Alienação fiduciária

Veja voto de Cezar Peluso sobre devedor em alienação fiduciária

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10 de dezembro de 2006, 6h00

Oito ministros do Supremo Tribunal Federal já votaram por não equiparar o devedor em alienação fiduciária ao depositário infiel. Se prevalecer o entendimento, a prisão civil será considerada inconstitucional para o devedor. O julgamento foi suspenso por um pedido de vista de Celso de Mello.

O voto que direcionou a decisão dos ministros até agora foi o de Cezar Peluso, relator de recursos dos bancos Bradesco e Itaú, que não querem perder esse importante instrumento de coação do devedor.

Para Cezar Peluso, depósito e alienação fiduciária não podem ser considerados a mesma coisa. No segundo caso, o bem alienado é usado pelo alienante. No depósito, o bem não pode ser usado. “Se o depositário se concede o direito de usar da coisa, já não haverá depósito.”

Por outro lado, “a abertura de crédito com garantia de alienação fiduciária” revela a intenção de provisão de recursos para aquisição de bens duráveis, constituindo-se em garantia do pagamento do crédito. Dessa forma, o sentido de alienação fiduciária para aquisição bens é o “negócio jurídico em que um dos figurantes adquire, em confiança, determinado bem, com a obrigação de devolvê-lo, ao se verificar certa condição acordada”. Sob essa ótica, para Cezar Peluso, “é impossível encontrar na alienação fiduciária em garantia resíduo de contrato de depósito e até afinidade de situações jurídicas subjetivas entre elas”.

Peluso sustenta que desde a Constituição de 1934 prevalece no Brasil a doutrina jurídica que estabelece que “não haverá prisão por dívidas, multas ou custas” sem qualquer outra restrição.

Ao pedir vista do processo, o ministro Celso de Mello explicou que pretende refletir melhor sobre o assunto, uma vez que veio à tona discussão mais ampla sobre a possibilidade de prisão para o depositário infiel. Isso porque o ministro Gilmar Mendes discorreu sobre a hierarquia dos tratados constitucionais.

O Brasil é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o chamado Pacto de San José da Costa Rica, de 1969. O artigo 7º desse acordo estabelece: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.

O tratado conflita com a Constituição brasileira, que permite a prisão civil também em uma segunda hipótese, a do depositário infiel. Há, portanto, um choque entre as duas normas. O Supremo decidirá qual deve prevalecer.

Leia o voto

22/11/2006-TRIBUNAL PLENO

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 466.343-1 SÃO PAULO


RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

RECORRENTE(S): BANCO BRADESCO S/A

ADVOGADO(A/S): VERA LÚCIA B. DE ALBUQUERQUE E OUTRO(A/S)

RECORRIDO(A/S): LUCIANO CARDOSO SANTOS

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO — (Relator): Trata-se de recurso extraordinário interposto pelo Banco Bradesco S/A, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, no julgamento de apelação, confirmou sentença de procedência de ação de depósito, fundada em alienação fiduciária em garantia, deixando de impor cominação de prisão civil ao devedor fiduciante, em caso de descumprimento da obrigação de entrega do bem, tal como o postulara o autor fiduciário, por entendê-la inconstitucional, como deixou expresso em embargos declaratórios.

Sustenta o recorrente, com fundamento no art. 102, III, a, da Constituição Federal, que o acórdão impugnado teria infringido o art. 5º, inc. LXVII, da Constituição da República, nos termos em que o aplicava a casos idênticos a jurisprudência dominante desta Corte (fls. 79-89).

É o sucinto relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator):

1. O recurso repropõe a questão ainda atual, a que esta Corte tem, por maioria, dado resposta positiva,(1) da compatibilidade, ou não, de certa leitura do art. 4º do Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, agora com a redação introduzida pela Lei nº 6.071, de 3 de julho de 1974 – que concede ao credor fiduciário ação de depósito fundada no contrato de alienação fiduciária em garantia, quando não encontre o bem ou não se ache este na posse do devedor fiduciante – com a norma do art. 153, § 17, da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, que vedava a prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso de depositário infiel ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei.

Noutras palavras, trata-se de aferir se a seqüela da prisão civil, inerente à ação de depósito, se ajusta, ou não, à exceção prevista no cânone constitucional, quando a depositário infiel ficou equiparado, por força da norma subalterna, o devedor fiduciante.


2. Pressuposta, na questão, equiparação legal de posições jurídico-subjetivas de figurantes dum e doutro negócio jurídico, começo por analisar os contratos de depósito e de alienação fiduciária em garantia, para efeito de demonstrar que, entre ambos, no que concerne ao tema do recurso, não existe afinidade alguma, conexão teórica entre dois modelos jurídicos que permita à razão passar, facilmente, de um para outro.

Não é caso de perquirir eventual consemelhança no plano fático, diante do qual se poderiam considerar pontos comuns, assim porque os objetos da indagação aqui são já fatos juridicamente qualificados­, isto é, fatos normatizados segundo distintos valores, como porque, até no nível factual, seria custoso encontrar-lhes similitude, pois a construção jurídica da alienação fiduciária em garantia, à luz da experiência, é baseada sobremodo no artifício da ficção jurídica, concebida como técnica própria do mundo do Direito, por meio da qual se criam verdades jurídicas que não encontram correspondência alguma na realidade física.(2)

Não custa lembrar que, consoante terminologia talvez algo antiquada, mas expressiva, a causa final do contrato de depósito está, como dispunha o art. 1.265 do revogado Código Civil, na guarda e restituição da coisa depositada.(3) A tipicidade do depósito consiste em que a custodia rei é o fim precípuo do contrato, de modo que a obrigação de restituir é seu elemento estrutural ou essencial. Guarda-se a coisa para ser restituída e, nisso, exaure-se a substância jurídico-conceitual do depósito, que é negócio concebido no interesse do tradens, e não, do accipiens.

Daí se tira que, como síntese, a guarda da coisa é o conteúdo econômico-social desse negócio jurídico, o que repele, desde logo, toda idéia de acessoriedade, acidentalidade, ou subsidiariedade da custódia. Onde seja esta instrumental, não há contrato de depósito. E essa particularidade identifica as espécies derivadas de depósito (como o irregular, o necessário, etc.) e, sem ela, não há como nem por onde reconhecer a existência do negócio jurídico matriz.

