Reconstrução jurídica

Wald relata evolução da doutrina com Gilmar Mendes no STF

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7 de dezembro de 2006, 6h00

O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes foi recebido na Academia Internacional de Direito e Economia com saudação do advogado Arnoldo Wald. Gilmar Mendes ocupa, desde a última sexta-feira (1º/12), a cadeira do ex-ministro do STF, Oscar Dias Corrêa. No mesmo dia, Misabel Derzi assumiu a cadeira deixada pelo advogado Miguel Reale.

Wald declarou que acompanha a carreira do novo acadêmico desde a apresentação de seu doutorado, em 1991, sobre controle abstrato de constitucionalidade, até a sua atuação no Supremo Tribunal Federal. Para o doutrinador, Gilmar Mendes “construiu a interpretação constitucional moderna em nosso país, dando-lhe uma especificidade e uma abertura, com novas dimensões e maior amplitude”. Além disso, Wald falou sobre a dedicação do ministro para a garantia da segurança jurídica.

Ressaltou, ainda, o papel do ministro na racionalização de procedimentos que têm influido no aperfeiçoamento do controle concentrado de constitucionalidade com as ações direta de inconstitucionalidade, declaratória de constitucionalidade, a arguição de descumprimento de preceito fundamental; a aplicação de seus efeitos no tempo; e a adoção do mecanismo do amicus curiae.

Como consultor jurídico do Ministério da Justiça e depois subchefe da Casa Civil para assuntos jurídicos, até ocupar a chefia da Advocacia-Geral da União, Gilmar Mendes participou da formulação legislativa que possibilitou a regulamentação dessas ferramentas e, já como ministro do STF, trabalhou junto a seus colegas na interpretação dos mecanismos.

Arnoldo Wald analisou a corrida do Judiciário para acompanhar a evolução da tecnologia e dos fatos econômicos. Segundo ele, “é preciso que homens como Gilmar Mendes abram os caminhos para a reconstrução da ciência jurídica”.

Leia o discurso de Arnoldo Wald

É um especial, prazer e uma grande honra receber V. Exa., senhor Ministro Gilmar Mendes, na Academia Internacional de Direito e Economia. É um dia de realização, de alegria e de grande emoção para a Instituição.

A nossa entidade foi criada em 1986, para reunir juristas e economistas, numa fase em que as relações entre ambas as profissões não eram as melhores. Não pretendeu ser mais uma academia para discutir assuntos teóricos e sutilezas jurídicas sem conseqüências práticas.

Foi, ao contrário, na concepção dos seus fundadores, uma instituição destinada a mobilizar economistas e juristas para aprimorar o direito e construir novas soluções jurídicas diante dos desafios da economia brasileira.

Pretendeu-se constituir um centro que integrasse juristas e economistas para transformar nossa legislação num verdadeiro direito de desenvolvimento, baseado na análise econômica e na disciplina jurídica da macroeconomia, com finalidades sociais e éticas. Tratou-se também de, numa entidade com repercussão internacional, reaproximar a Universidade da vida real, criando uma ponte entre os professores de ambas as matérias, a sociedade civil e o Poder Público.

Essa foi a orientação posta em prática, durante duas décadas, tanto na escolha dos acadêmicos, quanto das atividades realizadas. Essa é a razão pela qual V. Exa. não podia deixar de nos dar a honra de integrar esta casa, assumindo a cadeira de Oscar Dias Corrêa, para participar dos nossos trabalhos e encaminhar as nossas discussões.

Tive o privilégio de acompanhar a carreira de V. Exa., nos últimos quase vinte anos, desde a apresentação da sua tese de doutorado, em Munster, em 1991, a respeito do controle abstrato da constitucionalidade até os seus votos mais recentes no STF. Assim, apreciei a sua atuação dinâmica, inovadora e construtiva, no Ministério Público, no Gabinete Civil da Presidência da República, na Advocacia-Geral da União e, finalmente, no Excelso Pretório.

Raramente uma mesma pessoa consegue conciliar, com tanta felicidade, a vocação universitária e a atuação de magistrado, a energia necessária para reorganizar e renovar instituições, como a AGU, e a erudição construtiva do legislador ao qual devemos muitos dos textos importantes do nosso direito constitucional. Por outro lado, nem sempre a coragem cívica e a combatividade por novas idéias se harmonizam com o tato e o senso político do conciliador que V. Exa. tem sempre revelado ser.

