Liberdade como regra

Se condenação não é definitiva, prisão é cautelar e excepcional

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7 de dezembro de 2006, 6h00

O Supremo Tribunal Federal ainda não delimitou os limites da presunção de inocência. O julgamento de pedidos de Habeas Corpus, onde as fronteiras da presunção serão desenhadas, está paralisado desde 2004 por um pedido de vista da ministra Ellen Gracie. Enquanto isso, o tribunal dá sinais de como deve interpretar o direito constitucional: se a condenação ainda não transitou em julgado, prevalece a inocência.

Foi com essas diretrizes que o ministro Celso de Mello colocou uma ré em liberdade. Depois de condenada, o Tribunal de Justiça da Bahia decretou a sua prisão. No Superior Tribunal de Justiça, a prisão foi mantida com o argumento de que os recursos contra a condenação não tinham efeito suspensivo. O processo caiu nas mãos de Celso de Mello e ele decretou: sem condenação transitada em julgado, liberdade é a regra. Prisão cautelar, a exceção.

O entendimento é recorrente no Supremo. Mesmo assim, não deixa de ser polêmico. Em maio, quando o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves foi condenado por matar a ex-namorada Sandra Gomide e saiu do fórum em São Paulo para dormir na sua casa, a população, mais uma vez, bradou contra o que chama de impunidade.

A corrente predominante no Supremo discorda. Isso não é impunidade, mas o direito de se presumir que todos são inocentes até que se prove o contrário. Enquanto há recursos, enquanto a sentença não transitou em julgado, o réu é inocente. Celso de Mello lembrou que, mesmo assim, a prisão é possível, mas ela continua tendo o caráter de cautelar, ou seja, excepcional. Por isso, só é possível quando há motivos para isso.

Os requisitos para a prisão cautelar estão descritos no artigo 313 do Código de Processo Penal: “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. Sem uma dessas hipóteses, portanto, não há prisão cautelar, diz Celso de Mello.

Veja a decisão

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 89.754-1 BAHIA

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): AURISTELA ANUNCIAÇÃO NUNES MACHADO

IMPETRANTE(S): LUIZ AUGUSTO REIS DE AZEVEDO COUTINHO

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE. CONDENAÇÃO PENAL RECORRÍVEL. PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE NÃO- -CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII). CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, Nº 2). A QUESTÃO DA DECRETABILIDADE DA PRISÃO CAUTELAR. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL, DESDE QUE SATISFEITOS OS REQUISITOS MENCIONADOS NO ART. 312 DO CPP. NECESSIDADE DA VERIFICAÇÃO CONCRETA, EM CADA CASO, DA IMPRESCINDIBILIDADE DA ADOÇÃO DESSA MEDIDA EXTRAORDINÁRIA. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ACÓRDÃO QUE ORDENA A PRISÃO DA PACIENTE, POR REPUTAR LEGÍTIMAA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DO JULGADOE, TAMBÉM, PELO FATO DE OS RECURSOS EXCEPCIONAIS DEDUZIDOS PELA SENTENCIADA (RE E RESP) NÃO POSSUÍREM EFEITO SUSPENSIVO. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

DECISÃO: A presente impetração insurge-se contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, encontra-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 248):


(…). I. Tanto o recurso especial quanto o extraordinário — inadmitidos na origem — não têm, de regra, efeito suspensivo, razão pela qual a eventual interposição destes não é hábil a impedir a imediata execução do julgado, com a expedição de mandado prisional contra o réu para o início do cumprimento da pena. Precedentes do STJ e do STF.

II. A regra do art. 675 do Código de Processo Penal, que prevê a expedição de mandado de prisão somente após o trânsito em julgado da condenação, aplica-se apenas no caso de recurso com efeito suspensivo, hipótese não verificada no presente caso. Precedente da Suprema Corte.