O depósito tem notas comuns a diversos tipos de contrato, como sucede com a tença e a custódia. A tença é ingrediente remoto das representações normativas, sem nenhuma repercussão no tema, dado o caráter genérico com que entra, mediante qualificação jurídica própria, em massa enorme de contratos. E “La obligación de custodia es muchas veces un simple fenómeno concomitante de otras relaciones obligatorias……. En tales casos, la custodia que levan consigo está sujeta en princípio a las normas de la relación obligatoria en que tienen lugar”.(4)

Não basta, pois, a presença de elementos negociais comuns para divisar afinidade entre os contratos, salvo no sentido, irrelevante para o caso, de que todos compartilham a natureza genérica da respectiva classe. Para que se possa vislumbrar alguma relação lógico-jurídica capaz de denotar afinidade de conceitos, é indispensável vínculo específico, pelo qual o depósito, na sua tipicidade, componha, ainda que funcional e secundariamente, a estrutura analítica doutro negócio jurídico.


Em síntese, a obrigação de guardar para restituir, inerente à tipicidade do depósito, integra, como consectário da causa final do negócio, a figura do depositário, de modo que, e isto não é sem relevo, depois de notar que a norma do art. 1.275 do Código Civil não constara do Projeto primitivo, “por contrária à natureza do contrato”, sustentava CLOVIS, com boas razões, que,

“(…) se ao depositário se concede o direito de usar da coisa, já não haverá depósito …”(5)

No outro extremo, a abertura de crédito, com garantia de alienação fiduciária, constituindo unidade negocial finalística, decomponível em vários contratos coordenados, revela, em primeiro plano, o escopo fundamental de provisão de recursos para aquisição de bens duráveis, ao qual estão preordenados todos os negócios jurídicos elementares. Como desempenha papel de garantia do pagamento de crédito, a alienação fiduciária em garantia assume cunho de acessoriedade em relação à causa econômica do conjunto negocial,(6) donde não haver erro em reconhecer-se que é contrato modelado no interesse primário do credor ou fiduciante.

Nesse complexo negocial, a abertura de crédito, salvo a força aglutinadora que exerce em torno dos fins dos negócios jurídicos encadeados, também pouco interessa ao caso, ao qual releva sobremodo a alienação fiduciária em garantia, que pode definir-se como negócio jurídico em que um dos figurantes adquire, em confiança, determinado bem, com a obrigação de o devolver ao implemento de certa condição acordada. É o sentido largo que cabe à espécie.(7)

A alienação fiduciária em si pode comportar fins diversos, como, p. ex., transmissão ulterior do bem a terceiro ou administração da coisa, mas, no caso, destina-se a garantir a execução de dívida de dinheiro firmada naquele outro contrato, que a precede na ordem lógico-jurídica. Por conta das vantagens inegáveis que apresenta sobre as demais modalidades de garantia de crédito, foi, na Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965 (art. 66), e no Decreto-Lei nº 911, concebida com o declarado propósito de garantir a liquidez das operações das instituições financeiras.(8)

Algumas de suas peculiaridades provam a asserção inicial de que parte dessa estrutura normativa está armada à base de ficções jurídicas. Assim, a extralegalidade encobre, decididamente, o artifício da celebração de negócio não perseguido pelos contraentes, os quais não pretendem, no fundo, a transmissão da propriedade, ainda que restrita e sob condição resolutiva, mas a garantia do financiamento. Por outro lado, como não há tradição efetiva da coisa para o adquirente fiduciário, o constituto possessório ou a traditio ficta,(9) pela qual se finge a entrega por só transmutação do caráter da posse, é fruto do mesmo processo técnico ficcional do Direito. Esta circunstância, aliás, por sua intuitiva ressonância na solução da causa, merece atenção singular. Embora não entre em contato físico com a coisa alienada, cuja posse é desde logo transferida ao fiduciante, o qual passa, por mera construção jurídica, a possuir pro alieno, o fiduciário assume fictícia obrigação de a restituir, quando se verifique a condição de pagamento da dívida.

3. Perante a tipicidade de cada negócio, advertida doutrina e não menos sensível jurisprudência nunca descobriram, em nenhum aspecto estrutural da alienação fiduciária em garantia, a presença de verdadeiro contrato de depósito. A própria redação primitiva do art. 66 e seus §§ da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, não continha expressão correspondente, nem nos textos de direito processual. Antes, afirmava-se:


“A circunstância de atribuir a lei ao fiduciante a condição de depositário não significa a coexistência de um contrato de depósito.”(10)

Por mais que relutasse, tampouco jamais consegui enxergar, no arcabouço negocial da alienação fiduciária em garantia, qualquer vestígio de um contrato de depósito com função instrumental. É verdade que o Prof. ALFREDO BUZAID, colhendo semelhança com o penhor e invocando GALVÃO TELES,(11) deu pela presença do depósito na hipótese de inadimplemento contratual do fiduciante, com recusa de restituição do bem, porque a relação jurídica prevista no art. 66 da Lei nº 4.728 assim o identificaria e, ainda, “porque o fiduciante possui a coisa em nome do fiduciário”.(12) Receio que lhe não posso dar razão, porque a semelhança entrevista não se dá:

“A significação particular da traditio como modo derivado da aquisição da propriedade mobiliária afasta comparações com o fenômeno da constituição do penhor sem a tradição efetiva da coisa empenhada. Não cabe a assertiva do mesmo escritor de que se trata de situação semelhante a do penhor sem entrega. Na alienação fiduciária, o fiduciante transfere seriamente a propriedade do bem dado em garantia, enquanto na constituição do direito pignoratício, o devedor conserva a propriedade do bem empenhado. A tradição, no penhor que a exige de forma efetiva, não se acompanha da intenção de transferir domínio, muito menos quando não há translação material do objeto. Nas duas formas, verifica-se a tradição, como transferência de posse, não de propriedade. A diferença aclara-se com o exame da posição do devedor pignoratício e do fiduciante. Aquele se torna depositário da coisa que, embora empenhada para garantir o pagamento da dívida, continua a lhe pertencer. É, em suma, singularmente, depositário de coisa própria. O fiduciante passa, também, por determinação legal, à condição de depositário, ou, quando menos, a ter suas responsabilidades, mas, para guardar e conservar coisa de outrem, coisa pertencente ao fiduciário, que, eventualmente, poderá vir a lhe pertencer, outra vez.”(13)

Conquanto se apoiasse no argumento de que a transferência do domínio não se opera independentemente da tradição, tal crítica prova, não obstante alguma inadequação conceitual, a clara assimetria ou dessemelhança entre os institutos.

