Regras de indenização

Veja o voto de Peluso em ação de Bisol contra Jornal do Brasil

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6 de dezembro de 2006, 16h45

A indenização não pode inibir ou conter o exercício da liberdade de imprensa. Mas uma lei subordinada à Constituição também não pode aliviar a responsabilidade civil do causador de um ato ilícito. O entendimento é do ministro Cezar Peluso e serviu como base para que a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal mantivesse a indenização de R$ 300 mil em ação movida pelo ex-senador José Paulo Bisol contra o Jornal do Brasil.

Bisol foi acusado pela imprensa de apresentar emendas superfaturadas ao orçamento da União para beneficiar o município mineiro de Buritis, na época em que era senador pelo Rio Grande do Sul. O ex-parlamentar tinha uma fazenda no município. Ele acusou o Jornal do Brasil de publicar notícias com informações “falaciosas e inverídicas”.

Depois de condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o JB recorreu ao Superior Tribunal de Justiça. Alegou que, “com a modificação do sistema normativo da denominada Lei de Imprensa, não mais se acha prevista a indenização tarifada”.

O STJ não conheceu o recurso. O ministro Cezar Peluso determinou a subida dos autos ao STF. No Recurso Extraordinário, o Jornal do Brasil afirmou que o acórdão do TJ do Rio violou a Constituição Federal. Por isso, pediu a redução do valor da condenação nos limites previstos nos artigos 51 e 52 da Lei 5.250/67 (Lei de Imprensa). De acordo com os dispositivos, o limite é de 29 salários mínimos.

Em seu voto, Peluso afirmou que o artigo 52 da Lei de Imprensa perdeu sua validade porque não foi recepcionado pela Constituição. No entanto, temas controversos como este, mesmo que não constassem de forma explícita na Constituição vigente à época da edição da Lei de Imprensa (1967), foram consagrados de modo nítido e muito mais largo o princípio das possibilidades indenizatórias irrestritas do dano moral, sintetizando o termo como “ofensa ao direito da personalidade”, disse o ministro.

No julgamento, o relator afirmou que não existe nenhuma restrição normativa constitucional ao valor reparatório do dano moral, arbitrado pelo TJ do Rio. “Não comporta garantia prévia e abstrata quanto aos critérios singulares da indenização a que está submetida gente que abuse no seu exercício (profissional), ou em nome da liberdade de imprensa atue fora do raio de eficácia desse direito fundamental”, disse Peluso.

“O caso é de intervenção legislativa, contrária à Constituição, na disciplina dos direitos fundamentais, porque, como lei restritiva, o disposto no artigo 52 da Lei 5.250/67 põe em risco o substrato do direito fundamental do direito à honra, à boa fama e à intimidade das pessoas”, afirmou. A decisão foi unânime.

Veja o voto do ministro

28/11/2006 SEGUNDA TURMA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 447.584-7 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

RECORRENTE(S): JORNAL DO BRASIL S/A

ADVOGADO(A/S): CLÉRIO BORGES MARTINS E OUTRO(A/S)

RECORRIDO(A/S): JOSÉ PAULO BISOL

ADVOGADO(A/S): CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FRÓES E OUTRO(A/S)

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator):

Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e cuja ementa reza:

“RESPONSABILIDADE CIVIL. PUBLICAÇÃO JORNALÍSTICA. NOTÍCIAS FALACIOSAS DESTINADAS A DESESTABILIZAR CANDIDATURA. CONFIGURAÇÃO DO DANO MORAL. INDENIZAÇÃO NÃO MAIS TARIFADA. INTEGRAL MANUTENÇÃO DE SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.

