Justiça e bandido

São dois delinqüentes: um a favor e outro contra a lei

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14 de dezembro de 2006, 19h18

Aos 50 anos de advocacia criminal, o advogado continua um romântico perdido nas chamadas regras da cavalaria. Talvez seja um processo psicológico retardando o envelhecimento, mas a leitura sempre renovada dos romances de capa-e-espada, histórias revestidas de duelos épicos em defesa da honra da rainha e resistência aos procuradores do rei mantém conceitos básicos naquilo que seria, hoje, o retrato do conflito entre acusação e defesa. Se no tempo de Scaramouche, o Fazedor de Reis, havia uma luta constante entre o advogado mascarado e o procurador-geral da França, escondendo-se um para não ser morto pelo outro, nada mudou no alcançamento da data de hoje.

Sempre afirmei, mesmo depois de cansar os olhos à leitura de milhares de livros já gastos, que o processo penal é, sobretudo, sentimental. Dentro dele viajam, remando em rota de colisão, o dia e a noite. Não é, aliás, nada parecido com lições de um processualista português, por coincidência chamado Luso, aconselhando as partes (leia-se o réu) a colaborarem com a Justiça. Tal sugestão, diga-se de passagem, pelo que tem de rusticidade, seria mau exemplo para a inteligência do povo lusitano, cuidando-se, na área jurídica, de nação respeitadíssima pela ciência que consegue ainda passar ao mundo.

A colaboração que a defesa pode dar é, sempre, limitada à lealdade impressa na atividade de contradição. E só. Aliás, as novidades trazidas pela denominada delação premiada, herdada do exterior, constituem um dos maiores exemplos de como se permite à Justiça, para a consecução de seus fins, a prática de um dos mais sórdidos estelionatos legitimados pela legislação. Mas o comentário vem incidentalmente, pois a crônica é por natureza breve e merece, por isso, maior concisão.

Nesse passo, ainda em rememoração a período não muito antigo da história, deixe-se a França de lado, com seus espadachins, partindo-se para a nobreza inglesa. Havia na Inglaterra — e ainda há — a denominada Caça à Raposa. É uma temporada. Os cavaleiros se põem nas rubras roupas de montaria, montam seus cavalos lusidios, convocam os palafreneiros, acorrentam os cães e soltam as raposas na floresta, tratando-se de campos já conhecidos pelos cavaleiros. Em seguida, perfilando-se, aguardam o toque do clarim, sinal de que a caçada começou. As raposas, não se iludam, conhecem a natureza urgente do tom daquele silvar. E começam a correr, escondendo-se nas tocas, atravessando os riachos para enganar o faro dos mastins babujentos, tentam alcançar as árvores ou ocultar-se entre os trigais. Tudo acaba em festa. Os bichos morrem no tiro, pois a regra é que o cachorro não pode colher entre as presas a jugular do animal acuado.

Há outras particularidades. Os bichos, descarnados e empalhados, são oferecidos, como troféus, àquele que os matou. Olhos de vidro, caninos postos à mostra, ornamentam as paredes dos salões do vencedor. A desobediência a qualquer das regras instituídas para a caça à raposa priva o vencedor das honras estatutárias. Perde os lauréis e não leva a mortalha para seus aposentos.

Vale a analogia para a distribuição da Justiça. De uns tempos a esta data, começou-se a trabalhar com o arrefecimento dos princípios éticos atinentes à persecução, firmados os arautos no pressuposto de que o denominado crime organizado assemelha dose igual de agressividade na retorsão. Juízes e promotores de Justiça se escondem, muita vez, sob os colchões dos suspeitos.

Eles violentam lares de culpados e inocentes, vigiam nos buracos das fechaduras, interpenetram nas intimidades, apoderam-se de prontuários médicos, surrupiam documentos contábeis e cartas de amor, sabem tudo sobre as finanças do banqueiro impertinente e do padeiro da esquina, escondem prova, comportam-se com artifícios mil, trabalham à noite, à sorrelfa, e finalmente, sem qualquer toque de clarim mas com irrefreável avidez publicitária, convocam aqueles outros, também disfarçados, à demonstração pública do resultado, mostrando ao povo, então sim, o resultado da caçada feita na madrugada silenciosa, sub-reptícia e repleta de névoa cinzenta.

A raposa, então, como num passe de mágica, tem sua carcaça exposta ao universo, pois a conseqüência da caça estava sendo gulosamente preparada para o espocar das luzes de uma só rede de televisão.

Dentro do contexto, partir-se-á, evidentemente, para a explicação de que a Justiça brasileira (brasileira não, universal), para ser eficaz, precisa usar os mesmos métodos do delinqüente: astúcia, investigação marginal, infiltração nas sociedades criminosas, praticando o agente, aliás, os mesmos crimes dos investigados, interceptação telefônica e na internet, questões de cama, talvez, pois ouvir as confissões do delinqüente após o amplexo sexual (o homem é sempre frágil nessas horas) constitui, também, manobra usada desde os tempos de Cleópatra, passam, todos esses métodos, a fazer parte do arsenal atribuído aos amantes da caça à raposa.

O povo gosta, porque o faxineiro da esquina, mesmo querendo, não conseguirá nunca chegar às alturas do animal-referência. Há de ser, no máximo, o vira-latas perseguido pelo homem da carrocinha. E tem ciúme, e tem raiva, tem mesmo ódio do animal que, enquanto ensangüentado, tem mais tarde a carcaça lavada a sabão perfumado e pendurada no átrio do castelo do rei. Que coisa horrível!

A Justiça brasileira, sem o saber (alguns sabendo), está sendo levada, aos poucos, à admissão da tortura. Já consegue encarcerar gente, durante meses e até anos, num tubo de concreto e aço em que não se vê o sol, não se ouve som qualquer além do latido das feras posta a vigiar, não se sabe se é dia ou se é noite, perde-se o ciclo do sono, permanece-se no pesadelo porque a própria vida ali dentro já o é.

Em Presidente Bernardes (interior de São Paulo), os reclusos já começam a sofrer um lento processo de cozimento. Se a Justiça consegue isso, pode contratar alguns técnicos, adiante, para o aperfeiçoamento da forma do alicate, das agulhas perfurantes, dos tubos condutores da água que afoga o torturado a seco, da atividade, muito praticada na ditadura, da prisão do cônjuge inocente para a aproximação do culpado, da violência às intimidades corporais e do resto todo que já faz de Bush, nosso exemplo, o pior carrasco que a humanidade moderna concebeu (Lei Marcial)

Para finalizar, diga-se que parte da Justiça nacional, em alguns aspectos e por aqueles que assim agem, começa a dançar, com muito maior entusiasmo, a dança que a fazia opositora do bandido, transformando-se, embora vagarosamente, nesse bailado, numa comparsa do antigo antagonista. Em outros termos, dois grandes grupos de delinqüentes, um agindo a favor e o outro contra a lei.

Romântico como sempre, consigo transformar em linguagem coloquial as preleções do grande Franco Ferracutti. Se houver censuras, tirem-no do túmulo. Ele ainda é capaz de combater bem a guerra santa.

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