À sombra da conciliação

Advogado perde ganha-pão quando negociador entra em jogo

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14 de dezembro de 2006, 15h22

A celebração do chamado Dia Nacional da Conciliação na Justiça do Trabalho, justamente depois da momentosa decisão da SDI do TST, reconhecendo a obrigatoriedade indeclinável da submissão dos conflitos às Comissões de Conciliação Prévia, desperta algumas aflitas reflexões a respeito do futuro do Direito do Trabalho em nosso país.

A pedra fundamental do sistema republicano reside em que os cidadãos são sujeitos de direitos. A capacidade de ser sujeito de direitos é um dos atributos básicos da cidadania. Para fazer valer estes direitos é que se constitui o aparato do poder jurisdicional a quem incumbe a íngreme tarefa de concretizar para alguém aquilo que lhe é devido por lei ou por contrato. Nos últimos anos, todavia, os operadores do Poder Judiciário vêem constatando que o Estado brasileiro não está dando conta deste árduo encargo. Faltam juizes, servidores, equipamentos para entregar ao povo, de forma rápida e eficaz aquele serviço público que podemos chamar de prestação jurisdicional.

Esta crise atroz tem levado a que os agentes deste Poder busquem ansiosamente uma solução para o problema e os raciocínios que têm sido por eles elaborados tomam como premissa enxergar esta tragédia social com o olhar daqueles que têm de entregar aquele serviço público tão essencial. O cidadão comum bate as portas do Judiciário imbuído da convicção de que está entrando num sistema que tem por razão de ser fazer valer o direito de cada um.

Paradoxalmente, para quem está lá dentro, contudo, o que vem entrando não é um direito a ser tutelado. É um conflito. Para o cidadão comum existem direitos que foram violados e ele quer ver tutelados. Mas, para quem opera o mecanismo, o que existem são conflitos que é preciso resolver arduamente, descobrindo quem está com a verdade, quem está coberto de razão nos termos da ciência do Direito. No imaginário de quem está fora do castelo, ele é um portador de direitos. Mas, para quem está dentro daqueles muros, o sujeito é portador, apenas, de uma pretensão resistida.

Ao despir a controvérsia do pressuposto ético de que a mesma tem como razão de ser a obtenção de Justiça e reduzi-la a um singelo problema técnico de decidir um conflito, o observador vai enxergar apenas as necessidades daqueles técnicos de solucionar conflitos e não as do povo que reclama Justiça.

A busca de soluções, então, resume-se em pretender resolver o problema do Judiciário e não o problema do cidadão que é o usuário deste serviço público. Como o sistema está em crise justamente porque faltam meios para dar vazão a tanto serviço, a solução que vem sendo celebrada em prosa e verso consiste em criar mecanismos pelos quais o cidadão seja induzido a abrir mão de parte de seu direito ao invés de ir bater às portas daquele poder. Os conflitos seriam solucionados lá fora e o serviço diminuiria.

Como no famoso conto de Kafka, alguém estaria guardando estes portais e dizendo ao interessado que deveria abrir mão de parte do que é seu porque lá dentro não haveria solução para o seu problema. Este Cérbero moderno ficaria postado diante dos portões, equipado com tão poderosa ameaça que reduziria substancialmente a quantidade de cidadãos dispostos a cruzar aqueles umbrais.

O vulto ameaçador, contudo, é apresentado ao povo com outra vestimenta, aparecendo como um ente simpático e carinhoso denominado de conciliação. A tal conciliação consiste em dar as mãos generosa e efusivamente a aquele que violou o seu direito e renunciar a parte do que lhe é devido, porque o Estado é incapaz de punir o ofensor de forma eficaz, concretizando forçadamente a obrigação devida a aquele que foi lesado.

O pressuposto deste sistema é o de que o povo, na verdade, não tem direitos. Tem pretensões resistidas. Reduzindo a questão a estes termos, não haverá necessidade dos operadores do sistema intervirem neste cenário. Não há necessidade do agente que deveria tutelar o direito, ou seja, o juiz. E não há necessidade daquele agente que deveria provocar o sistema para fazer valer o direito, ou seja, o advogado.