Mostra-se configurado o dano moral sofrido, em conseqüência da divulgação de notícias falaciosas, com a nítida intenção de desestabilizar candidatura da pessoa atingida, seja por invadir a esfera íntima de sua personalidade – que há de ser resguardada e não pode ser alvo de comentários vulgares – sem qualquer outro interesse imaginável que não seja o de achincalhar e desacreditar o candidato perante a opinião pública, em plena campanha eleitoral. Com a modificação do sistema normativo da denominada Lei de Imprensa, não mais se acha prevista a indenização tarifada, segundo entendimento do Egrégio Tribunal Superior de Justiça.” (fls. 649/650)

O acórdão tem origem em ação de indenização por danos morais, ajuizada pelo ora recorrido, que alega ter o jornal, ora recorrente, publicado notícias onde foi veiculada “uma série de acusações falaciosas e inverídicas com intuito explícito de denegrir a imagem pública do autor, então candidato a Vice-Presidência da República” (fls. 03).

Nas instâncias ordinárias, o pedido foi julgado procedente, para condenar o recorrente ao pagamento de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) a título de indenização. Interposta apelação, negou-lhe provimento o acórdão impugnado (fls. 649/650).

Contra tal decisão foram interpostos recursos especial e extraordinário. O primeiro não foi conhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (fls. 791). Ao segundo o tribunal a quo negou-lhe seguimento, mas, interposto agravo de instrumento, determinei a subida dos autos para melhor exame (fls. 374).


O recorrente alega, com base no art. 102, III, a, da Constituição da República, violação ao disposto no seu art. 5º, incs. V e X. Requer, assim, o provimento do recurso, a fim de que seja reduzido o “valor da condenação aos termos da Lei de Imprensa (artigos 51 e 52), cuja vigência não foi maculada pela edição da Constituição Federal de 1988” (fls. 740/741).

É o breve relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator):

1. O objeto último deste recurso está em saber se, negando aplicação ao art. 52 da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, que, como previsão de limite de cálculo da verba indenizatória por dano moral, já não subsistiria perante o art. 5º, incs. V e X, da vigente Constituição da República, teria o acórdão violado estas normas constitucionais.

2. Já não vige deveras, ou, segundo reza outra doutrina de igual conseqüência prática, perdeu seu fundamento de validez, a norma inserta no art. 52 da Lei nº 5.250, de 1967, porque, incompatível com o alcance das regras estatuídas no art. 5º, V e X, da atual Constituição da República, não foi por esta recebida.

E não custa demonstrá-lo.

Já ninguém tem dúvida de que, pondo termo às controvérsias inspiradas no silêncio (não eloqüente) do ordenamento anterior, essas regras constitucionais consagraram, de modo nítido e muito mais largo, no plano nomológico supremo, o princípio da indenizabilidade irrestrita do chamado dano moral, concebendo-o, numa síntese, como ofensa a direito da personalidade, sob cuja definição vem considerado, no plano da experiência pré-normativa, não só todo gravame não patrimonial subjetivo, que diz com sensações dolorosas ou aflitivas, inerentes ao sofrimento advindo da lesão a valores da afetividade, senão também o chamado prejuízo não patrimonial objetivo, que concerne à depreciação da imagem da pessoa como modo de ser perante os outros. No primeiro caso, a concepção normativa tende a preservar os elementos introspectivos da personalidade humana e, no segundo, a consciência da dignidade pessoal, como alvo da estima e da consideração alheias. Por isso se traduz e resume na previsão de específica tutela constitucional da dignidade humana, do ponto de vista de um autêntico direito à integridade ou à incolumidade moral, pertencente à classe dos direitos absolutos.

Ora, a primeira questão do procedimento metodológico em que se desdobra a investigação analítica do tema central deste recurso, está em saber se tal princípio encontra, já a título de definição de sua esfera de eficácia, dentre as limitações próprias da estrutura da norma que o condensa, alguma restrição apriorística ao valor reparatório do dano moral, em qualquer de suas modalidades, ou seja, se o âmbito de proteção da norma garantidora do direito à integridade moral, que constitui o objeto último da tutela, é encurtado por algum limite prévio e abstrato ao valor da reparação pecuniária do mesmo dano.

