Participação popular

Justiça determina audiência pública para discutir milho transgênico

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17 de dezembro de 2006, 10h19

Até que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) promova audiência pública para discutir a produção e o consumo de milho transgênico, o processo administrativo para a liberação comercial do produto está suspensa. A decisão é da Justiça Federal do Paraná, que acolheu pedido de liminar em Ação Civil Pública apresentado por três entidades: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Terra de Direitos e Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa.

O processo administrativo que corre na CTNBio é, na verdade, um pedido para a liberação do registro, uso, testes e comercialização do milho geneticamente modificado, conhecido como Liberty Links. A CTNBio foi criada pela Lei da Biossegurança. É um órgão colegiado multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo para dar apoio técnico ao governo federal nas questões de organismos geneticamente modificados.

As entidades afirmam que só recorreram ao Judiciário porque a CTNBio, vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia, se negou a fazer uma audiência pública para debater a questão. Na Justiça, a comissão alegou que é composta por renomados cientistas de diversas áreas, que servem como representantes da sociedade. Ressaltou que não há necessidade de audiência, uma vez que existem estudos sobre o assunto. “Além da ausência de recursos financeiros”, argumentou.

Quando pediram a audiência, as entidades observaram que dentro da própria CTNBio existe divergência sobre a comercialização do milho transgênico. Sustentam que a participação dos cidadãos nesse tipo de debate é fundamental e garantida pela Constituição Federal, “sendo a audiência pública um instrumento para dar efetividade”.

Em sua decisão, o juiz Nicolau Konkel Júnior ressaltou que a Lei da Biossegurança abre a “possibilidade” e não a “obrigatoriedade” de realização de audiência pública. Mesmo assim, ele entende que deve-se aproveitar essa oportunidade uma vez que esse é o “real instrumento de informação ao público, pois convida a comunidade a manifestar-se sobre questões sociais e ambientais que interessam diretamente a ela, como é o caso em mesa”.

Além disso, o juiz concluiu que a audiência pública é necessária para atender ao princípio da precaução. Para fundamentar, cita trecho de livro de Paulo Afonso Leme Machado: “O princípio da precaução consiste em dizer que não somente somos responsáveis sobre o nós sabemos, sobre o que nós deveríamos ter sabido, mas, também, sobre o que nós deveríamos duvidar”.

Nicolau Konkel Júnior entendeu que, por mais a comissão se diga composta por especialistas, isso não é justificativa suficiente para excluir a participação popular da discussão. Isso porque a questão é de interesse nacional e não de pessoas específicas “escolhidas em listas tríplices, e não por votação popular”.

Leia a decisão

AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 2006.70.00.030708-0/PR

AUTOR: TERRA DE DIREITOS — ORGANIZACAO CIVIL PELOS DIREITOS HUMANOS

IDEC — INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

AS-PTA ASSESSORIA E SERVIÇOS A PROJETOS EM AGRICULTURA ALTERNATIVA

ADVOGADO: MARIA RITA REIS

RÉU: UNIÃO — ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

DECISÃO (liminar/antecipação da tutela)

1. Buscam os autores, através da presente ação civil pública, a concessão de liminar que suspenda o andamento do processo administrativo nº 12000.005154/1998-36, em trâmite perante a CTNBio, até que haja decisão definitiva acerca da realização de audiência pública ou até que esta se realize.

Segundo narram, a CTNBio, criada pela Lei nº 11.105/2005, retomou suas atividades no ano de 2006, sendo incluído em seus trabalhos pedido de liberação comercial do milho geneticamente modificado Liberty Link. Relatam que se trata de solicitação constante do processo administrativo nº 12000.005154/1998-36 para liberar o registro, uso, testes, comercialização, etc, do produto referido.

Aduzem que após diversas solicitações à CTNBio para realização de audiência pública, houve resposta em 01.12.2006, informando acerca da decisão de não realizar a audiência pretendida.

