Benefícios da pressão

Entrevista: Elizabeth Farina, presidente do Cade

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3 de dezembro de 2006, 6h00

Elizabeth Farina - por SpaccaSpacca" data-GUID="elizabeth_farina.png">Quanto mais contestam as decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) na Justiça, mais o órgão se fortalece. “O fato de as ações aumentarem no Judiciário faz com que tenhamos de fundamentar muito bem as decisões administrativas”, afirma Elizabeth Farina, a presidente do Cade.

E esse não é o único benefício da pressão de ter suas decisões questionadas. De acordo com Elizabeth, o aumento das brigas judiciais fez bem à Procuradoria-Geral do Conselho, liderada por Arthur Badin. “A Procuradoria adotou uma postura mais ativa, presente, vai conversar com o juiz da mesma maneira que o advogado das empresas faz. E essa nova postura nos tem trazido resultados bem favoráveis”, conta.

O Conselho não tem estatísticas sobre quantas de suas decisões são questionadas, mas sua presidente afirma que isso tem se tornado freqüente. “O número de ações contra as decisões do Cade aumentou porque o número de condenações administrativas também cresceu.”

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Elizabeth Farina também afirmou que o sistema de defesa da concorrência do Brasil precisa de uma reforma e apontou algumas mudanças que considera fundamentais, como a análise prévia dos atos de concentração e a criação de um plano de carreira de funcionários.

No comando do Cade até julho de 2008, Elizabeth falou ainda sobre a transação judicial experimentada em um caso recente de processo contra a Microsoft e o uso desse instrumento na efetividade das decisões do órgão.

Elizabeth Farina é doutora em economia pela Universidade de São Paulo, onde recebeu, em 1996, o título de Professor Livre-Docente. Presidente do Cade desde 2004, é também professora titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP desde 2000. Já publicou oito livros, entre eles: Competitividade: Mercado, Estado e Organizações em co-autoria com Paulo Furquim de Azevedo e Maria Sylvia Saes.

Leia a entrevista

ConJur — A atual estrutura brasileira de defesa da concorrência é eficiente?

Elizabeth Farina — Não poderia dizer que é a ideal, mesmo porque eu participei da formulação de um projeto de lei com o objetivo de alterar o desenho do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência [SBDC]. Não é o ideal por uma razão: a independência. O desenho atual faz com que o sistema não tenha a independência principalmente na sua parte de investigação, que é absolutamente fundamental. A atual estrutura também favorece uma certa disputa entre órgãos, porque são dois órgãos que fazem instrução [Secretaria de Direito Econômico e Secretaria de Acompanhamento Econômico] e um que julga [Cade]. O sistema não é adequado, pode ser muito melhorado e é por essa razão que há um projeto de lei no Legislativo desde 2005.

ConJur — O que o projeto modifica na estrutura atual?

Elizabeth Farina — Ele coloca a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) dentro do Cade. Assim, os órgãos de instrução passam a fazer parte do próprio Cade. Nesse sentido, o projeto melhora substancialmente a situação.

ConJur — Que ponto do projeto a senhora destacaria?

Elizabeth Farina — Há duas coisas fundamentais neste projeto. Uma é o redesenho dos órgãos. Outra é que haverá análise prévia dos atos de concentração, não posterior. Isso faz muita diferença na eficiência e na eficácia da análise dos atos de concentração. Poderá evitar situações, como já ocorreu no passado, de depois de vários anos o Cade determinar alguma restrição estrutural, venda de parte dos ativos ou o bloqueio. Outro ponto importante é a previsão de um plano de carreira no Cade.

ConJur — Existe também, há algum tempo, uma proposta de reformulação do regimento interno do Cade. Há previsão de quando isso pode ser aprovado?

Elizabeth Farina — Até o final do ano. A última sessão será no dia 13 de dezembro.

ConJur — E o que essa nova proposta vai mudar em relação ao atual regimento?

Elizabeth Farina — A idéia não é fazer grandes mudanças. Isso nem seria saudável. Só dá para saber se o procedimento funciona depois de colocado em prática. Na verdade, o que o novo regimento vai fazer, exceto por um ou outro ponto, é colocar em um regramento conjunto o procedimento que a gente já tem praticado. Isso significa que teremos um documento que demonstrará como funciona o Cade: o julgamento, a vista em processo, a Procuradoria. É um regimento muito mais minucioso do que o que existe hoje. Até porque o atual regimento foi feito em uma época em que quase não havia processo administrativo dentro do Cade. Quando assumi a presidência do Cade, sofri muito porque todas as dúvidas procedimentais que eu tinha não eram solucionadas pelo regimento. E não é porque foi mal feito. Estava ultrapassado.