Aqui, a resposta é evidentemente negativa. Na fisionomia normativa da proteção do direito à integridade moral, ao qual serve o preceito de reparabilidade pecuniária da ofensa, a vigente Constituição da República não contém de modo expresso, como o exigiria a natureza da matéria, nem implícito, como se concede para argumentar, nenhuma disposição restritiva que, limitando o valor da indenização e o grau conseqüente da responsabilidade civil do ofensor, caracterizasse redução do alcance teórico da tutela. A norma garantidora, que nasce da conjugação dos textos constitucionais (art. 5º, V e X), é, antes, nesse aspecto, de cunho irrestrito.

A pergunta subseqüente, de certo modo implicada na primeira, é se a Constituição, posto não restringindo o valor indenizatório, autorizaria, com o mesmo resultado prático, de maneira expressa ou não, o preestabelecimento de limites por mediação de lei subalterna, que, para acomodar sua força restritiva a outros postulados sistemáticos, deveria atender aos requisitos constitucionais da restringibilidade legítima, sobretudo aos postulados da proibição de excessos e do resguardo ao conteúdo essencial do direito fundamental tutelado.1

Noutras palavras, abrigaria a Constituição, ainda quando por modo indireto, cláusula da chamada reserva de lei restritiva, à qual autorizasse, por esse artifício, reduzir o âmbito teórico da tutela?

E, aqui, também é não menos negativa a resposta, porque o princípio por observar é que, se lho não autoriza a Constituição expressis verbis, não pode lei alguma restringir direitos, liberdades e garantias constitucionais. Tal como no Direito português e pelas mesmíssimas e irrespondíveis razões, a Constituição brasileira “individualizou expressamente os direitos sujeitos a reserva de lei restritiva“.22


E, supondo-se por epítrope que o autorizasse a Constituição, ter-se-ia ainda de indagar se o art. 52 da Lei nº 5.250, de 1967, não sucumbiria ao contraste com o postulado da proporcionalidade, o qual impõe à lei restritiva que seja necessária, adequada e proporcional.3

Ora, abstraindo-se que o grau das restrições à inviolabilidade pessoal sobrepuja o fim normativo de tutela da liberdade da imprensa, parece evidente que, pelo menos, não seria nem necessária (a indenização fixa-se por juízo prudencial), nem de justa medida, porque firma uma ficção reparatória, ao estatuir limites prévios e abstratos à indenização, a qual, no extremo, estaria sempre a independer dos critérios concretos, próprios da valoração eqüitativa, cujo resultado, neste caso exemplar, bem demonstra toda a inconsistência da tese do ora recorrente. Que significaria a este, em termos de eficácia da censura normativa, pagar apenas o valor correspondente a alguns salários mínimos? E ao ora recorrido, o que lhe representaria, em termos de satisfação ética à afronta, recebê-lo? Evidentemente, quase nada.

Não é só. Outra pergunta, envolvida no inquérito teórico, é se, à luz daqueloutro postulado, tal limitação absoluta não sacrificaria o núcleo essencial do direito fundamental restringido.

E vê-se logo que o sacrificaria, porque, na sua vigência hipotética como instância legal redutora da responsabilidade civil, aniquilaria toda a função satisfativa e dissuasória que constitui o cerne mesmo justificador da indenização garantida pela norma de escalão supremo, a qual perderia a razão de ser, em não se prestando a tutelar o direito subjetivo à incolumidade moral, pelo só fato de que o valor econômico do ressarcimento deixaria, em regra, de exprimir algum significado útil ao titular do mesmo direito.

Descontadas as respostas anteriores, de si já decisivas à demonstração da incompatibilidade irremissível entre as normas superiores e a inferior, o procedimento metódico de resolução da questão jurídico-constitucional levaria a outra perquirição de não menor relevância e que está nisto: se, pressuposta a inexistência de ordem hierárquica entre os direitos fundamentais, não teria doutro modo a Constituição, ao proteger a liberdade de imprensa como direito de igual valor nomológico, introduzido regra cuja incidência provocaria colisão ou conflito entre direitos fundamentais, no sentido de que, no conjunto, estaria a tutelar, ao mesmo tempo, dois bens ou valores jurídicos pertencentes a sujeitos diversos e em estado de contradição concreta, de modo que a esfera de exercício de um interferiria na do outro?