Sustentam que o direito dos cidadãos de participarem da discussão acerca do processo de liberação comercial de alimento transgênico foi prejudicado. Alegam que a realização da audiência pública é fundamental. Destacam que a participação popular encontra-se garantida constitucionalmente, sendo a audiência pública um instrumento para dar efetividade. Ressaltam que em matéria ambiental a coletividade deve ter oportunidade de apresentar opiniões na tomada de decisões que possam causar prejuízos, sendo certo que os OGMS´s representam riscos potenciais. Salientam que existe divergência quanto à liberação do milho transgênico dentro da própria comissão.


Apontam que o art. 15 da Lei nº 11.105/2005, o art. 43 do Decreto nº 5.591/05 e o art. 39 da Portaria nº 146 (regimento interno da CTNBio) prevêem a possibilidade de realização de audiência pública, destacando que ela é, em verdade, um poder-dever. Aduzem que a participação popular também se encontra garantida no Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura, ratificado pelo Brasil através do Decreto Legislativo nº 70/2006. Sustentam que a CTNBio é órgão governamental integrante da administração pública direta, vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, estando submetida a regime jurídico de direito público, tendo como um dos princípios a supremacia do interesse público sobre o particular, além da indisponibilidade do interesse público. Por fim, alegam que a CTNBio negou-se a realizar a audiência pública solicitada sem fundamento válido.

Com a inicial foram apresentados os documentos de fls. 23/190.

À fl. 191 foi proferido despacho determinando a intimação preliminar da ré, suspendendo qualquer deliberação referente ao processo administrativo nº 12000.005154/1998-36 até manifestação da União.

Em cumprimento ao despacho, a ré apresentou as informações de fls. 193/451, alegando, sucintamente, que a CTBio é composta por renomados cientistas de diversas áreas, estando a sociedade como um todo devidamente representada por seus membros. Afirma que a realização de audiência pública uma mera faculdade prevista na Lei de Biossegurança. Sustenta que a negativa quanto à realização de tal evento deu-se em razão da existência de estudos das mais diversas áreas, além da ausência de recursos financeiros. Ressalta que a questão já vem sendo tratada com a devida transparência.

É o relatório. Decido.

2. A concessão de liminar em se tratando de ação civil pública encontra assento legal no art. 12 da Lei nº 7.347/85, possibilitando, em juízo preambular, a antecipação dos efeitos da tutela pretendida – conforme dispõe o art. 273 do CPC – assim como provimento de natureza cautelar. Necessário, a tanto, reste demonstrada a verossimilhança das alegações da parte autora, bem como exista risco de dano. Passo, então, a apreciar a presença de referidos requisitos.

Com efeito, a Lei nº 11.105/2005, ou Lei da Biossegurança, criou a CTNBio definindo-a como órgão “integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, é instância colegiada multidisciplinar de caráter consultivo e deliberativo, para prestar apoio técnico e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da PNB de OGM e seus derivados, bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e de pareceres técnicos referentes à autorização para atividades que envolvam pesquisa e uso comercial de OGM e seus derivados, com base na avaliação de seu risco zoofitossanitário, à saúde humana e ao meio ambiente” (art. 10).

Ademais, no art. 14 da mesma lei encontram-se elencadas todas as matérias de competência da comissão que, em razão de sua quantidade, não serão indicadas na presente decisão. Contudo, da leitura de referido dispositivo legal, vislumbra-se que a CTNBio ficou responsável, sozinha, por todos os procedimentos relevantes que envolvam questões concernentes à OGM´s, como: estabelecer normas para pesquisa, estabelecer critérios de monitoramento e risco dos organismos, autorizar atividades de pesquisa com OGM´s, prestar apoio técnico e consultivo, etc.

Outrossim, ficou ainda responsável por, individualmente, apontar a necessidade de licenciamento ambiental, consoante previsto no art. 16, § 3º, da lei que dispõe que “a CTNBio delibera, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a necessidade do licenciamento ambiental”.

Ou seja, diante dos esclarecimentos e transcrições normativas acima, é simples observar que à CTNBio foram atribuídas todas as questões importantes acerca da liberação de um organismo geneticamente modificado, praticamente não havendo possibilidade nem da participação de um órgão ambiental – o IBAMA, no caso – o qual, sem dúvida, seria diretamente interessado. Ocorre que, conforme já indicado acima, o órgão ambiental apenas participará do procedimento a partir do momento que a própria CTNBio deliberar a este respeito, permitindo referido ato.