O estudante de hoje enfrenta cinco anos de estudos complexos e vai submeter-se, depois, a um dificílimo Exame de Ordem para, no fim desta caminhada, descobrir que não há necessidade de juizes ou advogados, mas, apenas, de negociadores. Para ser um bom negociador e operar a conciliação, não é preciso ter formação jurídica. Nas chamadas Comissões de Conciliação Prévia criadas para este fim, na anti-sala da Justiça do Trabalho, esta tarefa, na grande maioria, é desempenhada por eficazes rábulas sindicais.

É claro que os juízes e os advogados, por este motivo, não caminham para a extinção porque este mecanismo instituído nos jardins do poder jurisdicional não é eficaz contra todo o tipo de destinatário. Para muitos, ainda subsiste a idéia de que o seu direito é algo precioso e que deve ser tutelado pelo sistema, não se resumindo simplesmente em dinheiro que não foi pago.

A ameaça implícita na admissão da incapacidade do Estado para fornecer resposta rápida e eficaz ao lesado, contudo, é bastante poderosa. Aquele empregado, por exemplo, que não foi registrado e não recebeu os seus direitos, no mais das vezes, vai abrir mão de parte dos mesmos porque não pode esperar pela tutela do Estado. Conseqüentemente, não haverá a extinção destes papéis, mas os juizes e os advogados vão ficando com muito menos conflitos para resolver.

Para o juiz, isto é muito bom porque poderá julgar melhor e mais rápido aquilo que ultrapassar a barreira, mas para o advogado, isto será muito mau porque cada conflito traz consigo um cliente e é do cliente que ele obtém o seu sustento. Perde o seu ganha-pão porque lá diante da porta do Judiciário um negociador gratuito já resolveu o conflito. Seria justa esta devastação da profissão se o conflito tivesse sido resolvido mediante a satisfação do direito violado e não pela pura e simples abdicação do mesmo, conformando-se com a lesão em troca de alguns trocados. Ao invés de resistir a esta maré, parte dos órgãos de classe deixa-se levar por este canto de sereia, seduzida pela ilusão de que neste não tão admirável mundo novo, o advogado é que será o negociador.

O discurso do Direito do Trabalho tem como pedra fundamental a idéia de proteger o hiposuficiente, revestindo os seus direitos com o chamado manto do princípio de ordem pública. Assim, numa relação de subordinação, a abdicação de quaisquer vantagens não tem valor porque elas são protegidas pela irrenunciabilidade. Tal proteção desaparece no momento em que o empregado perde o emprego porque, antes de poder adentrar o Judiciário para tentar receber o que lhe é devido, será obrigado a submeter-se à conciliação. Entrará no território da renunciabilidade, curvado sob o peso da ameaça de penar por muitos anos nos corredores do Judiciário para tentar receber o que é seu. Não poderá adentrar estes corredores sem palmilhar de antemão o áspero caminho denominado de Comissão de Conciliação Prévia, na qual sofrerá a pressão econômica para desistir de tão árdua empreitada.

No dia da Justiça de 2006, os operadores do Judiciário celebraram com pompa e circunstância o esforço nacional de convencer os cidadãos a abrir mão de parte de seus direitos ao invés de adentrar o Judiciário. O chamado Dia Nacional da Conciliação não foi a celebração da Justiça, mas do Judiciário empenhado em livrar-se de parte substancial das chamadas pretensões resistidas. Tal postura abdica da idéia de que por detrás dos tais conflitos que atravancam as escrivaninhas, existem dezenas de milhares de pessoas que submeteram-se diariamente a não contar com aquilo que a Constituição Federal e a lei trabalhista construíram como patamar de cidadania para o trabalhador.

O Direito do Trabalho, em grande parte, existe apenas no papel e o estímulo à renúncia aos direitos somente serve a perpetuar a sistemática desconstrução do direito à cidadania. O tão propalado lema de que “conciliar é legal” esconde que a falência do sistema que não consegue fazer valer os direitos dos cidadãos é uma tragédia para os que estão no andar de baixo e uma vitória para o pessoal do andar de cima.

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