Em segundo lugar, do só fato de, possuindo em nome do fiduciário, recusar-se o fiduciante à entrega do bem, após resolvido o contrato, não se pode passar ipso facto à afirmação da existência de relação de depósito, e não, de relação possessória, porque não há empecilho à caracterização de esbulho na situação pressuposta, o qual justifica, como, com acerto, afirma PONTES DE MIRANDA, o apelo também para a ação de vindicação de posse.(14) Se a posse direta do fiduciante, embora não própria, não anula a indireta do fiduciário, e se seu título está, como rezava a redação original do § 2º do art. 66 da Lei nº 4.728, nas condições do contrato, ligadas à singularidade da expectativa da resolução da propriedade pelo pagamento, nada impede que, resolvido o contrato que lhe assegurava e legitimava a posse direta, esteja configurado o esbulho, tal como se passa, em fenômeno análogo, no comodato, sem que, por isso, se descubra, neste ou naquela, relação jurídica de depósito.

É que, ademais, consoante se viu à luz dos caracteres próprios de cada negócio jurídico, a alienação e o depósito não são contratos redutíveis a modelo comum, nem sequer a padrões afins. Numa primeira perspectiva, considerados sobretudo os fins predominantes do negócio complexo em que se insere a alienação fiduciária, prende-se cada qual à tutela de interesses de natureza muito distinta, de modo que desempenham ambos funções sociais e jurídicas não menos díspares.


Ao depois, não há parentesco, nem similaridade quanto às posses, visto que o depósito supõe a entrega efetiva do bem ao depositário, enquanto, na alienação em garantia, tal entrega só pode imaginar-se mediante artifício montado a partir da suposição de que o fiduciário, que recebe a posse por ficção jurídica (constituto possessório ou traditio ficta), possa tê-la entregue, na modalidade indireta, ao fiduciante — o que não corresponde à realidade, pela razão óbvia de que nunca a teve antes disso, pois recebe apenas a indireta, ficando a direta com o fiduciante.

Dai, no caso de inadimplemento deste, falar-se, a rigor, em obrigação de dar coisa certa, excluída idéia de restituição, eis que nada recebeu daquele, senão que conservou ou reteve. A posse pertence ao fiduciante, mas o fiduciário é que, na verdade, tem obrigação técnica de restituição em caso de resolução da propriedade; por isso garante-se ao fiduciante a pretensão à restituição.

Finalmente, e isto é decisivo, na origem da alienação fiduciária, o fiduciante recebe a posse da coisa, não para custódia desta, nem o credor fiduciário a deixa (e não “entrega”) para esse fim, senão para dela usar e gozar em posição idêntica à do compromissário comprador, e, por conseqüência, nenhuma obrigação tem de restituir, salvo na hipótese de descumprimento do contrato, e não, na execução dele (termo prefixado no depósito ou à requisição do depositante), como é da essência mesma do depósito.(15) E já se viu que, se, de acordo com a própria finalidade econômica e causa jurídica do contrato, o suposto depositário adquire o direito de usar da coisa, já não há aí depósito.

Impossível, portanto, encontrar, na alienação fiduciária em garantia, resíduo de contrato de depósito e, até, afinidade de situações jurídico-subjetivas entre ambos. Quanto à identificação do depósito, já nada seria mister acrescentar, quando alguns dos defensores da viabilidade da ação de depósito e da prisão civil, confessando a dificuldade teórica em que se entalam, invocam a existência, não daquele contrato, mas apenas da esdrúxula figura de depositário ex vi legis, o que será objeto de apreciação detida mais adiante.

E de conexão estreita, que revele afinidade, de igual não se pode cogitar, pois sequer em parte convém à alienação o conceito de depósito, salvo quanto à mera tença do fiduciante, a qual em si não se presta à demonstração de coisa alguma, ou quanto à situação que, irradiando obrigação de entregar o bem em caso de desfazimento do contrato, guarda similitude, não, própria e especificamente, com o depósito, mas com todos os contratos em que há exercício condicionado da posse, como na locação e no comodato. A obrigação de entrega por parte do fiduciante é, aliás, sui generis e, pois, irredutível a outro esquema contratual, porque se destina à satisfação do crédito da financeira, e não, ao atendimento de uma exigência fundada no poder inerente ao domínio.

Alguma afinidade jurídica entre a alienação e outros contratos, essa pode encontrar-se com o negócio indireto, o simulado, a venda com reserva de domínio, ou a retrovenda. Não, todavia, com o depósito.

4. Assentada tal premissa, cumpre subir à norma do art. 153, § 17, da Emenda Constitucional nº 1/69, que, vedando a prisão civil por dívida, abre duas exceções, nos casos de depositário infiel e do responsável por inadimplemento de obrigação alimentar.


A regra tem por antecedente histórico o art. 113, nº 30, da Constituição de 1934, a primeira a estabelecer, entre os direitos e as garantias individuais, que “não haverá prisão por dívidas, multas ou custas”, sem qualquer outra restrição. A vedação não constou da Carta de 1937, mas ressuscitou, algo encurtada, na de 1946, que, no art. 141, § 32, consignava fórmula idêntica à que ora vige.

Diante da taxativa disposição da norma constitucional confrontada, já não faz sentido indagar se a hipótese seria de constrição proveniente de infidelidade como depositário, de proibição de pena por não pagamento de dívida, ou de meio coercitivo para entrega de coisa. Cuida-se de prisão civil, admissível, como tal, tão-só naquelas duas exceções constitucionais, que permitiram a sobrevivência do art. 1.287 do velho Código Civil e do art. 367 do Código de Processo Civil de 1939, ambos os quais contemplavam prisões civis por dívida, pois o primeiro, que foi o antecedente material e histórico do segundo, configurou desvio do pensamento jurídico dominante, na medida em que “não quis seguir doutrina liberal que, entre nós, condenava qualquer prisão civil por dívida”.(16)

Embora a norma constitucional tenha catalogado por implicitude, a título de exceção, entre os casos de prisão civil por dívida, a hipótese do depositário infiel, já não há lugar para distinções acerca da natureza penal ou processual da privação da liberdade. É suficiente que a hipótese se não acomode às exceções, para que incida a proibição constitucional peremptória.

