Lei do comércio

Não cabe à junta comercial avaliar a liquidez de título de crédito

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4 de dezembro de 2006, 13h29

O Decreto 1.800/96 dispõe que cabe às juntas comerciais a análise do aspecto formal e não do aspecto material dos documentos. Caso a junta comercial entenda que o documento não atende os aspectos formais estabelecidos em lei, indeferirá o arquivamento ou formulará exigência sendo que essas decisões deverão ser fundamentadas com a lei que o proíbe, conforme segue:

“Artigo 57 — Todo ato, documento ou instrumento apresentado a arquivamento será objeto de exame, pela Junta Comercial, do cumprimento das formalidades legais.

Parágrafo 1º — Verificada a existência de vício insanável, o requerimento será indeferido; quando for sanável, o processo será colocado em exigência.

Parágrafo 2º — O indeferimento ou a formulação de exigência pela Junta Comercial deverá ser fundamentada com o respectivo dispositivo legal ou regulamentar”.

O próprio Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) já se manifestou algumas vezes nesse sentido, como, por exemplo, no Parecer DNRC/CONJU 227/97:

“O eminente jurista Miguel Reale, em brilhante parecer (RT 150/481, pág. 481), delimita de maneira clara e precisa as atribuições das Juntas Comerciais, in verbis:

‘Assim, não há inconveniente, mas antes vantagem, em que o órgão incumbido do Registro do Comércio não entre em apreciação controvertida da substância dos contratos, indo além da já delicada missão de zelar pela observância das formalidades essenciais’.

A jurisprudência acompanha a doutrina, como bem acentuou a 4o Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que:

Ao órgão executor do Registro do Comércio compete arquivar os instrumentos produzidos controvertida da substância dos contratos, indo além da já delicada missão de zelar pela observância das formalidades essenciais.

As Juntas Comerciais têm competência apenas para verificar se os atos submetidos a arquivamento obedeceram as formalidades legais ou regulamentares, bem como o respectivo estatuto ou contrato não modificado anteriormente, não lhe cabendo examinar e julgar questões subjetivas ou com vícios não manifestos, vez que não possuem capacidade judicante”.

Para que fique mais clara a matéria desse parecer, vejamos rapidamente as características da nota promissória:

Nota promissória é um título de crédito nominal, emitido pelo devedor ao credor, representando uma promessa de pagamento em um determinado prazo. Esse título é passível de transferência mediante endosso e o seu não cumprimento garante ao credor o seu protesto e execução judicial. A nota promissária também é caracterizada como documento abstrato, pois não tem ligação com a causa a que deve sua origem.

O artigo 923 do Código Civil prevê a transferência do título nominativo por meio do endosso que contenha o nome do endossatário.

Vejamos o que estabelece a lei acerca da matéria objeto desse parecer:

O artigo 997, III c.c. 1.054 do Código Civil, prevê que o capital social da sociedade poderá ser realizado em moeda corrente nacional, ou qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação pecuniária, ou seja, passível de avaliação em dinheiro.

Esse artigo corresponde ao artigo 7º da Lei das Sociedades por Ações que estabelece que o capital social poderá ser formado com contribuições em dinheiro ou qualquer espécie e bens suscetíveis de avaliação em dinheiro.

Cabe identificar as espécies de bens conferíveis ao capital. O autor Modesto Carvalhosa, em seu livro Comentários à Lei das Sociedades Anônimas e ao artigo 7º, supra citado, entende:

“Podem ser conferidos ao capital social tanto os bens corpóreos como os incorpóreos, tais como imóveis, instalações industriais ou comerciais, bens imateriais, créditos e estabelecimentos comerciais.

Não podem ser conferidos os contratos bilaterais em que as obrigações recíprocas das partes tornam o negócio jurídico totalmente incompatível com a característica do capital social.

Já os contratos unilaterais podem ser incluídos na categoria de créditos (artigo 10)”.

Diante desses artigos e de acordo com o professor Modesto Carvalhos, podemos concluir que qualquer bem passível de avaliação pode ser utilizado pelos sócios para integralização do capital social, sendo este bem um imóvel, ações de outras sociedades, títulos de crédito, dinheiro, dentre outros.

É importante enfatizar que o artigo 1.055, parágrafo1º, do Código Civil, prevê que “pela exata estimação dos bens conferidos ao capital social respondem todos solidariamente todos os sócios, até o prazo de cinco anos da data do registro da sociedade”.

Ainda no mesmo artigo, o seu parágrafo 2º apenas veda a contribuição que consista em prestação de serviços.