Não precisa relevar que a liberdade de expressão é sobremodo suscetível de colidir, em tese, com outros direitos fundamentais, designadamente com os elementares do chamado direito à incolumidade moral, consoante se dá na espécie. Considera a doutrina, aliás, como paradigmático de colisão entre direitos constitucionais, “o caso da liberdade de expressão ou de imprensa, quando se oponha à intimidade da vida privada, ao direito ao bom nome e à reputação”.4

Ora, a tratar-se de verdadeira hipótese de conflito entre valores constitucionais, a solução que lhe predicaria o método da concordância prática, segundo o qual deve o intérprete harmonizar os preceitos divergentes no quadro da compreensão unitária da Constituição,5 parte do reconhecimento da natureza relativa da liberdade de imprensa como valor jurídico (na verdade, não há direitos absolutos na ordem jurídica),6 cuja regulamentação constitucional, esta, sim, encontra limites textuais nas regras que, contra ela, se protegem os valores da integridade moral, mediante, dentre outras, a estratégia normativa de prever a reparabilidade das conseqüências civis de sua violação (= indenização do dano moral).

Mas implica outra idéia, a de que se não resolve conflito entre direitos fundamentais com o sacrifício prático de um deles, conforme o chamado princípio ou postulado do resguardo do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias constitucionais.

Estoutro postulado, que concorre para definir o próprio campo de pertinência do critério da concordância prática, do qual está pré-eliminada a necessidade de sacrifício do núcleo substantivo dalgum dos direitos (do contrário não se conceberia colisão entre eles), como seria, por exemplo, o tolher-se de modo absoluto a liberdade de imprensa, tem inteira aplicação ao caso.

E tem-no, porque, a admitir por absurdo que, legitimando a restrição indenizatória da lei subalterna, a garantia constitucional da liberdade de imprensa significasse autorização para amesquinhar o valor pecuniário da indenização do dano moral, isso equivaleria a devorar todo o conteúdo significativo do direito à integridade moral, degradando-o ao nível de mera enunciação simbólica, ou arremedo de direito.


Não é mister grande esforço intelectual por advertir em que o valor da indenização há de ser eficaz, vale dizer, deve, perante as circunstâncias históricas, entre as quais avulta a capacidade econômica de cada responsável, guardar uma força desencorajadora de nova violação ou violações, sendo como tal perceptível ao ofensor, e, ao mesmo tempo, de significar, para a vítima, segundo sua sensibilidade e condição sociopolítica, uma forma heterogênea de satisfação psicológica da lesão sofrida. Os bens ideais da personalidade, como a honra, a imagem, a intimidade da vida privada, não suportam critério objetivo, com pretensões de validez universal, de mensuração do dano à pessoa.7 Noutras palavras, a restituição do gravame a tais bens não é recondutível a uma escala econômica padronizada, análoga à das valorações relativas dos danos patrimoniais, pois “tem outro sentido, como anota Windscheid, acatando opinião de Wachter: compensar a sensação de dor da vítima com uma sensação agradável em contrário (nota 31 ao parág. 455 das ‘Pandette’, trad. Fadda e Bensa). Assim, tal paga em dinheiro deve representar para a vítima uma satisfação, igualmente moral ou, que seja, psicológica, capaz de neutralizar ou ‘anestesiar’ em alguma parte o sofrimento impingido… A eficácia da contrapartida pecuniária está na aptidão para proporcionar tal satisfação em justa medida, de modo que tampouco signifique um enriquecimento sem causa da vítima, mas está também em produzir no causador do mal, impacto bastante para dissuadi-lo de igual e novo atentado. Trata-se, então, de uma estimação prudencial”.8

Ora, limitações prévias, que, despojadas de qualquer justificação lógica, desqualificam a importância estimativa da natureza, da gravidade e da repercussão da ofensa, bem como dos outros ingredientes pessoais do arbitramento (que é sempre obra de juízo de equidade), capitulados de modo legítimo mas não exauriente pela lei (art. 53 da Lei nº 5.250, de 1967), tornam nula, ou vã, a proteção constitucional do direito à inviolabilidade moral e sacrificam-no em concreto. São imposições excessivas e arbitrárias, que mal se afeiçoam à vertente substantiva do princípio do justo processo da lei (substantive due process of law), que, na visão desta Corte, “atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável”.9

