Descontrole interno

CNJ perde o rumo e compra briga com a Constituição

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7 de dezembro de 2006, 6h00

Criado com o propósito de ser o controle externo do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça começa a ser conhecido como o fura-teto. Poderia ser reconhecido também como o fura-Constituição, o que seria muito mais grave para um órgão público que deveria ter como missão primeira defender a lei.

Na verdade, os dois epítetos são apropriados e têm relação entre si. Além de se especializar em defender interesses corporativos, como o que fura o teto salarial do Judiciário, o Conselho está se especializando em violar a Constituição. Ao fazer uma coisa, faz a outra.

O teto salarial do funcionalismo está definido constitucionalmente e corresponde ao salário de ministro do Supremo Tribunal Federal, hoje fixado em R$ 24,5 mil. Para o CNJ esta é uma questão relativa. O Conselho já decidiu, por exemplo, que seus conselheiros podem ganhar até R$ 28,5 mil. Dizem que quem já tem uma função no Judiciário merece ganhar um jetom por sessão que participa no CNJ. As razões apresentadas para a exceção podem ser as mais razoáveis, mas não escondem um fato objetivo: elas furam a Constituição.

Nesta mesma esteira, o CNJ decidiu que desembargadores aposentados que prestam assessoria a seus colegas em atividade não estão sujeitos ao teto de R$ 21,1 mil que vigora para o Judiciário dos estados. Caminhando pari-passu com seu congênere do Judiciário, o Conselho Nacional do Ministério Público decidiu, antes, que promotores e procuradores estaduais que acumulam funções também podem furar o teto.

O primeiro golpe desferido pelo Conselho contra a Constituição concedeu aos Tribunais de Justiça do país o direito de regulamentar férias coletivas de juízes. O dispositivo fere frontalmente o inciso XII do artigo 93 da Constituição, que proíbe formalmente a concessão de férias coletivas no Judiciário. “A atividade jurisdicional será ininterrupta, sendo vedado férias coletivas nos juízos e tribunais de segundo grau”.

Ao deliberar sobre esta inconstitucionalidade, o CNJ desandou os passos que já tinha dado rumo à moralização dos atos do Judiciário. Para deixar os tribunais à vontade para fazer o que a Constituição proíbe, o CNJ editou uma Resolução revogando resolução anterior em que reafirmava a necessidade de os tribunais cumprirem o preceito constitucional.

Entendeu-se, então, que boas intenções seriam suficientes para fundamentar o atropelo da Constituição. Férias coletivas, efetivamente, podem ajudar mais do que atrapalhar o funcionamento do Judiciário. Com elas, fica mais fácil obter quorum para os julgamentos coletivos nos tribunais. Com elas, os advogados também podem programar melhor suas próprias férias. Nem por isso pode-se pretender modificar a Constituição por meio de resolução de um órgão do Judiciário que nem poder jurisdicional tem.

Foi o que decidiu o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, nesta quarta-feira (6/12), ao restabelecer que o Judiciário não pode se conceder férias coletivas a menos que seja aprovada uma Emenda Constitucional. A ministra Ellen Gracie, presidente do STF e do CNJ, não compareceu à sessão e não votou.

A última do CNJ ocorreu nesta terça-feira (5/12) quando o órgão se arrogou o direito de fazer cortes no orçamento do Tribunal Superior Eleitoral. A medida provocou protesto enérgico do presidente do TSE, ministro Marco Aurélio, que apontou a inconstitucionalidade da interferência indevida do Conselho, como julgou desnecessário seu assessoramento.

Um ministro do STF, que prefere o anonimato, lembra que o Supremo decidiu sempre em defesa do órgão, reconhecendo a constitucionalidade de sua existência e reconhecendo a legitimidade da luta que encetou contra o nepotismo no Judiciário. Mas o ministro acha que o Conselho se excedeu em seu afã normatizante a ponto de manipular a hermenêutica para burlar a Constituição. “Neste ritmo, vai acabar por dar razão a quem era contra a sua criação” diz. E arrisca: “O julgamento do STF, sinalizou forte advertência ao CNJ para agir dentro da ordem jurídica. Ele não tem poderes ilimitados”.

Encarado com desconfiança desde antes de seu surgimento, o CNJ foi vítima da maledicência principalmente dos setores mais retrógrados e corporativistas do Judiciário. Sua primeira bandeira visava atingir justamente interesse subalterno destes setores. A luta contra o nepotismo, embora sem maior relevância no esforço de buscar uma Justiça mais eficiente e mais rápida, certamente era um indicador das intenções moralizadoras do Conselho.

Já então, surgiram críticas de que o Conselho estava mais preocupado em questiúnculas, deixando de lado sua efetiva missão, a de propugnar por um aperfeiçoamento dos métodos de gestão dos tribunais para garantir uma melhoria na qualidade dos serviços prestados pelo Judiciário.

“Me parece que o CNJ tem uma missão maior e mais importante do que discutir desentendimentos entre juízes, desentendimentos entre juízes e o Tribunal, entre funcionários e juízes e de funcionários entre si”, sustenta o ex-presidente do TST e membro do Conselho, Vantuil Abdala.

Aqueles eram, então, tempos menos infelizes do Conselho. Ao sofrer sua primeira mudança de direção, com a substituição de Nelson Jobim por Ellen Gracie, o Conselho mudou também de rumo. O órgão de controle externo do Judiciário acabou se transformando em órgão de descontrole interno. Para o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, este é o momento de refletir sobre as atribuições e limites do CNJ. Antes que se tenha de ouvir novo lamento do ministro Marco Aurélio: “Veja só que ironia, o CNJ nos dando trabalho”.

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