Ministro Gilmar Mendes, seria praticamente impossível resumir a sua contribuição qualitativa e quantitativa ao direito brasileiro.

Poderia citar a dezena de obras e a centena de artigos de direito constitucional, a sua ampla atividade no serviço público, na Universidade e no IDP — Instituto Direito Público. Deveria ainda lembrar sua extraordinária capacidade de trabalho e sua disponibilidade. Sua possibilidade de criar tempo para estar em qualquer lugar do território nacional, trazendo suas lições e a mensagem do professor que quer partilhar não só seus conhecimentos, mas também participar, com colegas e estudantes, da discussão dos grandes desafios do direito brasileiro.

Se quisermos definir de modo sintético o caminho já percorrido por V. Exa., poderíamos dizer que construiu a interpretação constitucional moderna em nosso país, dando-lhe uma especificidade e uma abertura, com novas dimensões e maior amplitude. Com base nessa interpretação construtiva e dinâmica, lutou para dar eficiência tanto às normas jurídicas e ao processo, quanto ao próprio Poder Judiciário, com a finalidade de garantir a segurança jurídica. Segurança jurídica entendida em sentido lato, como abrangendo os novos princípios da proporcionalidade e da racionalidade, a compreensão das finalidades econômicas e sociais do direito e a prevalência da ética.

Em certo sentido, os seus trinta anos de estudos e atuação se resumem nessas três palavras mágicas que podem transformar nosso país: interpretação constitucional, eficiência legal, processual e regulatória e segurança jurídica.

Foi V. Exa. quem definiu com especial felicidade a função do jurista quando escreveu:

“Devemos interpretar os textos progressivamente, aplicá-los construtivamente, diante do irreprimível movimento de socialização jurídica, de humanização do direito. atendendo às novas concepções. deixando de tributar supersticiosa veneração a regras milenares. que tiveram a sua oportunidade e o seu momento, mas cujo tempo já passou.”

Assim, V. Exa. procurou sempre, tanto nos projetos legislativos, quanto nas decisões judiciais, conciliar interesses públicos e direitos individuais, encontrando um equilíbrio entre políticas públicas, princípios básicos e proteção do indivíduo, cuja confiança no Poder Público não pode ser frustrada.

Chega, assim, V. Exa. a uma espécie de pragmatismo construtivo e ético, dando soluções justas a situações concretas. Não é de sua índole sacrificar a justiça à preconceitos, nem mesmo a determinadas interpretações lógicas que o tempo nos obrigou a superar. Defendeu assim, a modulação dos efeitos jurídicos das ADINs e a aplicação imediata dos novos regimes jurídicos da moeda, temperando-os pela proporcionalidade. E aperfeiçoou a concepção tradicional do direito adquirido, complementando-a, em alguns casos, pelo respeito à segurança jurídica.

A eficiência que V. Exa. defende não se confunde com uma espécie de conseqüencialismo econômico, significando, ao contrário, um equilíbrio dinâmico, que deve presidir tanto a aplicação da lei como as relações jurídicas em geral.

No seu entendimento, a eficiência deve, inclusive, inspirar a atuação do Poder Judiciário e neste sentido a legislação referente ao controle da constitucionalidade, a ADPF e à Sumula vinculante, aprovada ontem pelo Congresso Nacional, bem como alguns aspectos da recente jurisprudência do STF, representam um esforço bem sucedido, liderado por V. Exa., no sentido de descongestionar os tribunais e superar a demora excessiva das decisões judiciárias.

Na história do Excelso Pretória há certos vultos que denominam o cenário, seja pela sua personalidade, seja pela sua contribuição.

Assim, na história mais recente, desde os anos 1950, podemos afirmar que coube a Vitor Nunes Leal garantir a coerência das decisões do tribunal, superando urna fase na qual sucediam-se os julgados contraditórios nas mesmas matérias com uma votação de 5 a 4 ou, ao contrário, de 4 a 5. A V. Exa. deverá a nossa Corte Suprema o reconhecimento de ter conseguido, senão no todo, ao menos em parte, dar muito mais eficiência à nossa Justiça.