Observe-se que à mesmíssima conclusão se chega de outro ângulo, o dos limites imanentes ao âmbito material das normas, o qual no fundo se reduz ao problema da configuração ou extensão objetiva dos direitos, ou, o que dá no mesmo, dos modos de seu exercício. Tal perspectiva metodológica ajusta-se à hipótese em que, a rigor, não há conflito ou colisão de direitos, simplesmente porque um deles não existe nos termos ou na amplitude em que é pensado dentro da situação supostamente conflitiva, onde não pode, pois, ser invocado a título de objeto de idêntica proteção constitucional.10

É o esquema teorético que convinha e convém à decisão do caso, em cujos contornos a liberdade de imprensa, vista como direito subjetivo, aparece na sua dimensão portadora de limitação imanente, expressa e específica, oriunda da reserva constitucional aos direitos à inviolabilidade moral: é a própria Constituição que, demarcando o espaço normativo de abrangência da mesma liberdade, pré-exclui, por fórmulas inequívocas, mediante remissões textuais a outras normas suas, bem como imputação da responsabilidade civil e pressuposição da criminal, que seu exercício legítimo possa implicar lesão à honra, à reputação, à imagem, ou à intimidade alheias (art. 5º, IV, V, IX, X, XIII e XIV, e art. 220, caput e § 1º).

Bastaria, aliás, a previsão constitucional da ilicitude civil de todo comportamento capaz de insultar esses valores da personalidade, objeto de tutela expressa, por concluir logo que, como ilícito, já transpõe as fronteiras normativas da liberdade de imprensa, coisa que se realça e confirma perante sua teórica e simultânea ilicitude penal, cujo reconhecimento está à raiz da idéia de abuso de direitos fundamentais, a que costuma recorrer a jurisprudência constitucional estrangeira, especial e “designadamente quando se considera que o exercício de um direito fundamental viola criminalmente um outro direito (direito à integridade pessoal, direito ao bom nome e reputação)”.11

A interpretação unitária das regras constitucionais evidencia, dessarte, que tal limitação é inerente ao recorte da própria esfera normativa da garantia da liberdade de imprensa, no sentido de que esta só pode exercida em sintonia com a Constituição e, portanto, só existe como direito, quando não ofenda os valores da intimidade e da incolumidade moral. Toda atividade exercida em nome da liberdade de expressão, mas com ofensa à honra e à reputação alheia, não é tolerada pela Constituição da República, porque se põe fora do domínio de proteção normativo-constitucional desse bem jurídico, ou, numa dicção menos congestionada, não faz parte dos comportamentos facultados pelo direito fundamental correlato. Trata-se de comportamento ilícito, não do exercício de um direito!


Em síntese, por força de expressa e específica limitação imanente ao seu perfil normativo, segundo o diagrama que lhe traça a Constituição, a liberdade de imprensa não abrange poder jurídico de violentar o direito fundamental à honra, à boa fama e à intimidade das pessoas. É da sua condição de um dos direitos fundamentais mais complexos, dotado de múltiplas direções e dimensões, dentre as quais a que interessa ao caso: implicar direito de todos à informação, mas não a informação qualquer, senão à informação veraz e não privativa (fato da privatividade), só enquanto tal inocente à dignidade alheia. E não há, aí, nenhuma novidade constitucional: “por isso mesmo que tal é a alta missão da imprensa, é claro que se não deve abusar della e transformá-la em instrumento de calumnia ou injuria, de desmoralisação, de crime. Sua instituição tem por fim a verdade e o direito”.12 “Sem isso”, notava outro velho constitucionalista, “reinaria a anarchia e o direito seria o apanagio do forte e o opprobrio do fraco“.13

Há quem, preferindo à consideração da existência de limites imanentes a figura conceitual de restrição, entendida como amputação de faculdades que em tese o direito fundamental poderia compreender, afirme a mesma coisa, ou seja, ser óbvio que a norma da liberdade de expressão tem de se coadunar com a “que garante o direito ao bom nome e reputação das pessoas”.14

