Viver o Brasil, hoje!

Nos tornamos uma sociedade cênica, cínica e tanática

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8 de dezembro de 2006, 13h52

O objetivo deste texto não vai além de propor, substancialmente, uma leitura narrativa dos fatos da vida cotidiana à nossa volta, sobretudo em face do incremento da violência de todo espectro e intensidade. Não é, pois, rigorosamente propositivo e nem reclama pela adoção de providência específica alguma, senão a reflexão dos quadros sociais que estão postos, hodiernamente, à cidadania brasileira. Nada obstante, ao fim se considera agregar um apelo pedagógico como uma ode de esperança que não permite hermetismos argumentativos em sentido oposto ao daquele que ficará descrito.

Quem se dispuser a viver no Brasil, hoje, vai ter de encontrar e reunir disposição aventureira, paciência de Jó, acuidade cirúrgica para a auto-defesa e, sobretudo, muito desprendimento e amor pelo país, se nada mais lhe restar.

De fato, ao transitar pelas vias urbanas o cidadão está arriscado a, no mínimo, ter seus pertences subtraídos, abordado por toda forma de inconvenientes ortodoxos, enfrentar serviços manejados por agentes heterodoxos, enfim, no limite, arriscar a própria vida em um lance de inopinado.

Se, outrossim, busca o lazer, vai ter de enfrentar tubarões esfomeados na praia (resultado de crônicos descuidados ambientais do meio em que vivemos), a contaminação alimentar ou o caos no espaço aéreo com possibilidade de colisões em pleno vôo, transtornos que geram morte e tragédia.

Enquanto isso, a TV mostra o caldo de nossa cultura laxista e inidentificável; mas, os motéis e os “inferninhos” andam cheios de freqüentadores, ainda que não se perceba dinheiro bastante para esse tipo de despesa ordinária (vale a ambigüidade).

Ao mesmo tempo, ainda somos um “paraíso” aos parasitas de toda grandeza, aos sonegadores e corruptos de toda especialização e àqueles que se privam voluntariamente de todos os sentidos e de todas as virtudes que forjam, realmente, uma sociedade evoluída, aberta no sentido de Karl Popper.

É com esse espelho que o Brasil vai se notabilizando ainda mais no cenário das nações, muito a despeito do romantismo — auto-promocional e idiotizante — da retórica oficial.

Ao contrário, o cidadão vive na realidade e a realidade é o que salta aos olhos à nossa volta. Menos mal que, por vezes, figuras do maior calibre republicano, em pessoa, também sofram os efeitos deletérios desses quadros, porque já aí não restará espaço para a objeção cínica aos reclamos sociais que os mais modestos já não têm como realçar, haja vista uma tendência que parece irreversível que leva o comum do povo à descrença e ao pessimismo, sobretudo quando aponta para a tendência de agravamento — que sentimos tão evidente — ao pensarmos nos aspectos econômicos, políticos e sociais.

É o caso do assalto sofrido pelos ministros presidente e vice-presidente do Supremo Tribunal Federal quando transitavam em comboio pelo viaduto Ministro Mário Henrique Simonsen, no Rio de Janeiro, caminho que liga o viaduto do Gasômetro e a Linha Vermelha por volta das 21h45 desta quinta-feira (7/12). Curiosamente, o local do assalto aos ministros é o caminho obrigatório a ser seguido por quem chega ao Rio de Janeiro via Aeroporto Internacional: a Linha Vermelha, aliás, é um cenário urbano de incontáveis casos de assaltos e tiroteios.

É preciso dizer mais? Ora, se nem mesmo o aeroporto é mais a saída, o que resta ao brasileiro além de contas a pagar diante de um autêntico pessimismo da força, corrosivo e desagregador?

O modelo de sociedade que vimos construindo até aqui está esgotado. Já não se tem como valorizar a mistura étnica que não encontra a unidade ética como utopia social a atingir. De carnavais, malandros e heróis macunaímicos o país já se fartou à exaustão. E como os benefícios da vida são invariavelmente insuficientes para responder adequadamente à demanda reprimida, sucede que a caudal de incivilidades a que nos acostumamos a presenciar, dela participar ou simplesmente silenciar, ante as ameaças recorrentes que o plexo das mesmas incivilidades replica, parece não ter solução de continuidade. Por isso nos tornamos uma sociedade cênica (que faz de conta que é), cínica (que transita com desenvoltura mediante o falsum) e tanática (que se apraz com o trágico).

De algum modo, todos caminham de acordo com as suas próprias conveniências e não há felicidade coletiva que se estabeleça mediante um tal modelo de conduta. Nada obstante, há de se compreender que todo pessimismo só se instala no espírito humano em face de certos paroxismos que deixam à mostra, claramente a quem reúne um mínimo de inteligência e capacidade de crítica, inclusive a auto-crítica, que os quadros institucionais observados não têm solução, sequer revolucionária. De fato, não há atualmente temperança social e política entre nossa gente capaz de fomentar as transformações tão urgentes quanto necessárias. Somos pessimistas porque, afinal, ninguém nos conferiu uma razão plausível para que não o fôssemos.

E conforme não haja espaço para a intergrupalidade, muito embora o meio esclarecido deva encontrar no pessimismo da força o elemento desafiador a impulsioná-lo à resistência moral, sucede que não há disposição de fato às grandes massas no sentido da transformação social, obtenível a partir de sua própria organização e de sua luta, restando, assim, ao cidadão honesto, que, embora sentindo-se impotente, ainda resiste em não envergonhar-se de sê-lo, fechar-se dentro de si mesmo e literalmente abandonar-se nas mãos de Deus.

Triste quadra esta em que vivemos. Por isto é indispensável que as massas se elevem à resistência esclarecida, o que somente poderá vir a ocorrer mediante educação libertadora, determinada e continuativa.

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