Na espécie de prisão inerente à ação de depósito fundada em alienação fiduciária em garantia, o fiduciante assujeita-se à prisão civil, menos porque se recuse a entregar o bem do que pelo fato de ser devedor inadimplente e de a entrega possibilitar a satisfação, não de poder dominial, que seria próprio de depositante, mas do crédito do fiduciário. Tanto assim o é que, se o satisfaz desde logo, escapa a risco da constrição e à própria obrigação de entregar o bem, na qual se forceja por ver algo semelhante a obrigação de restituir, o que em tudo é diverso da relação jurídica do depósito, em cujo quadro há autêntica obrigação de restituir, e a pretensão de restituição do depositante tem causa e fins muito diferentes.

Isso mostra, à exaustão, que se trata de prisão civil por dívida de dinheiro. O que estava à base do art. 1.287 do Código Civil anterior era a repulsa da consciência jurídica ao fato de o depositário, que recebeu ao dono a coisa (quase sempre) para a custodiar e devolver, se recusar a fazê-lo, não obstante a submissão à prisão não aplaque essa repulsa, nem esgote as exigências da Justiça.(17) Por isso é que, cuidando-se de estritíssima relação de depósito, em que a admissibilidade da prisão, no caso de recusa de devolução, já “tem caráter violento, conservando-se nas legislações, como resquício da prática odiosa da prisão por dívida”, ponderava a doutrina que,

“Embora a lei não prescreva coerções para que se configure a infração, não deve o juiz decretar a prisão de plano.”(18)

5. Quanto à norma constitucional em si, ninguém tem dúvida de que, abrindo vistosa exceção a uma garantia individual, de um lado guarda os foros de norma de direito singular e, de outro, autoriza privação da liberdade física.

Que se está diante de restrição a garantia individual, seria fraqueza de espírito buscar demonstrá-lo. O mesmo se pode dizer quanto ao conteúdo de limitação da liberdade pessoal, de que a prisão é a privação por antonomásia.


E que o preceito pertença à classe das normas ditas excepcionais ou singulares, tampouco exigiria algum esforço intelectual. Das normas,

“… as singulares são verdadeiras exceções ou contradições abertas no sistema, constituindo no dizer do jurisconsulto “ius contra tenorem rationis propter aliquam utilitatem introductum” (PAULO, Dig., i, 3, FR. 16). O tipo de norma jurídica singular de mais imediata identificação é aquele em que o legislador abre, com suas próprias palavras, exceção a um princípio, a um conceito, a uma norma regular, afirmando princípio, conceito ou norma de significação contrária. Não é o intérprete, nesses casos, que tem de revelar o caráter excepcional do comando jurídico, para tachá-lo de singular. É o próprio legislador que enuncia sua vontade como exceção a outra vontade, expressa em outra norma de âmbito geral.”(19)

A superposição desses caracteres normativos postula regime próprio de interpretação.

6. À luz dos fundamentos e da função vital dos direitos e garantias individuais, bem como do dogma liberal universal da exclusiva autoridade da lei (“ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei”), não surpreende que este e aqueles sejam mais particular e firmemente afirmados, quando, perante o dado óbvio de que toda lei é sempre de algum modo restritiva, a restrição nomológica tenda a ampliar-se a ponto de comprometer os princípios e arruinar a liberdade.

Doutro turno, se, por razões particulares de conveniência ou de utilidade social, o ordenamento abre exceção ao tratamento genérico de uma ordem de fatos, para disciplina autônoma de certa categoria, está claro, à míngua de razão normativa que o legitime, que se não pode estender, por interpretação, o regime especial a outras hipóteses. Ao lado do regime geral é que se acham as forças sociais preponderantes na reconstituição semiológica e na aplicação de toda regra de direito positivo, sobretudo quando hospede garantias fundamentais ou valores individuais supremos.

Mais de uma razão jurídica está, assim, a predicar que a cláusula constitucional de que se trata é de todo alérgica a interpretação extensiva, capaz de atingir situações que, não se tratasse de norma excepcional restritiva da liberdade pessoal, até poderiam caber-lhe no âmbito de incidência, quando concorressem fundamentos para expansão de seu sentido emergente. Escusava que o enfatizasse a doutrina:

“Quando se dá o contrário, isto é, quando a letra de um artigo de repositório parece adaptar-se a uma hipótese determinada, porém se verifica estar esta em desacordo com o espírito do referido preceito legal, não se coadunar com o fim, nem com os motivos do mesmo, presume-se tratar-se de um fato da esfera do Direito Excepcional, interpretável de modo estrito.”(20)

“Do que foi dito, já se apura que o principal critério para determinar se um dispositivo legal é excepcional, é sua inextensibilidade. Quando tratarmos da interpretação extensiva e da analogia desenvolveremos esse ponto, e concluiremos que a “ratio legis” de caráter geral pode estender-se aos casos omissos, ao passo que a “ratio legis” de caráter excepcional, há de ficar confinada aos casos que especifica.”(21)


É o que constava, aliás, do art. 6° da Introdução ao Código Civil, abrogado menos por superação científica que por constituir objeto mais curial à dogmática. Exceptiones sunt strictissimae interpretationis. E é bom não esquecer que a “garantia dos direitos individuais deve ser interpretada de maneira a ampliar, em benefício da liberdade, os preceitos de entendimento duvidoso”,(22) nem que, desde GAIO, se reconhece que em todos os assuntos e circunstâncias a liberdade é que merece maior favor. (23)

É por isso que, como acentua VIEIRA DE ANDRADE, o princípio in dubio pro libertate, cuja fórmula resume tópico ou elemento importante “para a tarefa de interpretação das normas constitucionais”, constitui emanação do princípio mesmo da dignidade da pessoa humana e, como tal, “deve considerar-se um princípio geral no domínio dos direitos fundamentais”, no sentido “de que as restrições aos direitos devem ser expressas ou, pelo menos, poder ser claramente inferidas dos instrumentos normativos aplicáveis”.(24)

Nem vai tão longe a época em que se preconizava interpretação dita literal(25) da Constituição, quando a resposta à questão suscitada tendesse a cercear o exercício de direitos fundamentais ou a embaraçar garantias da liberdade individual, idéia de cuja defesa, no Brasil, ninguém levou a palma a RUI BARBOSA, para quem o Direito se subentende sempre a favor da liberdade, a qual não suporta artifício de condições restritivas por inferência.(26)

Tampouco a norma constitucional suporta recurso à analogia, que, seja de atribuição, seja de proporcionalidade, se reduz sempre a indução parcial baseada numa presunção, a de que duas coisas, que guardem ponto de semelhança, podem parecer-se (e não, que se pareçam deveras) quanto a outros.