Sendo assim, justamente para que não haja este monopólio total da CTNBio e a tomada unilateral de decisões com nítido interesse público, a Lei de Biossegurança previu em seu art. 15, a possibilidade de realização de audiência pública, da seguinte forma:

Art. 15. A CTNBio poderá realizar audiências públicas, garantida participação da sociedade civil, na forma do regulamento.

Parágrafo único. Em casos de liberação comercial, audiência pública poderá ser requerida por partes interessadas, incluindo-se entre estas organizações da sociedade civil que comprovem interesse relacionado à matéria, na forma do regulamento.


Por sua vez, o decreto regulamentador da lei – nº 5.591/2005 — dispôs, em seu art. 43, que:

Art. 43. A CTNBio poderá realizar audiências públicas, garantida a participação da sociedade civil, que será requerida:

I — por um de seus membros e aprovada por maioria absoluta, em qualquer hipótese;

II — por parte comprovadamente interessada na matéria objeto de deliberação e aprovada por maioria absoluta, no caso de liberação comercial.

§ 1º A CTNBio publicará no SIB e no Diário Oficial da União, com antecedência mínima de trinta dias, a convocação para audiência pública, dela fazendo constar a matéria, a data, o horário e o local dos trabalhos.

§ 2º A audiência pública será coordenada pelo Presidente da CTNBio que, após a exposição objetiva da matéria objeto da audiência, abrirá as discussões com os interessados presentes.

§ 3º Após a conclusão dos trabalhos da audiência pública, as manifestações, opiniões, sugestões e documentos ficarão disponíveis aos interessados na Secretaria-Executiva da CTNBio.

§ 4º Considera-se parte interessada, para efeitos do inciso II do caput deste artigo, o requerente do processo ou pessoa jurídica cujo objetivo social seja relacionado às áreas previstas no caput e nos incisos III, VII e VIII do art 6º.

De fato o dispositivo legal acima transcrito prevê a “possibilidade” e não a obrigatoriedade na realização de audiência pública quando da pretensão da liberação comercial de OGM´s.

No entanto, segundo já apontado na fundamentação supra, este dispositivo foi o único de toda a lei que veio a proporcionar uma forma, a mínima que seja, de efetiva participação popular no processo de liberação comercial de transgênico. Ressalve-se, neste ponto, que a participação popular encontra-se garantida pela Constituição Federal de 1988, como forma de viabilização do Estado Democrático atualmente existente, o que se traduz pelo disposto no art. 1º, parágrafo único: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Sendo assim, a realização de audiência pública na hipótese em tela nada mais é do que a consagração desta participação do povo, que inegavelmente se encontra diretamente interessado em qualquer decisão que venha a ser tomada pela CTNBio na liberação do milho transgênico.

Note-se que a audiência pública é o real instrumento de informação ao público, pois convida a comunidade a manifestar-se sobre questões sociais e ambientais que interessam diretamente a ela, como é o caso em mesa. Outrossim, conforme ensina Edis Milaré, “prescreve o art. 15 que a Comissão poderá realizar audiência públicas, garantida a participação da sociedade civil, sempre em conformidade com o regulamento.

Trata-se aliás, de uma abertura oportuna e necessária para que a a sociedade se manifeste e pressione democraticamente, quando for o caso, para evitar que a atuação da CTNBio sofra distorções indesejáveis e escorregue em atitudes tecnoburocráticas, quando não em armadilhas de facções movidas exclusivamente por seus próprios interesses econômicos.

Afinal, estão em jogo o interesse público e a preservação da saúde ambiental, assim como da saúde humana” (Milaré, Édis. Direito do ambiente. 4 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 338).

Cumpre notar, ainda, que a liberação dos OGM´s foi matéria que gerou grande polêmica na sociedade, devido a possíveis problemas de sua plantação relacionados tanto com o meio ambiente, quanto com os direitos dos consumidores.

Ressalve-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de toda a coletividade (art. 225 da Carta Magna), tendo sido inclusive alçado a título de direito fundamental. Não existe, até o presente momento, estudo aprofundado que determine explicitamente a danosidade ou não dos transgênicos para o meio ambiente.

