Caráter bipolar

Direito Administrativo em 2006: entre papéis e negócios

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21 de dezembro de 2006, 13h04

Este texto sobre Direito Administrativo faz parte da Retrospectiva 2006, uma série de artigos em que especialistas analisam os principais fatos e eventos nas diferentes áreas do direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

A crônica de fim de ano precisa um modelo de análise, para a perspectiva que revele as relevâncias, não os acidentes.

Até a década de 1970, o jurista quase se ocupava só da moldagem de institutos: atos, contratos, entes, procedimentos. Sobre isso falava a seus alunos ou clientes. Cada aula, cada caso, um exercício de classificação (como distinguir convênio de contrato administrativo?). Nessa perspectiva, a crônica destacaria os institutos novos, ou a deturpação dos velhos, por obra da lei, da jurisprudência, da evolução doutrinária. Depois, cresceu a produção da fábrica jurídica — mais, mais e mais normas, demandas, juízos; variações e degeneração das fórmulas — e o direito dos institutos saiu de moda.

O sucessor foi o direito dos princípios, tímido nos anos 80, hoje artigo de consumo. O operador tornou-se abstracionista prático, gerindo as dúvidas do cotidiano (“corta-se a luz do consumidor inadimplente?”) com sentenças algo vagas: tanto as belas (“a dignidade da pessoa humana a tudo prefere”) como as rudes (“o interesse público prefere ao privado”). Para tratar de atos administrativos viciados, antes o pensamento focava em nulidade, anulabilidade e inexistência (institutos); agora, em segurança jurídica, proteção da confiança, boa-fé objetiva, improbidade (princípios). Sintetizar os sucessos do ano, nesse novo contexto, seria saudar — ou sofrer — a positivação de princípios, descobrir suas novas concreções, por aí.

Não queria falar de mais crise; mas ela é o nome, agora, desse direito de princípios. Os males do excesso (a principiologia frouxa desamarrando as normas, embaralhando tudo) e do superficial (o princípio lugar-comum, pura forma sem substância): nisso vivemos. Para a crônica de 2006, vale esta nota prévia de saudade: nesses anos, o direito dos princípios subia, subia, todos o amávamos; nos próximos, não será assim. Os administrativistas principiamos a cansar. Novos amores virão.

Explico então minha conjectura para apreender o Direito Administrativo. Não é questão conhecer a substância, o núcleo duro, expresso em institutos ou princípios (ou outras variáveis com essa função). O modelo é outro. Mentalizo o Direito Administrativo como um oceano: grandes águas, vagas, marés; eterno balanço e rodopio. Conhecê-lo é entender as constantes de seu movimento, dos fluxos e refluxos, enfim, das oposições batendo-se e convivendo. Teoria dos opostos é o nome dessa matriz de análise, que foca no jogo de oposições a circundar as leis, as regras, as práticas, os casos, as decisões, os princípios, os institutos.

A teoria dos opostos não crê na solução dos casos pela incidência direta de elementos fixos (sejam princípios ou institutos). Os opostos convivem no Direito Administrativo e, para cada caso, armam seus jogos: liberalismo x autoridade, liberdade x política, privatismo x estatismo, publicismo x estatismo, centralização x descentralização, principismo x conseqüencialismo, formalismo x resultados, direito dos administradores x direito da toga, direito de regras x direito de princípios, nacionalismo x mundialismo, burocracia x gestão, direito legal x direito constitucionalizado, direito dos juristas x direito das normas etc. O administrativista deve ser, antes de tudo, um aplicado detetive de opostos; sua função primeira é mapeá-los em cada caso, para o jogo ser jogado com todos os jogadores em campo.

A perspectiva da teoria dos opostos não renega os institutos nem os princípios. A lei constrói figuras, a doutrina as tenta classificar e definir, o operador as testa ao decidir; eis os institutos, um modo inevitável do direito como norma, teoria e prática. Mas há de vê-los como institutos flexíveis, compatíveis com o inclassificável, o experimentalismo responsável, a acomodação de opostos.