ConJur — As decisões do Cade são muito contestadas na Justiça?

Elizabeth Farina — O número de ações contra as decisões do Cade cresceu porque o número de condenações administrativas também cresceu. Isso fez com que a Procuradoria do Cade adotasse uma postura mais ativa, um comportamento mais incisivo em relação às decisões judiciais. Agora o procurador está sempre presente, vai conversar com o juiz da mesma maneira que o advogado das empresas faz. Lógico que as limitações de recursos são grandes. Nós temos uma Procuradoria bem franciscana, mas com muita vontade. E essa nova postura nos tem trazido resultados bem favoráveis.

ConJur — Como funciona essa “nova” Procuradoria?

Elizabeth Farina — Não tem nada de novo nos procedimentos. Na verdade, mudou o comportamento. A atuação faz com que muitas liminares deixem de ser concedidas às empresas. É difícil fazer estatística do que deixou de ser feito, mas muitas liminares deixaram de ser concedidas por conta desta postura. Agora estamos insistindo para que o juiz sempre ouça o Cade antes de conceder uma liminar. Estamos prontos, vamos lá, respondemos rápido. Cada vez mais o juiz vai ser chamado para resolver um caso que envolve o Cade e esse relacionamento deve melhorar.

ConJur — O Cade evoluiu no que diz respeito ao devido processo legal e ao direito de defesa das empresas?

Elizabeth Farina — Avançamos nesse sentido. Há uma preocupação grande com o dia seguinte. O fato de as ações aumentarem no Judiciário faz com que tenhamos de fundamentar muito bem as decisões. Nosso novo regimento acabou até incluindo questões que judicializam um pouco o processo administrativo. O Cade é um órgão administrativo, mas judicante, então vai ter de cumprir as regras do Judiciário. Embora administrativa, a decisão do Cade é de julgamento.

ConJur — O Cade já mudou a interpretação sobre quando é preciso notificar uma fusão ou aquisição?

Elizabeth Farina — A decisão mais importante sobre isso foi tomada em janeiro de 2005, quando o Conselho estabeleceu que empresas com faturamento de R$ 400 milhões dentro do território brasileiro teriam de notificar suas operações. Esta foi a principal mudança. Agora, para dar maior segurança para as empresas, criou-se a figura da súmula. E a primeira súmula editada foi justamente sobre esse critério para notificação do Cade.

ConJur — Esse é um bom critério?

Elizabeth Farina — Novamente, eu respondo: quem participou da discussão do projeto de lei não acha o critério ideal. No projeto, é alterado o critério para apresentação de atos de concentração porque hoje aparece um número de casos maior do que seria necessário analisar.

ConJur — Empresários reclamam que a taxa de notificação, de R$ 45 mil, é alta. O Cade pretende reduzir esse valor?

Elizabeth Farina — Eu adoraria fazer isso, mas não está no projeto de lei. Eu faria a sugestão de que a taxa fosse proporcional. Se existe uma operação pequena e de baixa probabilidade de ter impacto sobre a concorrência, ela vai exigir dos órgãos administradores um esforço — em termos de movimentação da máquina pública — menor do que um caso complexo, associado a valores mais altos. Hoje, a injustiça é que se paga a mesma taxa em todos os casos. A taxa de R$ 45 mil não é cara quando estamos falando de empresas que têm, no mínimo, faturamento de R$ 400 milhões. Estamos falando de grandes empresas e grandes negócios.

ConJur — Recentemente, em uma discussão com a Microsoft, o Cade deu o pontapé inicial em transação judicial. Qual é a sua avaliação sobre a possibilidade de utilizar a transação e qual seria o futuro desse tipo de negociação no Cade?

Elizabeth Farina — Essa transação foi muito bem fundamentada, com previsão legal, e homologada pelo Judiciário. Depois de uma condenação administrativa, as empresas recorreram ao Judiciário contra decisão do Cade. Poderíamos ter de esperar muitos anos para ver aplicada alguma pena à empresa. Na transação judicial, as empresas pagaram R$ 5 milhões para encerrar o processo judicial. E é bom lembrar que o Cade não recebe nada. A multa vai para o fundo de direitos difusos. O Cade tem interesse que a multa seja paga porque multa pendente não é penalidade efetiva.

ConJur — Esse pode ser um passo importante no sentido de dar maior efetividade às decisões do Cade?

Elizabeth Farina — Sem dúvida. É preciso ter critérios muito restritivos para as transações judiciais. Em alguns casos, eu acho que o plenário vai autorizar, em outros, não. Vamos estabelecer limites com a coleção de casos que a jurisprudência vai definir com o tempo.

ConJur — E no caso de cartéis?