De qualquer modo, o que interessa é que, insista-se, não comporta, agora por essoutra razão jurídica, garantia prévia e abstrata contra os critérios singulares da indenização a que está submetido o agente que abuse no seu exercício, ou, rectius, que, em nome da liberdade de imprensa, atue fora do raio de eficácia desse direito fundamental. Não pode, é certo, a indenização, pela rudeza de sua expressão pecuniária, inibir ou conter o exercício geral da mesma liberdade. Mas tampouco pode a lei subalterna, em homenagem a direito que não existe em concreto, aliviar a responsabilidade civil do causador de ato ilícito absoluto, sob pretexto, quem sabe, de eventuais demasias na estipulação do valor justo e proporcional da medida pecuniária destinada a reparar o dano moral conseqüente, até porque, para ser proporcional e justo, tem de ser fixado caso por caso, segundo as condições das pessoas, sem limitações abstratas capazes de inutilizar o sentido reparatório, intrínseco à indenização.

O caso é, em resumo, de intervenção legislativa na disciplina dos direitos fundamentais, mas de intervenção contrária à Constituição Federal superveniente, porque, como lei restritiva, o disposto no art. 52 da Lei nº 5.250, de 1967, põe em risco o substrato do direito fundamental à honra, à boa fama e à intimidade das pessoas.

Restrição aqui, essa só seria permitida, quando fora necessária para promover a tutela de um bem constitucionalmente valioso (não há dúvida de que o seja a liberdade de imprensa) e apenas na medida da necessidade dessa proteção, de acordo com o postulado da proporcionalidade. Não, para premiar o ofensor e desfazer do ofendido!

Nenhuma interpretação pode comprimir direito fundamental, a ponto de esvaziar-lhe o significado prático e a valia como bem da vida.

Nesse exato sentido, já decidiu, aliás, esta mesma 2ª Turma, no julgamento do RE nº 396.386.14 Do voto do Relator, quando se reporta ao julgamentos dos REs nº 348.827-RJ e 420.784-SP, dos quais transcreve trecho do acórdão, consta:

“(…)

Mas o que deve ser tomado em linha de conta é que a Constituição de 1988 emprestou ao dano moral tratamento especial ¾ C.F., art. 5º, V e X ¾ desejando que a indenização decorrente desse dano fosse a mais ampla. É o que ressai, efetivamente, do disposto nos citados incisos V e X: ‘é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem’ (inciso V); ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação’ (inciso X). Posta a questão nesses termos, considerado o tratamento especial que a Constituição emprestou à reparação decorrente do dano moral, não seria possível sujeitá-la aos limites estreitos da lei de imprensa, como bem decidiu, no Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, no REsp 52.842 (‘DJ’ de 27.10.97):

‘(…)

‘De todos os modos, entendo que com a disciplina constitucional de 1988 abre-se o caminho para melhor tratar essas situações que machucam pessoas honradas. A limitação imposta pelo art. 52 da Lei de Imprensa, que restringe a responsabilidade civil da empresa que explora o meio de informação ou divulgação a dez vezes as importâncias fixadas no artigo 51, a meu juízo, não mais está presente.


O regime da lei especial impunha a reparação por danos morais e materiais em casos de calúnia, difamação e injúria e, ainda, quando a notícia gerasse desconfiança no sistema bancário ou abalo de crédito de instituições financeiras ou de qualquer empresa, pessoa física ou jurídica, provocasse sensível perturbação na cotação das mercadorias e dos títulos mobiliários no mercado financeiro, ou para obter ou procurar obter, para si ou para outrem, favor, dinheiro ou outra vantagem para não fazer ou impedir que se faça pública transmissão ou distribuição de notícias (v. art. 49, I). E as limitações foram escalonadas em dois salários mínimos no caso de publicação ou transmissão de notícia falsa, ou divulgação de fato verdadeiro truncado ou deturpado (art. 16, II, IV), a cinco salários mínimos nos casos de publicação ou transmissão que ofenda a dignidade ou decoro de alguém, a dez salários mínimos nos casos de fato ofensivo à reputação e, finalmente, a 20 salários mínimos nos casos de falsa imputação de crime a alguém, ou de imputação de crime verdadeiro, nos casos em que a lei não admite a exceção da verdade (art. 49, § 1º).