Afora o excesso e a superficialidade, o verdadeiro mal do direito dos princípios não são os próprios, mas a ausência ou demonização do oposto. Sem conhecer o oposto da moralidade não sei usá-la em Direito Administrativo. Seu oposto não é a imoralidade administrativa, o mal contra o bem. Se a oponho a legalidade, moralidade é pauta obrigatória de conduta independente de lei. Tais opostos convivem em nosso Direito Administrativo, cada um com seu valor e inconvenientes. Ao optar por um no caso concreto, devo saber o que perco ao descartar o outro; se não, decido às cegas. A cegueira é resultado da ausência do oposto.


Para fazer a crônica de 2006, tomo a oposição Direito Administrativo do Clips x Direito Administrativo dos Negócios. São duas grandes águas: cores e velocidades diversas; tanto correm juntas como batem, ambas mare nostrum.

Direito Administrativo do Clips (DAC) é o da Administração de papelaria, que age por autos e atos, trata direitos e deveres em papel, é estatista, desconfia dos privados, despreza a relação tempo, custos e resultados, não assume prioridades. Têm sido campos tradicionais desse modelo as atividades estatais de regulação (processos administrativos de licenciamento, registros, fiscalizações, aplicação de sanções, etc.), além da gestão financeira, de pessoal e de patrimônio na Administração Direta e autarquias. Por razões variadas, também se encontrará o DAC em outros campos não tão naturais, como o das contratações em certas empresas estatais. Embora também exista em versões deturpadas, o DAC em si é de família boa: nasceu com e para a burocracia, esta forma feliz de substituição do poder personalista, patrimonial.

Ao DAC se opõe o Direito Administrativo dos Negócios (DAN), o dos que se focam em resultados e, para obtê-los, fixam prioridades, e com base nelas gerenciam a escassez de tempo e de recursos. Para esse âmbito, valem práticas opostas às do DAC: aumenta a informalidade nos procedimentos; a inação é o pior comportamento possível do agente; soluções devem ser encontradas o mais rápido; acordos são desejáveis; evitar e eliminar custos é fundamental; só se envolvem na decisão agentes e órgãos indispensáveis; riscos devem ser assumidos sempre que boa a relação custo-benefício, etc.

Na Administração Pública, o ambiente que tem sido mais propício a essas práticas é o dos organismos que disputam mercado (empresas estatais que concorrem com empresas do setor privado) ou que são responsáveis por serviços cuja falta ou deficiência possa levar à convulsão popular imediata (transporte público, segurança, coleta de lixo) ou a perdas eleitorais (saúde, educação, financiamento agrícola, etc). Também os momentos de crise econômica e política aguda são adequados para elas. Aí, são muito fortes os estímulos para a busca de resultados e, por isso, não funcionam do mesmo modo os mecanismos de auto-preservação dos agentes públicos, típicos do DAC. Para fundamentar suas práticas, o discurso do DAN baseia-se em máximas ou figuras como continuidade do serviço público, ordem pública, eficiência, empresa estatal, parcerias com o setor privado, terceiro setor, direitos sociais, interesse público, emergência, calamidade, etc.

No campo da gestão financeira e de pessoal, durante o governo FHC (1995 a 2002), as autoridades formularam muitas críticas às regras vigentes, chamando-as de burocráticas e formalistas. Reformas foram feitas para torná-las mais leves: criou-se o pregão como modalidade de licitação, uma emenda constitucional autorizou a contratação de servidores em regime trabalhista na Administração direta e autarquias, outra diminuiu algo na rigidez da estabilidade do servidor estatutário, instituiu-se o modelo de agências executivas etc. Foram tentativas de reforma no interior da própria Administração, para mudar o DAC, ou substituí-lo pelo DAN. Revendo em 2006 o que se passou com essas soluções, é correto dizer que apenas o pregão floresceu; ninguém mais fala de agências executivas e o regime de pessoal ficou praticamente onde estava.