III. Não ocorre violação ao princípio constitucional da presunção de inocência ou da não-culpabilidade, sendo irrelevante o fato de a acusada ter permanecido em liberdade durante todo o processo, e ter apelado solta, pois a prisão ora atacada constitui-se em efeito da condenação.

IV. Ordem denegada.” (grifei)

A ora paciente, que respondeu em liberdade ao processo penal contra ela instaurado (fls. 15), pretende a cassação da ordem de prisão cautelar, por entendê-la incompatível com a presunção constitucional de não-culpabilidade, eis que, no caso em exame, a condenação penal sequer transitou em julgado.

O acórdão emanado do E. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (que motivou a decisão do E. Superior Tribunal de Justiça, ora questionada nesta sede processual), ao ordenar a expedição do mandado de prisão contra a paciente, assim fundamentou a decretação da mencionada custódia cautelar (fls. 65/66):

Considerando o fato de ter sido concedido à apelante o direito de apelar em liberdade, em face de improvimento deste apelo, deve ser expedido mandado de prisão, tendo em vista que, contra a decisão condenatória, à unanimidade, em segundo grau de jurisdição cabem, tão-só, a princípio, recursos de natureza extraordinária — recursos especial e extraordinário — sem efeito suspensivo, de acordo com art. 27, § 2º, da Lei nº 8.038/90 e art. 637 do CPP, combinados, ainda, com a Súmula nº 267 do STJ, se afigura legítima a execução provisória do julgado, consistente na constrição do condenado, ainda que não transitada em julgado a respectiva ação penal. Sem, também, ofender o princípio da presunção de inocência. Neste sentido, citando precedentes: (STF – HC 84909-MG – 2ª T. — Rel. Min. Gilmar Mendes – DJ 06.02.2005).” (grifei)

Presente esse contexto, cabe verificar se os fundamentos subjacentes à decisão questionada nesta sede processual — que confirmou o entendimento do Tribunal de Justiça local — ajustam-se, ou não, ao magistério jurisprudencial desta Suprema Corte em tema de prisão cautelar.

O Supremo Tribunal Federal, em sucessivas decisões sobre a matéria em análise, tem assinalado não se revelar incompatível com o postulado constitucional da não-culpabilidade a utilização, pelo Estado, das diversas modalidades que a prisão cautelar assume em nosso sistema de direito positivo (RTJ 138/762 – RTJ 142/855-856, v.g.).

Cabe ressaltar, neste ponto, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos também não assegura, de modo irrestrito, ao condenado, o direito de (sempre) recorrer em liberdade, pois o Pacto de São José da Costa Rica, em tema de proteção ao “status libertatis” do réu, estabelece, em seu Artigo 7º, nº 2, que “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas”, admitindo, desse modo, a possibilidade de cada sistema jurídico nacional instituir – como o faz o ordenamento estatal brasileiro — os casos em que se legitimará, ou não, a privação cautelar da liberdade de locomoção física do réu ou do condenado (RTJ 168/526- -527 – RTJ 171/857 – RTJ 186/576-577, v.g.).


Veja-se, portanto, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao remeter, ao plano do direito positivo interno, a definição normativa das situações legitimadoras de prisão, reconhece que o tratamento dessa matéria deve efetivar-se de acordo com o ordenamento de cada Estado nacional, cuja Constituição e leis qualificam-se, nesse contexto, como estatutos de regência dos pressupostos de admissibilidade de privação da liberdade de locomoção física do cidadão, inclusive das medidas cautelares de constrição de seu “jus libertatis”, de tal modo que, em última análise, o exame da legitimidade jurídica da prisão processual do indiciado, do réu ou do sentenciado referir-se-á, invariavelmente, à análise das próprias prescrições fundadas na legislação nacional, como sucede, p. ex., com a necessária e concreta verificação, em cada caso ocorrente, das hipóteses previstas no art. 312 do CPP, mesmo que se trate de prisão cautelar motivada por condenação penal meramente recorrível.