O certo é que o sistema da lei de imprensa compunha no seu tempo um cenário excepcional de condenação por danos morais, daí que estritamente regulamentado, alcançando casos concretos especificados no art. 49, I, antes mencionados.

A Constituição de 1988 cuidou dos direitos da personalidade, direitos subjetivos privados, ou, ainda, direitos relativos à integridade moral, nos incisos V e X do artigo 5º, assegurando o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem, declarando, ademais, invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas, assegurando, também, o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Na verdade, com essa disciplina clara, a Constituição de 1988 criou um sistema geral de indenização por dano moral decorrente da violação dos agasalhados direitos subjetivos privados. E, nessa medida, submeteu a indenização por dano moral ao direito civil comum e não a qualquer lei especial. Isso quer dizer, concretamente, que não se postula mais a reparação pela violação dos direitos da personalidade, enquanto direitos subjetivos privados, no cenário da lei especial, que regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Não teria sentido pretender que a regra constitucional nascesse limitada pela lei especial anterior ou, pior ainda, que a regra constitucional autorizasse tratamento discriminatório. Diante dessa realidade é inaplicável, até mesmo, a discutida gesetzeskonformen Verfassungsinterpretation, isto é, a interpretação da Constituição em conformidade com a lei ordinária. Dentre os perigos que tal interpretação pode acarretar, Gomes Canotilho aponta o ‘perigo de a interpretação da Constituição de acordo com as leis ser uma interpretação inconstitucional’ (Direito Constitucional, Liv. Almedina, Coimbra, 5ª ed., 1991, p. 242). E tal é exatamente o que aconteceria no presente caso ao se pôr a Constituição de 1988 na estreita regulamentação dos danos morais nos casos tratados pela lei de imprensa.

Por tais razões, entendo, desde quando ainda tinha assento na 1ª Câmara Cível, período que aguardo sempre na melhor das lembranças da minha vida, que a indenização por dano moral, com a Constituição de 1988, é igual para todos, inaplicável o privilégio de limitar o valor da indenização para a empresa que explora o meio de informação ou divulgação, mesmo porque a natureza da regra jurídica constitucional é mais ampla, indo além das estipulações da lei de imprensa. E, sendo assim, preciosa é a lição de Sílvio Rodrigues, verbis:

‘Será o juiz, no exame do caso concreto, quem concederá ou não a indenização e a graduará de acordo com a intensidade e duração do sofrimento experimentado pela vítima’ (Direito Civil, Saraiva, S. Paulo, vol. 4, 7ª ed., 1983, págs. 208/209).’

(…)’

Nos citados RE 348.827/RJ e 420.784/SP, cuidamos do tema aqui versado. Sustentamos: o que deve ser tomado em linha de conta é que a Constituição de 1988 emprestou ao dano moral tratamento especial ¾ C.F., art. 5º, V e X ¾ desejando que a indenização decorrente desse dano fosse a mais ampla. Posta a questão nesses termos, considerado o tratamento especial que a Constituição emprestou à reparação decorrente do dano moral, não seria possível sujeitá-la aos limites estreitos da lei de imprensa. Se o fizéssemos, estaríamos interpretando a Constituição no rumo da lei ordinária, quando é de sabença comum que as leis devem ser interpretadas no rumo da Constituição, já que esta é pressuposto de validade e de eficácia de toda a ordem normativa instituída pelo Estado”.16


3. Do exposto, nego provimento ao recurso.

Notas de rodapé

1 – Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4ª ed.. SP: Malheiros, 1993, pp. 352-355, nº 11; GOMES CANOTILHO, J. J.. Direito constitucional. 4ª ed.. Coimbra: Almedina, 1986, pp. 482 e segs.; MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 1988, t. IV/307-309, nº 64. Sobre a distinção entre o postulado da proporcionalidade, em que se investigam os aspectos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito, e o postulado da proibição de excesso, que convém a situações em que se discuta eventual restrição imoderada de direito fundamental, ver, por todos, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 5ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 133-137.

