Evolução da lei

Mudanças de entendimento também geram insegurança jurídica

Autor

11 de dezembro de 2006, 19h13

Imagine colocar 11 pessoas na mesma casa e atribuir a elas o papel de decidir questões importantes sobre os vizinhos. Imagine que a mais nova dessas pessoas tem menos do que seis décadas de vida e que o tempo máximo para ficar na posição de decisão sobre a vizinha é até completar 70 anos de idade. Muitos, portanto, ficarão mais de 10 anos na casa. Imagine que, cada vez que alguém completa 70 anos, outro vizinho devidamente capacitado é escolhido para substituir o aposentado. Dá para exigir que cada um mantenha sempre a mesma opinião e que o novo integrante acompanhe o que entendem os velhos?

Pense agora que essa vizinha é tão numerosa como o Brasil e que a casa de decisões é o Supremo Tribunal Federal. Nesse cenário, fica mais fácil entender porque o tribunal, a quem cabe o papel de guardião da Constituição, também revê as suas próprias decisões, muda de entendimento, faz renascer súmulas, aceita leis, desconsidera atos, modifica jurisprudências de 15 anos e, depois de outros 15, as retoma. É a regra do jogo ditada pelos humanos. Mas, nem por isso, deixa de ser um forte causador de insegurança jurídica no Brasil.

Durante o primeiro dia do III Congresso Nacional de Estudos Tributários, promovido pelo Instituo Brasileiros de Estudos Tributários (Ibet) em São Paulo nesta segunda, terça e quarta-feira (11, 12 e 13/12), especialistas se debruçaram sobre a influência do Judiciário na segurança jurídica do país.

“A Constituição grita que segurança jurídica é um valor fundamental”, reforça o ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça. Mesmo assim, acredita o ministro, as leis já nascem no país com a presunção de inconstitucionalidade. A questão, então, pára nas mãos do Judiciário, mais precisamente do STF, que fica responsável por analisar a constitucionalidade da lei.

A interpretação é subjetiva. O Supremo é feito de humanos. O resultado da soma pode ser visto em um exemplo que o ministro dá para ilustrar o quadro de insegurança jurídica no país: a cláusula de barreira. “A lei que prevê a cláusula existe desde 1995. Agora, por unanimidade, o Supremo a declara inconstitucional.” Apesar de seus 11 anos, ela nasceu e morreu sem ser efetivamente aplicada.

Detalhe de R$ 1 milhão

Nas questões tributárias, uma mudança em determinado entendimento pode levar a empresa a falir. “A jurisprudência cria expectativa. Como ficam as pessoas que acreditam na jurisprudência?”, questiona o professor da Universidade de São Paulo Cândido Rangel Dinamarco.

Um exemplo do ir e vir está na Súmula 584 do Supremo. Aprovada em 15 de dezembro de 1973, ela diz: “Ao Imposto de Renda sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”. Ou seja, a jurisprudência afirma que, se uma lei modificar a alíquota do IR, por exemplo, em dezembro, no ano seguinte, quando o contribuinte for recolher o imposto do ano anterior, ele terá de pagar o imposto com a alíquota nova. Em 1973, para o Supremo, isso não feria o princípio da irretroatividade.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 513, de junho de 1991, o STF reviu seu entendimento e desconsiderou a súmula. O aumento no imposto passou a vigorar no imposto do próximo ano. Sete anos depois, em março de 1998, nova reviravolta. O Supremo voltou a interpretar a questão de acordo com a Súmula 584.

Mais recentemente, os ministros do STF têm se debruçado sobre um fator importante para a segurança jurídica. Ao analisar a possibilidade de repetição de indébito na substituição tributária, os ministros discutem se é possível que o Supremo analise questão que já foi tratada pela corte em Ação Direta de Inconstitucionalidade. Prevalece o entendimento favorável, de que a jurisprudência do tribunal pode e deve se reciclar.

No caso específico, o tribunal já tinha se posicionado, em uma ADI, pela inconstitucionalidade da repetição de indébito quando o fato gerador ocorre por um preço inferior ao presumido. Os ministros entendiam que a repetição só era possível quando o fato não ocorria. Hoje, com cabeças novas na corte, o STF caminha para mudar sua jurisprudência. Dois dos três ministros que votaram acham que a compensação é possível também quando o fato gerador ocorre, mas em preço inferior ao presumido.

“Olha a que ponto chegamos”, diz o ministro Delgado. “Penso em uma Emenda Constitucional no Direito Tributário que só permita mudança na legislação e jurisprudência após 10 anos.” A culpa para esse “ponto a que chegamos” seria do ir e vir do crédito-prêmio do IPI, alíquota zero de insumos, a exigência de Cofins ou não para sociedades de profissionais, e assim vai.

Regras da reciclagem

Se a sociedade se renova, evolui, não há por que não acontecer o mesmo com a jurisprudência. Antigamente, se o estuprador casava com a vítima ou se esta casava com outra pessoa, não havia mais crime. Hoje, os costumes sociais são outros e já não se entende mais o crime como simples mancha na moral da mulher. Não casamento que livre o estuprador da punição.

“As mudanças na jurisprudência são fatores da evolução axiológica da sociedade”, afirma o professor Dinamarco. Ele critica o radicalismo de decisões que não levam em conta esse desenvolvimento.

Assim como Dinamarco, nenhum especialista defende a imutabilidade do entendimento do tribunal supremo. Mas todos chamam a atenção para o cuidado com que tem de ser feita essa mudança.

“É preciso estabelecer critérios claros para saber quando, de fato, a decisão está consolidada”, afirma Luís César Augusto Souza de Queiroz, mestre e doutor pela Pontifícia Universidade de São Paulo. A partir daí, fica mais fácil estabelecer se a mudança irá retroagir ou não. É a escolha entre o ex nunc (daqui para frente) e o ex tunc (que vale para o passado também).

Com critérios claros e uma estabilidade que permita ao contribuinte confiar, não só na lei, mas também na interpretação dada pelo tribunal, o Direito, enfim, poderá dizer que atende à sua finalidade. Pelo menos no campo tributário. “Ainda que o homem não queira a paz, a finalidade do Estado é impor a paz”, diz José Delgado. E o Direito serve para isso.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!