É por tal razão que a jurisprudência desta Suprema Corte – embora admitindo a convivência entre os diversos instrumentos de tutela cautelar penal postos à disposição do Poder Público, de um lado, e a presunção constitucional de não-culpabilidade (CF, art. 5º, LVII) e o Pacto de São José da Costa Rica (Artigo 7º, nº 2), de outro — tem advertido sobre a necessidade de estrita observância, pelos órgãos judiciários competentes, de determinadas exigências (RTJ 134/798), em especial a demonstração — apoiada em decisão impregnada de fundamentação substancial — que evidencie a imprescindibilidade, em cada situação ocorrente, da adoção da medida constritiva do “status libertatis” do indiciado/réu, sob pena de caracterização de ilegalidade ou de abuso de poder na decretação da prisão meramente processual:

PRISÃO PREVENTIVACARÁTER EXCEPCIONAL.

A privação cautelar da liberdade individual, não obstante o caráter excepcional de que se reveste, pode efetivar-se, desde que o ato judicial que a formaliza tenha fundamentação substancial, com base em elementos concretos e reais que se ajustem aos pressupostos formais de decretabilidade da prisão preventiva. Uma vez comprovada a materialidade dos fatos delituosos e constatada a existência de indícios suficientes de autoria, nada impede a válida decretação, pelo Poder Judiciário, dessa modalidade de prisão cautelar. Doutrina e jurisprudência. (…).

(HC 80.892/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

(…). A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade.

A prisão preventiva, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe — além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e indício suficiente de autoria) — que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu.

…………………………………

Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão preventiva. (…).


(RTJ 180/262-264, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Mesmo na hipótese de prisão cautelar motivada por condenação recorrível, ainda assim se impõe, para efeito de legitimação desse ato excepcional (RTJ 148/752-753), a observância de certos requisitos, sem os quais tornar-se-á destituída de validade jurídica a ordem de privação cautelar da liberdade individual do sentenciado, consoante adverte o magistério da doutrina (ROBERTO DELMANTO JÚNIOR, “As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração”, p. 202/234, itens ns. 6 e 7, 2ª ed., 2001, Renovar; LUIZ FLÁVIO GOMES, “Direito de Apelar em Liberdade”, p. 104, item n. 3, 2ª ed., 1996, RT; PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN/JORGE ASSAF MALULY, “Curso de Processo Penal”, p. 163/164, item n. 7.1.5, 3ª ed., 2005, Forense; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “A Tutela Cautelar no Processo Penal”, p. 286/301, item n. 4.4.3.1.5, 2005, Lumen Juris; ROGERIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, “Prisão Cautelar”, 2006, Lumen Juris, v.g.), cujas lições, no tema, têm merecido o beneplácito da jurisprudência desta Corte Suprema.

Com efeito, proferida sentença penal condenatória, nada impede que o Poder Judiciário, a despeito do caráter recorrível desse ato sentencial, decrete, excepcionalmente, a prisão cautelar do réu condenado, desde que existam, no entanto, quanto a ela, reais motivos evidenciadores da necessidade de adoção dessa extraordinária medida constritiva de ordem pessoal:

(…) PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE NÃO-CULPABILIDADE E SENTENÇA CONDENATÓRIA RECORRÍVEL: HIPÓTESE DE TUTELA CAUTELAR PENAL.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de reconhecer que a efetivação da prisão decorrente de sentença condenatória meramente recorrível não transgride o princípio constitucional da não-culpabilidade do réu, eis que, em tal hipótese, a privação da liberdade do sentenciado — por revestir-se de cautelaridadenão importa em execução definitiva da ‘sanctio juris’.

(RTJ 193/936, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

(…). O princípio constitucional de não-culpabilidade dos réus, fundado no art. 5º, LVII, da Carta Política, não se qualifica como obstáculo jurídico à efetivação da prisão processual do condenado, desde que presentes, quanto a ela, os requisitos condicionadores dessa excepcional medida cautelar de ordem pessoal, não obstante pendente de apreciação, pela via do recurso especial (STJ) ou do recurso extraordinário (STF), o acórdão de Tribunal de jurisdição inferior. A prisão cautelar fundada em condenação penal meramente recorrível não se confunde com a execução provisória da pena. (…).