Seria impróprio avivar que alguns autores chegam até a contrariar esses princípios todos, admitindo interpretação extensiva em hipótese de direto singular, ao assentarem que este pode regular, dentro de certos limites, uma generalidade de casos, com o caráter de autênticas “exceções-regras”.

É que a exceção constitucional se adscreve a duas hipóteses de contornos nítidos, cuja dilatação implicaria a mais severa restrição à liberdade física dos cidadãos, com a agravante de transpor os limites do recurso analógico, que são a afinidade dos fatos e a identidade de razão jurídica, nenhuma das quais se acha presente na hipótese. E, na dúvida entre a tutela da liberdade e de interesses econômicos privados, que podem ser satisfeitos doutros tantos modos, sem o adjutório de tão escandaloso privilégio que, num como retrocesso às épocas anteriores à Lex Poetelia Papiria de nexis,(27) faz da pessoa humana mero corpus vilis, não há alternativa possível para o intérprete, constrito sempre a reverenciar o primado constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), que doutro modo estaria aqui gravemente ofendido.(28)

7. É de indagar-se agora o sentido e alcance da norma, que consignava: “Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso de depositário infiel ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar, na forma da lei”.


Em primeiro lugar, cumpre descobrir o sujeito passivo desse comando excepcional, ou seja, o que deve entender-se por depositário infiel. Parece claro que, não descendo o texto constitucional à definição da figura, seu conteúdo semântico só pode encontrar-se no ordenamento subalterno.

Ora, a fonte normativa está na disciplina do contrato de depósito, fora de cujo âmbito a expressão original depositário não tem senso algum, como o não tem locatário, senão em referência à locação. E que é, como noção jurídica primária, o depositário, senão o contraente que, no negócio jurídico do depósito, recebe a coisa para custodiar e devolver?

A pergunta subseqüente é se pode a lei equiparar sujeitos de outras relações ou situações jurídicas a essa figura específica e inconfundível de quem é parte no contrato de depósito. A resposta é afirmativa.

E é-o em virtude do princípio de que, perante situações que apresentem identidade ou afinidade de fatos e de razão jurídica, como todas aquelas em que, por este ou aquele título jurídico, alguém recebe coisa alheia com obrigação de a conservar e devolver a certo termo, sem contrato de depósito, a equiparação, sobre não deparar óbice de nenhuma ordem, pode consultar à utilidade ou à conveniência das relações sociais. Isso é o que está como racionalidade normativa sob todos os depósitos chamados legais ou não convencionais, conforme expressão de PONTES DE MIRANDA, que bem sintetizava o substrato de todas as hipóteses legitimamente equiparadas pela lei:

“Sempre que a lei dá a alguém a incumbência de receber quantia, ou coisa pertencente a outrem, e de depositar, em nome daquele a que pertence a quantia, ou a coisa, a equiparação ao depositário é implícita.”(29)

Donde, sua coerência em concluir alhures:

“… não ofende a Constituição de 1967, art. 150, § 17, a regra jurídica sobre prisão civil por se recusar o depositário extrajudicial ou judicial a devolver o que recebeu, ou aquilo que lhe foi, por sucessão, às suas mãos; como também não a infringe a regra jurídica que a crie ou mantenha, para aqueles casos em que o possuidor ou tenedor de coisa alheia responde como o depositário”.(30)

Não admira, assim, que a doutrina admitisse a ação de depósito contra hospedeiro ou estalajadeiro, nos termos do art. 1.284 do velho Código Civil,(31) nem que o art. 366 do derrogado Código de Processo Civil haja atribuído legitimidade passiva ad causam a pessoas equiparadas, por lei, ao depositário.

Mas a resposta afirmativa não é absoluta, sobretudo diante da gravíssima questão conexa da admissibilidade da prisão civil. É certo que, nos limites da similitude fundamental das situações jurídico-subjetivas, pode a lei ou as partes mesmas, para efeito de justificar a assunção de outras obrigações, equiparar pessoas à condição formal de depositário. Não, porém, mediante transmutação do negócio real subjacente, para, sob a ameaça teórica da privação da liberdade, garantir o adimplemento de obrigações de índole diversa, como já o reconheceu, em 1923, esta Corte, em acórdão relatado do Min. ALFREDO PINTO, e cuja ementa rezava:


“Constitui constrangimento ilegal a prisão ordenada com fundamento no art. 1.287, do Código Civil, desde quando se mostre que o depósito é simulado, para encobrir uma operação de compra e venda, não podendo o vendedor, para garantia do pagamento do preço, combinar com o comprador ficar este, como depositário da cousa comprada. Aplicação do Código Civil, arts. 1265 e 1287.”(32)

A despeito de a Constituição então vigente carecer de regra idêntica ou análoga à do art. 153, § 17, a fundamentação desse venerando acórdão repousa na afirmação de incompatibilidade entre os negócios jurídicos da compra e venda e do depósito, bem como na conseqüente impossibilidade de contornar preceito legal que, desde o Assento de 18 de agosto de 1774, proibia a prisão por dívida.

É que à lei só é dado equiparar pessoas ao depositário, para o fim de lhes autorizar a prisão civil como meio para as compelir ao adimplemento de obrigação, quando não se deforme nem deturpe, na situação jurídica equiparada, o arquétipo do depósito convencional, em que o sujeito passivo contrai obrigação de custodiar e devolver. Fora daí, é arbitrária a lei.

8. Estatuir que o contraente de negócio jurídico, que não mantém com o depósito convencional nenhuma identidade ou afinidade jurídica, fica exposto à prisão civil, em condição análoga à do depositário, é operação técnico-normativa de inaceitável alargamento conceitual destinado tão-só a produzir fortíssima garantia indireta do cumprimento de obrigação de dar dinheiro, de todo estranha ao estatuto do depositário. E, com isso, entra em contraste aberto com a norma constitucional exceptiva, que, já se viu, por seus caracteres, não tolera interpretação expansiva, capaz de aniquilar o direito mesmo que se ordena a proteger sob o comando excepcionado.