Elizabeth Farina — Vários países, inclusive de tradição jurídica semelhante à do Brasil, tem adotado acordos em cartéis. Os Estados Unidos acabaram adotando esse tipo de procedimento como um desenvolvimento dos programas de leniência. Trata-se de acordo em que se troca informação — sem a qual não teria como provar a atuação de um cartel — pela redução da pena a que estaria submetida a empresa. Com esse programa, o número de cartéis identificados, com provas para serem condenados, cresceu muito. É difícil identificar e condenar um cartel, provar este comportamento apenas com indícios econômicos. Só que processar cartel não é trivial. Demanda uma quantidade de recursos muito grande, não só orçamentário, mas principalmente recursos humanos. Por isso autores dizem, e eu concordo, que os acordos em casos de cartéis, de modo geral, têm uma dupla função. Uma é de acelerar os processos e tornar a punição rápida e mais efetiva. Outra é a diminuição do gasto de tempo dos recursos humanos. O Brasil vai ter de contemplar algum tipo de instrumento dessa natureza, pois ainda não tem um especifico. Há um desenvolvimento natural do número de casos resolvidos com base em processos de leniência. Não ainda no Cade, mas nos órgãos de investigação já tem um número razoável.


ConJur — O Cade julga. Seria conveniente que ele pudesse investigar também?

Elizabeth Farina — Legalmente a gente não tem competência. O Cade pode fazer investigação complementar. O que ele não pode é investigar desde o início. O Cade não deveria fazer a instrução total. Não tem previsão legal e é muito difícil mudar isso, porque existe uma visão da classe de juristas e advogados que entende que essas duas coisas têm de ser separadas.

ConJur — De que forma o Cade contribui para o desenvolvimento econômico do país?

Elizabeth Farina — Isso é um debate gigante e a resposta não é trivial. Aliás, o debate é internacional. Nenhum país em desenvolvimento pode se dar ao luxo de usar mal os poucos recursos que tem. E a única maneira que você tem de colocar em movimento toda a inteligência econômica das pessoas que vivem nessa sociedade é ter uma ameaça de concorrência. É o fator mais importante? Não, não é. Só que não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar recursos econômicos. A concorrência ajuda a gente a não desperdiçar estes recursos.

ConJur — Em janeiro de 2007, o país começa a viver o segundo mandato do presidente Lula. Nesse ponto, há sempre muitas expectativas e especulações sobre as mudanças de cargos. A senhora acredita que pode haver grandes mudanças na composição da estrutura do sistema de defesa da concorrência?

Elizabeth Farina — Isto é uma caixa preta para mim, porque o secretário de Direito Econômico [Daniel Goldberg] e sua equipe estão todos em posições de confiança. Como os secretários não têm mandato, não sei dizer. Eu tenho certeza que eu e mais quatro conselheiros vamos ficar até julho de 2008. Isso dá estabilidade e segurança. Mas nenhuma tragédia vai acontecer porque teremos pelo menos 15 gestores que vão fazer o elo de ligação entre a equipe que entra e a que sai e porque temos máquina que funciona dentro da lei e não vai mudar.

ConJur — Pelas decisões que deve tomar, relacionadas a grandes empresas em negociações que envolvem muito dinheiro, o Cade naturalmente sofre pressão. Como o órgão lida com isso?

Elizabeth Farina — O mandato dá uma tranqüilidade gigante. Nós ouvimos todo mundo. É uma característica deste conselho. Não tem uma pessoa que chegue aqui, peça urgência e lhe seja negada. Isso é uma maneira de lidar com as pressões, que são naturais, porque a sociedade é formada de interesses que não são coesos. A maneira como temos de lidar com isso é ouvir todo mundo e procurar tomar uma decisão do ponto de vista mais técnico possível. É claro que nem do ponto de vista jurídico, nem do ponto de vista econômico, existe uma resposta única e simples. Em geral, a resposta é complexa e polêmica. As decisões de sete membros do conselho nem sempre, aliás, na maioria das vezes, não é unânime. O que mostra a complexidade das decisões.

ConJur — O que pesa mais na balança do Cade: a formação de uma grande empresa nacional ou o interesse do consumidor?

Elizabeth Farina — A formação de uma multinacional brasileira pesa zero. Se analisar os votos que foram dados no caso da Ambev, em nenhum há referência ao fato de que a compra formaria uma grande empresa brasileira com potencial para concorrer no exterior. A imprensa se referiu muito a isso porque era o grande debate para o público leigo. Quanto vale esse argumento? Zero. O que a gente protege aqui é a concorrência, cujo objetivo final não é beneficiar o consumidor, mas a sociedade brasileira como um todo. Todos nós, em algum momento, somos produtores de alguma coisa e consumidores de alguma coisa. Então, é em nome de todos nós que o mandato do Cade é exercido.

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