Mas a caminhada continua e um esforço dantesco há de ser feito para racionalizar o trabalho do STF. A Súmula vinculante, a repercussão geral, a ADPF e a Reclamação são meios hábeis para dar eficiência aos julgados. Há de se seguir, nas suas palavras, senhor Ministro, o caminho da Suprema Corte Norte-americana, trilhado a partir do Judiciary, Act de 1925, para que o nosso Excelso Pretório possa cumprir a sua missão. A sua participação nessa luta, atualmente como magistrado e professor e, no passado, como autor de projetos legislativos, foi, é, e será da maior importância.

Mas a eficiência não é um fim em si. Constitui o meio de garantir a segurança jurídica considerada como garantia constitucional decorrente do Estado de Direito e que equipara ao próprio princípio da legalidade.

As novas políticas públicas não podem abalar a segurança jurídica, como V. Exa. bem esclareceu no seu voto em relação ao modelo elétrico, numa advertência oportuna ao Poder Executivo. Não se trata de impedir o progresso e o aprimoramento das instituições, mas de estabelecer um equilíbrio entre os interesses em jogo. Essa equação pode até variar no tempo, ensejando a criação de um direito flexível ou, na citação de V. Exa., “uma interpretação constitucional aberta”.

Em obra publicada em 2000, Richard Sennet aludiu ao homem flexível. Numa sociedade de riscos, dominada pela incerteza e pela descontinuidade, que se fazem sentir de modo mais agudo nos países em desenvolvimento, tanto o homem, como a empresa, precisam de um direito flexível, no qual se impõem as mutações constitucionais implícitas, ensejando uma nova dogmática, que, em grande parte, devemos a V. Exa.

E agora permitam-me falar com o amigo Gilmar.

Mencionar suas qualidades pessoais de pai, de magistrado, de amigo, de colega. São muitas, que vão desde a cordialidade, a simplicidade, a lealdade e o entusiasmo até a defesa intransigente do interesse público e a profunda fé na justiça e no direito.

No seu discurso de posse, na Academia de Letras Jurídica, lembrou sua dupla formação de menino criado no interior, em Diamantino, na pequena comunidade que marcou sua infância. E, em seguida, o cosmopolitismo do jovem jurista brasileiro, que tirou o primeiro lugar entre os doutores da Universidade de Munster. Teve assim a possibilidade de juntar as duas visões, a do Brasil do interior, no qual encontramos as nossas raízes, e da ciência jurídica a mais adiantada no seu aspecto globalizante.

Não é, pois, por acaso que o destino quis atribuir-lhe, nesta casa, a cadeira de Oscar Dias Corrêa dono de imenso conhecimento jurídico que ajudou a renovar o direito brasileiro e a nossa doutrina, adaptando-os às novas realidades sociais e econômicas.

Era, pois preciso que tivesse um sucessor à sua altura, e hoje, o estamos empossando.

Quando a tecnologia e a economia evoluem muito mais rapidamente do que o direito, é preciso que homens como V.Exa. abram os caminhos para uma reconstrução da ciência jurídica. Para tanto, não basta a “destruição criativa” à qual aludem os economistas, mas é necessário elaborar e aplicar novos conceitos e usar novas técnicas para dar ao direito maior eficiência e dimensões mais justas.

Se, no passado, era possível acreditar que as normas abstratas podiam resolver todos os problemas, a situação atual, com a globalização e a modernização da economia, exige, muitas vezes, uma aplicação concentra e mais detalhada dos princípios gerais.

Ressurge, assim, no século XXI, a imagem da justiça concebida por Rafael, na Stanza, que se encontra do Museu do Vaticano, uma Justiça de olhos abertos, colocada ao lado da Filosofia e da Eqüidade.

É essa justiça identificada com a liberdade, o desenvolvimento e a ética, que V. Exa. tem aplicado e ensinado.a coragem que já foi definida como sendo a dignidade sob pressão, a tenacidade, que o caracteriza, e a dedicação de quem tem fé na Justiça.

Ministro Gilmar Mendes, seja bem-vindo a esta casa.

Nota de Rodapé

(*) Academia Internacional de Direito e Economia, posse do Ministro do Supremo Tribunal Federal GILMAR MENDES e da Professora-Doutora Misabel Derzi, no dia 01.12.2006, às 19h. Espaço Sociocultural — Teatro CIEE — Rua Tabapuã. 445 — Itaim Bibi — São Paulo.

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