É que a legislação ordinária não pode, mediante ficção — que disso não passa todo processo de equiparação arbitrária de posições jurídicas —, igualar situações, figuras ou institutos, para submeter pessoas à violência da exceção constitucional, sem ao menos incidir-lhe em afronta indireta:

“Vale considerar, aliás, que a ofensa a direito ou garantia constitucional não precisa decorrer direta e imediatamente das prescrições da lei, mas, para que esta seja ineficaz, basta que, por qualquer forma, ainda que indireta ou mediatamente, sejam lesados aqueles direitos e garantias.”(33)

Se não é lícito recorrer à analogia, nem à expansão crítico-lógica, para sotopor ao âmbito do estrito sentido técnico-normativo, que deve prevalecer na interpretação,(34) casos que, sem uso desses recursos, ali não caberiam, a fortiori o processo de ficção enche-se da mesma ilicitude, resvalando na mesmíssima proibição constitucional, sobretudo quando dilacera e corrompe elevados princípios, como o de que a garantia é que deve ser sempre ampliada em benefício da liberdade e o de que a exceção não pode apanhar relação nem fato jurídicos subordinados a outras rationes iuris. Prescrever que há depositário onde não há depósito, é impropriedade técnica, e dispor que é depositário quem não tem obrigação de custodiar e devolver, constitui sonora ficção jurídica.

Por outro lado, como se consignou, o expediente hermenêutico de dilatação do conceito técnico introduz o germe de destruição da própria garantia constitucional. Se falham os requisitos racionais de equiparação, por diversidade de suporte fático, nada impede passe a lei ou o intérprete a outras assimilações arbitrárias, a ponto de fazer, da garantia, coisa nenhuma. Onde seja sempre lícito, sem limitações nem requisitos razoáveis, equiparar hipóteses à exceção, o princípio geral deixa de subsistir. Que impede, por exemplo, a lei, de semelhar o locatário ao depositário, para o fim de o coagir, sob a ameaça da prisão civil, à entrega do imóvel, findo o contrato, ou, em suposição mais grotesca, o devedor cambiário ao responsável por inadimplemento de obrigação alimentar?


Vê-se que est modus in rebus!

Daí, não se tomar a sério a objeção de que a prisão do fiduciante estaria autorizada pela locução última da cláusula constitucional, que lhe remete à regulamentação “na forma da lei”. Tal enunciado diz respeito, não ao conteúdo das noções jurídicas de depositário infiel e de devedor de obrigação alimentar, mas apenas à disciplina da sanção e de sua aplicação, enquanto aspectos operacionais dependentes da lei ordinária. Isso é coisa tão óbvia, que não merece as honras de debate, no qual, quando menos, se poderia também aventar que, ao dispor o art. 153, § 32, da Emenda nº 1/69, que “Será concedida assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei”, poderia esta prever, por equiparação de favorecidos, devesse ser sempre gratuito o exercício da advocacia!

De tudo se vê que, por dar pela ilegitimidade da prisão civil neste caso, não precisa ir ao Pacto de São José de Costa Rica, como, assentando-se em muitos dos argumentos aqui deduzidos, não o precisou o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, para, em voto sucinto mas irrespondível, sustentar igual coisa:

"Afasto a fascinante discussão sobre o Pacto de São José de Costa Rica: não preciso dela para o meu convencimento.

É manifesto que a Constituição excetuou, da proibição de prisão por dívida, a prisão do inadimplente de obrigação alimentar e a do depositário infiel. A extensão dessa norma de exceção, não o contesto, pode sofrer mutações ditadas do legislador ordinário e até por Tratado. Mas, também me parece, ninguém discordará, em tese, de que, ao concretizar os seus termos — isto é, os conceitos de obrigação alimentar ou de depositário infiel – o legislador não pode, mediante ficções ou equiparações, ampliar arbitrariamente o texto constitucional, além da opção constituinte nele traduzida. E esta há de ser aferida à base da Constituição e de suas inspirações. Não, à base da lei.

Em outras palavras, a admissibilidade, segundo a Constituição, da prisão por dívida de alimentos e da prisão do depositário infiel não é cheque em branco passado ao legislador ordinário. Assim como não lhe será lícito, até com uma aparente base constitucional no art. 100, autorizar a prisão do governante que atrase a satisfação de débitos de natureza alimentar da Fazenda Pública, não creio que possa estender, além da marca que há de ser buscada dentro da própria Constituição, o âmbito conceitual do depósito.

Do mesmo modo, ocorreria com a prisão em flagrante, por exemplo, que se excetua da garantia constitucional da prévia determinação judicial de qualquer prisão. O leigo, o vulgo ainda repete que durante as vinte e quatro horas posteriores à sua prática, o agente de um crime está em situação de flagrância. Porém, a lei que pretendesse converter essa crendice popular, "em flagrante", a meu ver, seria patentemente inconstitucional, embora a Constituição não defina o que é prisão em flagrante.

O mesmo, a meu ver, sucede, mutatis mutandis, com as normas do Decreto-lei nº 911, que atribui ao devedor inadimplente da operação de crédito garantida pela alienação fiduciária as responsabilidades do depositário.


Ao que penso – e não vou sequer me arriscar a longas dissertações a respeito —, o que há, no Decreto-lei nº 911, é a outorga ao credor, ao financiador, de um direito real, é verdade, mas de um direito de garantia, próximo ao direito de propriedade, na medida em que lhe dá algumas prerrogativas de proprietário, mas que não se identifica com o domínio.

Não consigo compatibilizar a idéia de um verdadeiro domínio, que estaria subjacente à pretensão de realidade da situação de depositário atribuída ao devedor, com normas expressas do próprio decreto-lei.

Uma delas, a do § 6º, transplanta para o mecanismo da alienação fiduciária a proibição do pacto comissório, que é típica, como resulta do art. 765 do Código Civil, dos direitos reais de garantia, que são direitos do credor, porém, sobre coisa alheia.