Ora, como de sabença, um dos corolários do Direito Ambiental é o princípio da precaução, acolhido em convenções internacionais, legislações internas dos países e, também, em decisões judiciais. Seu objetivo é a antecipação de prováveis riscos, em diversos estágios de periculosidade concreta, suplantando-se a precipitação na implementação das atividades humanas.

Pelo princípio, ao invés de se aguardar até que exista prova de um impacto negativo sobre o meio ambiente, age-se antes da sua materialização, impondo-se medidas preventivas na hipótese de incerteza científica.

O art. 225, caput, da Constituição Federal ao dispor que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, cabendo ao Poder Público e à coletividade “preservá-lo para as presentes e futuras gerações”, consagra este princípio no ordenamento jurídico brasileiro, o qual restou expresso ademais na Declaração do Rio de Janeiro, votada na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento em 1992, na Convenção da Diversidade Biológica (Decreto nº 2.519/98) e na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (Decreto nº 2.652/98).


Isso significa que a preservação ambiental não será garantida apenas pelo combate a danos ambientais já causados, que poderão ser apenas remediados, mas principalmente por medidas que evitem sua ocorrência.

Paulo Afonso Leme Machado, com propriedade, discorre acerca das características do princípio da precaução:

A primeira questão versa sobre a existência do risco ou da probabilidade de dano ao ser humano e à natureza. Há certeza científica ou há incerteza científica do risco ambiental? Há ou não unanimidade no posicionamento dos especialistas? Devem, portanto, ser inventariadas as opiniões nacionais e estrangeiras sobre a matéria. Chegou-se a uma posição de certeza de que não há perigo ambiental?

A existência de certeza precisa ser demonstrada, porque vai afastar uma fase de avaliação posterior. Em caso de certeza de dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou de incerteza, também se deve agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção.

O princípio da precaução consiste em dizer que não somente somos responsáveis sobre o nós sabemos, sobre o que nós deveríamos ter sabido, mas, também, sobre o que nós deveríamos duvidar. (LAVIEILLE. Droit International de l’Environnement)

Aplica-se o princípio da precaução ainda quando existe a incerteza, não se aguardando que esta se torne certeza.

(Princípio da Precaução no Direito Brasileiro e no Direito Internacional e Comparado. In Princípio da Precaução. Organizadores: Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 362/363, grifou-se)

Destarte, não obstante a Lei de Biossegurança tenha permitido a plantação de transgênicos, desde que devidamente liberados pela CTNBio, conforme já indicado acima, o atendimento ao princípio da precaução vem ressaltar ainda mais a necessidade de realização de audiência pública em casos como o presente.

Por fim, importante frisar que, na hipótese em tela, a justificativa para o indeferimento do pedido não se sobrepõe à importância da participação popular do procedimento. Por mais que a ré busque justificar sua atitude sob o fundamento de que a comissão está composta por especialistas de várias áreas do conhecimento, esta não é justificativa suficiente a fim de desconstituir a importância da participação popular, na medida em que se trata de assunto de interesse geral, de toda a população, e não de apenas algumas pessoas específicas, escolhidas em listas tríplices, e não por votação popular.

3. Diante do exposto, defiro o pedido de liminar, suspendendo o andamento do processo administrativo nº 12000.005154/1998-36, em trâmite perante a CTNBio, até que se realize a audiência pública pretendida.

Intime-se, com urgência, a ré, bem como a CTNBio (endereço à fl. 21, item c) para que seja dado integral cumprimento à presente decisão, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (hum mil reais).

Intime-se.

Ciência ao Ministério Público Federal.

Cite-se o réu para que, querendo, apresente resposta, no prazo legal.

Apresentada a contestação, cumpra-se o inc. V do art. 234 do Provimento n° 02/2005, da Corregedoria-Geral do e. TRF da 4ª Região.

Em atenção à economia e à celeridade processuais, a segunda via da presente decisão servirá de mandado de citação e de intimação.

Curitiba, 14 de dezembro de 2006.

Nicolau Konkel Junior

Juiz Federal

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