Pelo exposto, é nítido que a lei não veda a integralização de capital social com nota promissória emitida pelo próprio sócio. A única forma vedada em lei é a integralização de capital social com prestação de serviços, o que, aliás, é uma inovação trazida por este Código Civil, já que antes do novo Código Civil era permitida a forma de sociedade de capital e indústria.

Outro ponto que nos cabe ressaltar refere-se à responsabilidade dos demais sócios perante a sociedade e conseqüentemente perante terceiros. De acordo com o parágrafo 1º, do artigo 1.055, do Código Civil, acima exposto, os demais sócios responderão solidariamente pelo valor exato estimado ao bem ou crédito objeto da integralização. Caberia, dessa forma, aos demais sócios averiguar a liquidez do título oferecido para integralização do capital social, já que se esse título não tiver liquidez, estes sócios arcarão com o prejuízo que porventura a sociedade venha a sofrer.

Um exemplo prático seria a constituição de uma sociedade com uma nota promissória emitida por um sócio de elevado poder econômico para integralização da sua parte no capital social da sociedade, considerando não ser possível a disponibilização de dinheiro ou qualquer outro bem naquele momento. A sociedade terá um crédito contra esse sócio, pessoa física ou jurídica. Esse crédito, inclusive, poderá ser endossado em favor de terceiros pela sociedade.

Há nesse caso, conforme já mencionado, a discussão de que o sócio não estaria dispondo de nenhum patrimônio em favor da sociedade. Contudo, entendemos que o simples fato de estar emitindo um título de crédito, no qual ele passa a ser o devedor da sociedade, sendo esse título plenamente negociável e executável pela sociedade, há uma disposição, ou pelo menos um comprometimento do seu patrimônio em favor de tal sociedade, ou de terceiros, caso o título seja endossado.

Para que o patrimônio dos sócios seja atingido, é necessária a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade que deverá ser requerida em juízo e apenas será concedida se o juiz entender que houve algum ilícito, abuso de poder ou que os sócios agiram em desacordo com os atos da sociedade, prejudicando terceiros.

Conforme determina o artigo 50 do Código Civil: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.

Imaginemos uma integralização de capital social com uma nota promissória de terceiros, que a princípio não haveria qualquer tipo de objeção pela junta comercial. Quem poderia, nesse caso, garantir a liquidez desse título? É muito difícil responder essa questão, ou seja, ninguém, nem mesmo as juntas comerciais, pode assegurar que uma nota promissória emitida por terceiros para integralização do capital social é líquida, enquanto que a de um de seus próprios sócios não o é. Qual a diferença entre executar um título de terceiros e um título do próprio sócio?

Quem sabe a procedência de título de um terceiro?

Estas são perguntas que devem ser respondidas pelos sócios que responderão solidariamente por esta obrigação. Não cabe a junta comercial avaliar a liquidez do título objeto da integralização. Cabe aos sócios verificar a liquidez do título de crédito em questão, tendo sido de emitido por terceiros, ou pelos próprios sócios.

Continuando na mesma linha de raciocínio, o artigo 1.052 do Código Civil prevê: “Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio e restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social”.

Pelo que expusemos acima, ainda que o capital esteja integralizado, a responsabilidade dos demais sócios é solidária pela exata estimativa de valor atribuída ao bem ou crédito objeto da integralização. Portanto, perante terceiros, a simples subscrição do capital não seria a única garantia de solidariedade nas obrigações.

Caso algum terceiro sinta-se prejudicado com o arquivamento do ato, poderá ingressar com oposição ao arquivamento, solicitando o desarquivamento no órgão do registro do comércio competente, sem prejuízo das medidas judiciais cabíveis.

Partindo-se do pressuposto de que os atos deverão ser arquivados para que seja dada publicidade e gerem seus efeitos perante terceiros, se estiver mencionado no contrato social a forma de integralização, não há qualquer risco adicional ao credor dessa sociedade, cabendo a este credor a solicitação de documentos que comprovem a solvência da sociedade.

Diante de todo o exposto, podemos concluir que a integralização de capital social com nota promissória emitida pelo próprio sócio é um ponto a ser discutido com os demais sócios da sociedade que poderão vir a ser acionados, conforme já amplamente discutido. Não cabe a junta comercial avaliar a liquidez do crédito, mas sim os aspectos formais do documento a ser registrado. Caso algum credor vier a ser prejudicado, poderá recorrer ao Judiciário para que tenha o seu dano reparado.

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