Na mesma linha, a parte final do art. 2º, impõe ao credor fiduciário — e, portanto, ao dito proprietário fiduciário – um dever de entregar ao devedor o excesso do preço apurado na venda da coisa sobre a importância da dívida, o que, à evidência, lhe desmente o domínio sobre o bem alienado, o qual, se existente, se transferiria à totalidade do preço alcançado.

Por essas e por outras, minha convicção é velha, portanto, no sentido da inconstitucionalidade da prisão do alienante fiduciário que se pretenda albergar na exceção constitucional da vedação da prisão por dívidas.

Não nego a extrema valia, a riqueza teórica magnífica de alguns dos votos proferidos em contrário — a partir do voto de mestre, não só neste capítulo, mas em todo o Direito Civil, que é o do eminente Ministro Moreira Alves.

Mas creio que o problema é constitucional e a interpretação que leva a reduzir a prisão civil como um meio coercitivo de forçar satisfação de obrigações patrimoniais serve melhor aos princípios fundamentais da Constituição.

Tentei mostrar que o verdadeiro proprietário, embora limitado o seu domínio, como o de todo proprietário que tem sobre uma coisa um direito real de garantia do credor, é o devedor, dito alienante fiduciário. E não concebo depositário de coisa própria.

Vários dos eminentes Colegas recordaram, e ouvi com o maior respeito, a sua convicção de décadas, tão logo promulgado o Decreto-lei nº 911, pela constitucionalidade do edito.

Minha convicção é tão antiga quanto a de S. Exª. A diferença é que ao tempo não tinha a honra de ser Juiz. Feito Juiz deste Tribunal, não posso deixar de manifestá-la num tema de tão grande relevo constitucional. Com isso, não estou dizendo que o Supremo Tribunal, até aqui, violou a Constituição. A jurisprudência constitucional por sua própria natureza, sobre os temas recorrentes da vivência da Constituição, é sujeita a mutações e evoluções. E a mudança de uma jurisprudência constitucional jamais pode ser interpretada como injúria à jurisprudência passada, muito menos aos que a formaram. Mas, por ora, dada a maioria formada está mantida a jurisprudência."


Pedindo-lhe todas as vênias, entretanto, o meu voto é pelo deferimento da ordem."(35)

9. Por essas longas razões, estou em que deveras não podia nem pode aplicado, em todo seu alcance, por inconstitucionalidade manifesta, o art. 4o do Decreto-Lei nº 911, de 1o de outubro de 1969, o qual, atribuindo, na ação de depósito, legitimação passiva ad causam ao devedor fiduciante, como se de vero depositário se cuidasse, nesses termos o submeteria ao risco da prisão civil, em caso de descumprimento inescusável de ordem judicial para entregar a coisa ou seu equivalente em dinheiro. Tal prisão não se reveste de legitimidade constitucional.

A única interpretação harmônica com a Emenda nº 1/69 é de que ao fiduciário está autorizado o uso da ação de depósito, mas sem cominação nem decretação da prisão civil do fiduciante vencido, contra o qual tem, como bem notou o acórdão impugnado, interesse jurídico em prosseguir nos próprios autos, apenas na forma do art. 906 do Código de Processo Civil.

10. Nesses termos, nego provimento ao recurso.

Notas de Rodapé

1- Cf. HC nº 72.131, Pleno, Rel. p/ ac. Min. MOREIRA ALVES, DJU 01.08.03, j. 22.11.95; HC nº 72.183, 2º Turma, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJU 22.11.96; RECr nº 206.086, 1ª Turma, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJU 07.02.97; HC nº 74.875, 1ª Turma, Rel Min. SYDNEY SANCHES, DJU 11.04.97; RE nº 206.482, Pleno, Rel. Min. MAURÍCIO CORREA, DJU 05.09.03; HC nº 76.651, Pleno, Rel. p/ac. Min. NELSON JOBIM, DJU 30.04.04; etc.. Com base nesses e noutros precedentes – em que ficaram vencidos os Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO -, a Corte ensaiou proposta de súmula com o seguinte enunciado: “É legítima a prisão civil do devedor vencido em ação de depósito fundada em alienação fiduciária em garantia.” A proposta foi retirada para nova meditação sobre o tema.

2- É nesse sentido de confronto crítico de realidades próprias da ciência jurídica com o mundo dos fatos que se distinguem as técnicas normativas da ficção e da presunção legal ou iuris, pois esta, seja na modalidade relativa (iuris tantum), seja na absoluta (iuris et de iure), exprime sempre verdade jurídica que corresponde àquilo que costuma dar-se no mundo dos fatos (id quod plerumque accidit). Na ficção, a verdade jurídica estabelecida é sempre o contraditório da realidade factual, isto é, daquilo que aí não acontece.

3- MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. 3ª ed.. RJ: Borsoi. 1972. t. XLII/318-319, §§ 4.655 e 4.656.

4- HEDEMANN, Justus W. Derecho de obligaciones. v. III do Tratado de derecho civil. trad. de Jaime Santos Briz. Madrid: Revista de Derecho Privado. 1958. p. 440. Cf., ainda, R. FUBINI. El contrato de arrendamiento de cosas. trad. de Sánchez Giménez. Madrid: Revista de Derecho Privado. 1930. p. 34-35, nº 20. Aí, a natureza da relação jurídica em que se insere o fenômeno da custódia, sem tipificação de depósito, é que dita a disciplina da obrigação correspondente, a qual não se assujeita, portanto, aos princípios e normas do contrato de depósito. É o caso, p. ex., do contrato de transporte.

5- Código civil dos estados unidos do brasil comentado. 10ª ed.. RJ: Francisco Alves, 1957. v. V/ 13, obs. nº 1 ao art. 1.275. Basta imaginar-se aparente contrato de depósito de quantia de dinheiro, no qual cláusula de uso autorizasse ao depositário servir-se do bem!


6- MOREIRA ALVES, José Carlos. Da alienação fiduciária em garantia. 2ª ed.. RJ: Forense. 1979. p. 65, nº 5: “é a alienação fiduciária contrato acessório daquele de que decorre o crédito que a propriedade fiduciária visa a garantir.

7- SOUZA LIMA, Otto de. Negócio fiduciário. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1962. p. 170; GOMES, Orlando. Alienação fiduciária em garantia.. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 18 e 80; BUZAID, Alfredo. Ensaio sobre a alienação fiduciária em garantia. In: Revista dos Tribunais, v. 401, p. 19; e FORSTER, Nestor José. O negócio fiduciário. In: Revista Forense, v. 216, p. 18.