2 – CANOTILHO, op. cit., pp. 483-484.

3 – A respeito, cf. ÁVILA, Humberto, op. Cit., pp. 148-161.

4 – VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, reimp., 1987, p. 220, nº 2.

5 – BONAVIDES, op. cit., p. 325; CANOTILHO, op. Cit., p. 163, nº 5, e p. 496, nº 1; VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 222.

6 – Sobre a completa inadequação jurídica de se representar a liberdade de imprensa como direito ou valor absoluto e, como tal, capaz de se sobrepor a todos os direitos e valores, cf. COSTA ANDRADE, Manuel. Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal. Coimbra: Coimbra Ed., 1996, p.45-46 e 166.

7 – Cf. SCOGNAMIGLIO, Renato. Il danno morale. In: Rivista di Diritto Civile, Ano III – 1957, 1ª Parte, p. 295, nº 8.

8 – TJSP, Ap. nº 113.190-1, Rel. Des. WALTER MORAES, RT 650/66, 1ª col..

9 – ÁVILA, Humberto, op. Cit., p. 143. No mesmo sentido, para discussão da dimensão do princípio sob os aspectos da “razoabilidade” ou “racionalidade” das leis, cf. SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 3ª ed.. RJ: Forense, 2005, pp. 141-193 e 400 e segs.. Para solução em termos de princípio da proporcionalidade, ver BONAVIDES, op. cit., p. 319, e LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 1ª ed.. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1978, trad. de José de Souza e Brito e José António Veloso, pp. 577-578.

10 – Cf. VIEIRA DE ANDRADE, op. Cit., pp. 216-219.

11 – CANOTILHO, op. cit., p. 496, nº 1. Sobre este critério, cf., ainda, VIEIRA DE ANDRADE, op. cit., p. 219, nota nº 11. A respeito dessa questão delicada dos limites contrafáticos da liberdade de imprensa à custa das sanções criminais e, em especial, sobre análogos limites normativos desse direito nas Constituições alemã, espanhola e portuguesa, cf. COSTA ANDRADE, op. cit., pp. 47, 55-56, nota nº 107, e pp. 76 e segs.. Parece curial à nossa ordem jurídica, onde, como se lhes vê aos respectivos textos invocados, as próprias normas constitucionais não deixam dúvida de que o exercício da liberdade de imprensa não legitima atentados à inviolabilidade pessoal, esta sua observação: “Tal exercício é, pelo contrário, compatível com o estigma da ilicitude, mesmo da ilicitude penal, a mais drástica, e de ultima ratio, forma de desaprovação ao dispor da ordem jurídica.” (p. 168).

12 – PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito público brazileiro. RJ: J. Villeneuve e C., 1857, 2ª Parte, p. 396, nº 543.

13 – BARBALHO, João. Constituição federal brasileira. 2ª ed.. RJ: F. Briguiet e Cia., 1924, p. 431.

14 – MIRANDA, Jorge, op. Cit., t. IV/303, nº 64.

15 – Rel. Min. CARLOS VELLOSO, com voto declarado do Min. GILMAR MENDES. In: Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 191/329-335, e Revista de Processo, v. 119/181-184 (observe-se que, nesta segunda publicação, não consta trecho final do voto do Relator). E foi também o que, com idênticas razões substanciais às deste voto, professamos, há muitos anos, como Relator, em recursos julgados no Tribunal de Justiça de São Paulo, onde contamos com a honrosa adesão dos ilustres componentes da turma julgadora (cf. Emb. Inf. nº 219.954. In: JTJ 189/236-253 e Boletim da AASP nº 2.078, p. 69. E, ainda, Emb. Inf. nº 105.951).

16 – Estes três últimos parágrafos não constam, por engano, da publicação na citada Revista de Processo. Vide supra nota nº 15.

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