Mas há uma tentativa de contornar o DAC financeiro e de pessoal pela via da desestatização. As mais notadas — e, por isso, criticadas — foram as que eu chamaria desestatizações de investimento, envolvendo atividades de cunho econômico, pelos programas de privatização de empresas estatais, de concessão de serviço público e, agora, de parcerias público-privadas, com o objetivo de obter investimentos privados em infra-estrutura. Não é a elas que quero referir-me, e sim às desestatizações de gestão, feitas para o Terceiro Setor, o Setor Autônomo e um semi-oculto Setor Espelho.

A desestatização para o Terceiro Setor vem sendo promovida às claras desde o governo FHC, e envolve as figuras, modeladas por lei genérica, das Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP); no Estado de São Paulo, desde o Governo Covas (a partir de 1995), essas entidades vêm assumindo atividades estatais nas áreas de saúde, cultura e presídios. Por facilidade, chamo de Setor Autônomo ao conjunto de entidades, criadas uma a uma por lei federal a partir de 1942 com a designação de Serviço Social Autônomo, que recebem recursos de contribuições legais, dedicam-se a serviços de natureza social ou ao fomento, e não têm vínculos formais com a Administração Pública (Sesc, Sesi, Senai, Senac, Sescoop, Senar, Sest, Senat, ABDI, Apex-Brasil e Sebrae).


Com alguma liberdade, designo como Setor Espelho aos entes sob regime privado nascidos como extensões informais de órgãos públicos, autarquias, fundações governamentais e mesmo empresas estatais, em geral sob a justificativa de apoiá-las. Há algumas delas na área de saúde federal, por influência da Fundação Zerbini, criada dentro do Instituto do Coração, este uma unidade da autarquia estadual paulista Hospital das Clínicas. Mas há tantas outras ao lado de universidades, onde costumam ser chamadas como “fundações de apoio”, tendo inclusive recebido uma regulamentação por lei federal (Lei 10.973, de 2.12.2004). A lista de entes e de setores é bem mais extensa do que se pode imaginar.

Muito se deveria refletir e discutir, no Brasil, sobre as razões que têm levado a essas desestatizações de gestão. A acusação comum entre juristas é a de que são tentativas grosseiras, bem ou mal intencionadas, de fugir ao regime administrativo construído com muita luta pela Constituição, pelas leis, pelos tribunais, e que têm de ser combatidas a todo custo, para evitar o desperdício ou desvio de recursos públicos, bem como a adoção de lamentáveis práticas patrimonialistas. Essa crítica é frágil, pois supõe adequado o regime jurídico da gestão administrativa hoje consolidado no DAC, quando a força do movimento de desestatização de gestão, que dura tantos anos e tem envolvido tantos governos diferentes, está a sugerir que não. O certo é que os órgãos de controle — Tribunais de Contas, Ministério Público e Judiciário — vêm fechando o cerco a esse movimento, e o ano de 2006 foi particularmente intenso quanto a isso.

A pergunta que fica, ao final do ano, é se há possibilidade de melhorar a gestão sem fugir do Direito Administrativo. Para discuti-la, será preciso indagar: de que Direito Administrativo estamos falando? Não existirá alternativa legítima a esse Direito Administrativo do Clips?

Embora criticado, por suas “vítimas” e por governantes, o DAC resiste e cresce, como crescem as regulações, sempre impondo novas exigências de licenciamento. Planos governamentais de desburocratização, de privatização, de substituição da Administração burocrática pela gerencial, parecem incapazes de detê-lo ou mudá-lo significativamente.

Neste ano de 2006, o licenciamento ambiental surgiu nas conversas como um grande vilão, culpado até pelo baixo crescimento da economia. O próprio presidente da República indicou-o, em discursos, como o principal obstáculo das grandes obras federais, para espanto dos ambientalistas, que entenderam o ataque como uma recusa dos compromissos do governo com as causas do setor. A desconfiança é possivelmente exagerada: mais uma vez o que se parece questionar é o modo da Administração (isto é, o DAC), não os aspectos substanciais do direito ambiental.