8- Veja-se a justificativa dos idealizadores da emenda que introduziu o atual art. 66 no projeto, quando alude ao propósito de colocar o instituto “à disposição do sistema financeiro e das empresas” e “favorecendo conseqüentemente o mercado de capitais” (apud MOREIRA ALVES. op. cit., p. 9).

9- MOREIRA ALVES (op. cit., p. 47-53) entende que o caso não seria de constituto ex lege, mas de tradictio ficta, segundo a qual a transmissão da posse se dá ope legis. A distinção é inconseqüente para a espécie, pois o que sobreleva, em ambas as figuras, é o mecanismo de ficção com que opera a lei.

10- GOMES, Orlando. op. cit., op. cit., p. 83.

11- Op. cit., p. 24.

12- Ibidem, nº 42.

13- GOMES, Orlando. op. cit., p. 74 e 75.

14- Tratado de Direito Privado. 3ª ed.. RJ: Borsoi, 1972. t. LII/366 e 367, § 5.487, nº 4.

15- Cf. GOMES, Orlando. op. cit., p. 121, nº 95; Revista dos Tribunais, v. 412, p. 184 e 191, e v. 414, p. 167; e TASP, 8ª Câmara, Ag. Pet. nº 165.351, Rel. Des. ALVES BRAGA.

16- BEVILAQUA, Clóvis. op. cit., v. V, p. 22, obs. nº 1.

17- DEL VECCHIO, Giorgio. A justiça. trad. de António Pinto de Carvalho. SP: Saraiva, 1960. p. 189, nota nº 33.

18- GOMES, Orlando. Contratos. 2ª ed.. RJ: Forense, 1966. p. 347 e 348, n° 271. A frase anterior, entre aspas, é do mesmo autor.

19- SAN TIAGO DANTAS, F. C. de. Problemas de direito positivo. RJ: Forense, 1953. p. 219.

20- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 8ª ed.. RJ: Freitas Bastos, 1965. p. 237.

21- SILVEIRA, Alípio. Hermenêutica no direito brasileiro. SP: Revista dos Tribunais, 1968. v l.I, p. 211.

22- CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Do Controle da Constitucionalidade. RJ: Forense, 1966, p. 47.

23- Dig., 1. 50, tit. 17, De Regulis Juris, fr. 122, apud MAXIMILIANO, op. cit., p. 273.

24- VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina. 1987. p.131-132.

25- O sentido gramatical ou literal, sabe-se hoje, é já em si produto de interpretação. A doutrina do chamado sentido claro, que supõe texto claro e significado natural das palavras, “presenta como um juego de prestidigitación la búsqueda acerca del sentido ‘proprio’ de los términos” (ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Trad. Eduardo Valentí Fiol. Barcelona: Bosch, 1961. p. 337).

26- Escritos e discursos seletos. RJ: José Aguilar, 1960. p. 519.

27- Sabe-se que tal lei, editada depois de intensas lutas entre patrícios e plebeus, introduziu o princípio civilizado da responsabilidade patrimonial na esfera dos negócios jurídicos, assim como a Lex Aquilia de damno dato o fez na área extranegocial, se não abolindo, pelo menos atenuando a execução pessoal, que antes não excluía a venda, a prisão, nem a morte do devedor, sujeito ao nexum (cf. PUGLIESE, Giovanni. Istituzioni di Diritto Romano. 3ª ed.. Torino: Giappichelli, 1991. p. 144-145, § 62, p. 354, § 103, e p. 388-389, § 112; BONFANTE, Pietro. Istituzioni di Diritto Romano. 10ª ed. rist.. Milano: A. Giuffrè, 1987. p. 109, § 43, p. 304, § 117, e p. 372-374, § 153; ARANGIO-RUIZ, Vincenzo. Istituzioni di Diritto Romano. 14ª ed. rist.. Napoli: Eugenio Jovene, 1968. p. 320-321; GALLO, Fillippo. Aspetti peculiari e qualificanti della produzione del diritto nell’esperienza romana. Rivista di Diritto Romano, 2004, nº 4, p. 5; e VOCI, Pasquale. Verbete Esecuzione forzata (diritto romano). Enciclopedia del Diritto. Milano: Giuffrè, v. XV, p. 423-424).

28- A ninguém parece lícito negar que o uso processual da prisão civil, enquanto acerba violência que reduz o ser humano à expressão material de seu corpo e, por conseguinte, com abstração do sofrimento, à condição de mero instrumento ou objeto na ordem jurídica, representa uma das formas mais expressivas de degradação da pessoa humana, posta a serviço da satisfação de interesse econômico de terceiro. Para uma visão breve da impossibilidade kantiana de tratamento jurídico-normativo do ser humano como objeto, veja-se WOLFGANG SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3ª ed.. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, pp. 29 e segs., em especial pp. 50, 51 e 59.

29- Tratado de Direito Privado, cit., v.. XLII/ 327, n° 4.

30- Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1968. t. V/252, nº 2. Grifos do original.

31- Tal é o argumento fundamental da postura do ilustre Min. MOREIRA ALVES, no seu clássico Alienação Fiduciária em Garantia (cit., p. 173), onde também aludia à possibilidade de uso e gozo da coisa por parte do depositário, consoante o permitia o art. 1.275 do Código Civil então vigente. Tampouco me parece convincente este último argumento, porque se tratava, aí, de exceção clara à estrutura típica do depósito convencional, que preexcluía, como princípio, pudesse o depositário, sem a expressa licença do depositante, servir-se da coisa depositada, pela razão de que não era nem é esse o escopo econômico e tampouco o fim jurídico do contrato de depósito (cf. art. 1.265). Era preciso essa regra de cláusula expressa de uso para admissibilidade excepcional de poder que não compõe a posição jurídica do depositário, o que só confirma a atipicidade da situação.

32- In: Revista do Supremo Tribunal Federal, v. LIII, junho de 1923, p. 3 a 5.

33- BITTENCOURT, C. A. Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2ª ed., RJ: Forense, 1968, p. 87.

34- Cf. BRANDÃO CAVALCANTI, Themistocles. op. cit., p. 76 a 81.

35- In: HC nº 72.131, e também transcrito no RE nº 211.371.

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