiteada (fumus boni juris e periculum in mora).

Ante os fundamentos expostos, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a assegurar, ao paciente, o direito de permanecer em liberdade até a apreciação do mérito do HC nº 71.331/MG pelo Superior Tribunal de Justiça. Caso o paciente já se encontre preso em decorrência do acórdão proferido no caso ora em exame (Embargos de Declaração na Apelação Criminal nº 1.0069.04.013444-2/002, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais), deverá ser posto, imediatamente, em liberdade, nos termos e na extensão acima especificados.

Expeça-se salvo-conduto, em favor do ora paciente, nos termos e para os fins a que se refere o art. 660, § 4º do CPP, de cujo teor deverá constar a parte dispositiva mencionada no parágrafo anterior.

Solicitem-se informações ao Superior Tribunal de Justiça acerca: i) da previsão de ocorrência do julgamento de mérito do HC n° 71.331/MG; e/ou ii) do inteiro teor de acórdão que eventualmente venha a ser proferido no referido habeas corpus.

Ademais, requisitem ao Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais informação quanto: i) ao inteiro teor do acórdão proferido nos Embargos Declaratórios na Apelação Criminal n° 1.0069.04.013444-2/002; ou ii) caso o acórdão ainda não tenha sido publicado, o registro das notas taquigráficas correspondentes.

Após, abra-se vista à Procuradoria-Geral da República (RI/STF, art. 192).

Publique-se.

Brasília, 18 de dezembro de 2006.

Ministro GILMAR MENDES

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