Os problemas do DAC em matéria de licenciamento têm a ver com seu fato gerador: a substituição da deliberação privada pela estatal, pelo temor de mau uso da liberdade. Ocorre que os agentes e órgãos públicos competentes, além de se arriscarem a punições se decidirem contra as normas, nada ganham pela decisão eficiente, e acabam desenvolvendo práticas administrativas de auto-proteção que formam o núcleo do DAC (ex.: decidir rapidamente não é importante, antes ao contrário, pois demora é prudência; pouco importa o custo do processo para o Estado, muito menos para o particular; entre deferir ou indeferir, melhor é não decidir; na dúvida, o pedido deve ser negado; devem se manifestar formalmente nos autos o máximo de agentes e órgãos estatais; ao tomar decisões, não cabe ao agente verificar se a finalidade legal está sendo realizada da melhor forma, mas sim se requisitos objetivos foram atendidos; as normas devem sempre ser interpretadas contra a liberdade; o agente público não pode diminuir os custos do sujeito privado, ao contrário, deve obrigá-lo a gastar para o bem público; o requerente tem o ônus de prova absoluta de que não vai pecar; nenhum risco é aceitável).

Essas práticas nem constam de manuais, nem tem defensores teóricos explícitos, mas são adotadas no cotidiano administrativo e conseguem apoio judicial, pela óbvia razão de que os juízes também são agentes públicos e, como os administrativos, carecem de incentivo para agir de outra forma. Há um discurso jurídico elegante para a justificação de tais práticas no campo da regulação, como o princípio da supremacia do interesse público e o da precaução.

O que pôs na berlinda o licenciamento ambiental em 2006 foi, portanto, menos a profundidade das restrições ambientais do que as características das práticas administrativas, que se amparam no Direito Administrativo do Clips. Adiantará bem pouco reformar normas ambientais, se o verdadeiro problema está na matriz jurídico-administrativa.

Ainda quanto ao DAC, merecem destaque em 2006 dois debates, no âmbito do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (Secretaria de Direito Econômico — SDE e Conselho Administrativo de Defesa Econômica — Cade), sobre a viabilidade de solução consensual de processos judiciais ou administrativos. Um caso foi o da transação entre o Cade e a Microsoft: esta desistiu da ação judicial em que questionava multa que lhe fora imposta, e aquele aceitou recebê-la com deságio. Outro foi o do termo de ajustamento de conduta (o TAC da lei da ação civil pública) proposto por indústrias de suco de laranja para encerrar um processo administrativo por formação de cartel, com o pagamento da impressionante quantia de R$100 milhões; a SDE e a Procuradoria do Cade foram favoráveis ao ajuste, mas este acabou rejeitado pelo Plenário. O interessante desses casos está em se cogitar de consensualidade no campo, que lhe é normalmente hostil, do DAC, que está entranhado também nos processos sancionatórios.

Estará essa experiência a sugerir alguma modalidade de procedimento consensual para tornar mais ágeis e racionais os licenciamentos ambientais? Quem sabe se autoridades atuando como negociadoras econômico-ambientais, com amplíssimo poder de transigir e metas a cumprir, inclusive de prazo, não serão capazes de obter melhores resultados para o interesse público? Em suma: será boa idéia adotar práticas de Direito Administrativo dos Negócios para sair do impasse criado pelo clips nos processos ambientais? Que práticas seriam essas e como aplicá-las aqui?

Essas são questões para 2007, e depois. E o que nos deixa a experiência vivida? Antes de tudo esta advertência: não se pode ignorar o caráter bipolar do Direito Administrativo, fazendo um só pólo de dogma e lançando o outro às feras. A militância em torno da bandeira do Direito Administrativo do Clips teve um importante papel, mas está virando religião monoteísta em guerra santa. O Direito Administrativo dos Negócios não é invenção recente de mentes neoliberais deturpadas; mas parte necessária da história e da prática do Direito Administrativo. Talvez estejam nele algumas das soluções para os impasses governamentais de 2006 e para fazer de nosso ramo o Direito Administrativo do Desenvolvimento que tanto se reclama.

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