(HC 71.644/MG, Rel. Min. CELSO DE MELLO)


O exame do acórdão ora questionado — que admitiu a possibilidade de decretação da prisão da paciente, pelo só fato de o recurso cabível contra a sentença condenatória não possuir efeito suspensivo — parece revelar que essa decisão não se ajustaria ao magistério jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte, pois — insista-se — a denegação, ao sentenciado, do direito de recorrer em liberdade depende, para legitimar-se, da ocorrência concreta de qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP (RTJ 195/603, Rel. Min. GILMAR MENDES — HC 84.434/SP, Rel. Min. GILMAR MENDESHC 86.164/RO, Rel. Min. CARLOS BRITTO, v.g.), a significar, portanto, que, inexistindo fundamento autorizador da privação meramente processual da liberdade do réu, esse ato de constrição reputar-se-á ilegal, porque destituído, em referido contexto, da necessária cautelaridade (RTJ 193/936).

Em suma: a prisão processual, de ordem meramente cautelar, ainda que fundada em sentença condenatória recorrível, tem, como pressuposto legitimador, a existência de situação de real necessidade, apta a ensejar, ao Estado, quando efetivamente ocorrente, a adoção — sempre excepcional — dessa medida constritiva de caráter pessoal.

É importante ressaltar, neste ponto, que a ora paciente permaneceu em liberdade ao longo do processo penal em que proferida a condenação contra a qual se insurge, agora, em sede de recurso excepcional, decorrendo, a ordem de prisão — contestada na presente impetração —, da circunstância de o recurso especial e de o recurso extraordinário possuírem efeito meramente devolutivo (fls. 65/66).

Em situações como a que ora se registra nesta causa, o Supremo Tribunal Federal tem garantido, ao condenado, ainda que em sede cautelar, o direito de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos interpostos, mesmo que destituídos de eficácia suspensiva (HC 85.710/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO — HC 88.276/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIOHC 88.460/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, v.g.), valendo referir, por relevante, que ambas as Turmas desta Suprema Corte (HC 85.877/PE, Rel. Min. GILMAR MENDES, e HC 86.328/RS, Rel. Min. EROS GRAU) asseguraram, até mesmo de ofício, ao paciente, o direito de recorrer em liberdade.

Desse modo, e como precedentemente já assinalado, se a ora paciente respondeu ao processo em liberdade, a prisão contra ela decretada — embora fundada em condenação penal recorrível (o que lhe atribui índole eminentemente cautelar) — somente se justificaria, se, motivada por fato posterior, este se ajustasse, concretamente, a qualquer das hipóteses referidas no art. 312 do CPP, circunstância esta que não se demonstrou ocorrente na espécie.

Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para, até final julgamento desta ação de “habeas corpus”, suspender, cautelarmente, a eficácia da ordem de prisão expedida, contra a ora paciente, nos autos da Apelação Criminal nº 15244-5/2005-Cipó/BA (Processo-crime nº 045/97 — comarca de Cipó/BA).

Caso a paciente tenha sofrido prisão em decorrência do acórdão proferido no caso ora em exame (Apelação Criminal nº 15244- -5/2005-Cipó/BA), deverá ser posta, imediatamente, em liberdade, se por al não estiver presa.

Comunique-se, com urgência, encaminhando-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 64.248/BA, Rel. Min. GILSON DIPP), ao E. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (Apelação Criminal nº 15244-5/2005–Cipó/BA) e ao MM. Juiz de Direito da comarca de Cipó/BA (Processo-crime nº 045/97 — comarca de Cipó/BA).

Publique-se.

Brasília, 06 de dezembro de 2006.

Ministro CELSO DE MELLO

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