Falácia eletrônica

A internet não criou um novo bem jurídico a ser tutelado

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6 de dezembro de 2006, 13h31

Desde o primeiro momento que acessei a internet, nos idos de 1995, pressenti que o grande teatro da repreensão penal1 apresentaria óperas bufas nunca dantes imaginadas — e tudo isso com a colaboração de profissionais do direito (advogados, juízes, promotores, etc.). Todavia, nem remotamente imaginava que meu pressentimento se tornaria realidade ou, mais do que isso, que a tudo suplantasse e desenhasse uma apreensiva supra-realidade, como ressaltam os projetos de lei em trâmite no Congresso, a ela relativos.

Ignoro as razões, mas a internet se mostrou como um novo mundo a ser civilizado, regrado e punido, incisivamente punido, — na visão de cabresto de alguns legisladores que não se aperceberam que essa novidade eletrônica nada mais era que um outro meio, um médium.

Ressalto: a internet simplesmente nos ofereceu um novo meio para o exercício de nossos velhos e consagrados direitos por meio da grande rede mundial de computadores, eis que por meio dessa podemos nos expressar livremente, podemos fazer compras, podemos apresentar nossas declarações de bens e rendas ao fisco, podemos pagar impostos, podemos fazer operações bancárias e aí vai. Da mesma forma, por meio da internet, podemos matar, podemos roubar, podemos traficar e muito mais.

Em outras palavras: o surgimento e imposição da internet no planeta não tiveram o condão de criar um novo bem jurídico que devesse ser tutelado e, deste, ampliar-se a reserva legal.

Mesmo assim, contrariando a realidade fática e legal, muitos profissionais do Direito propõem o que se me apresenta como algo a jamais a ser proposto: um novo ramo para o Direito, por alguns apelidado de eletrônico, informático, cibernético ou algo congênere. Mas tudo isso me parece um tanto quanto bisonho, eis que não surgiu nenhum novo direito, como igualmente não surgiu um novo bem jurídico a ser tutelado.

O que ocorre, isso sim, é a necessidade de algumas adequações às leis já existentes. A certificação digital e o crime por disseminação de vírus bíticos são um exemplo de que não surgiram novos bens jurídicos a serem tutelados, mas, isso sim, novas formas de se os adequar a novas situações — o que é bastante diferente.

Afinal, surrupiar dinheiro da conta-corrente de alguém, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento não é estelionato2?

Imputar, falsamente, a alguém, fato definido como crime não é calúnia3?

Imputar fato ofensivo à reputação de alguém não é difamação4?

Atacar a honra, ou a dignidade de alguém não é injúria5?

Violar a intimidade, ou a privacidade, de alguémnão é ilícito civil6?

Então por que se falar em direito eletrônico, telemático, informático ou quejandos?

Por tudo isso — e alguns argumentos a mais — é que entendo como temerário se cogitar esse novo ramo para o Direito, como sugerem alguns juristas.

Insistir na idéia do surgimento de um novo campo do Direito é tão coerente quanto advogar a criação de um direito balístico para o caso de o morto ter sido vítima de um disparo de arma de fogo. Convenhamos. Desde quando o surgimento de um novo meio para interagirmos pode implicar no surgimento de um novo bem jurídico?

Afinal, a internet não é um mundo à parte, um gueto.

Como muito bem colocou Carlos Sánches Almeida em artigo publicado aos 15 de junho de 2004, “os ciberdireitos não existem, como não existem os delitos ‘informáticos’. Os direitos humanos e sua antítese, os delitos, são os mesmos fora e dentro da rede. Quando falamos de ciberdireitos ou ciberdelitos nos referimos a direitos ou a delitos que podem ser exercidos, ou cometidos, mediante meios telemáticos”7.

Notas de rodapé

1 – Essa expressão (“el gran teatro del sistema de reprensión penal”) eu tomei das palavras de Carlos Sánchez Almeida. Ver em CIBERDELITOS Y CIBERDERECHOS: CORREN MALOS TIEMPOS, que pode ser acessado a partir de http://www2.noticiasdot.com/publicaciones/2004/0604/1606/noticias1606004/noticias160604-3.htm.

2 – Artigo 171 do Código Penal — Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

3 – Artigo 138 do Código Penal — Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime.

4 – Artigo 139 do Código Penal — Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação.

5 – Artigo 140 do Código Penal — Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.

6 – Artigo 20 do Código Civil — Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da Justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seus requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único — Em se tratando de morto ou de ausente, são as parte legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Artigo 21, CCiv — A vida privada da pessoal natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.”

7 – “(…) los ciberderechos no existen, como no existen los delitos “informáticos”. Los derechos humanos y su antítesis, los delitos, son los mismos fuera y dentro de la Red. Cuando hablamos de ciberderechos o ciberdelitos nos referimos a derechos o delitos que pueden ejercerse, o cometerse, mediante medios telemáticos”. Vide nota 01.

Autores

  • é advogado paulistano com dedicação às questões relativas a direito e tecnologia das informações. Além de autor de diversos outros livros, é partícipe da coletânea ATA NOTARIAL (SAFe [Porto Alegre], 2004, 1ª Edição). Foi o coordenador de cursos sobre a importância da ata notarial em diversos Estados, em 2004

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