Abuso de direito

SBT é condenado por chamar colecionador de clandestino

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2 de dezembro de 2006, 6h00

O exercício do direito de informar passa a ser ilícito quando causar danos a terceiros. O entendimento é da 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os desembargadores condenaram o SBT a pagar R$ 10 mil de indenização para um colecionador de cartões telefônicos. Ele foi apontado em uma reportagem como vendedor clandestino do material.

A emissora e José Alberto Menezes recorreram ao Tribunal de Justiça gaúcho contra sentença de primeira instância, que fixou a indenização por danos morais em R$ 7 mil. A intenção do SBT era se ver livre da indenização. Já Alberto Menezes queria aumentar o valor da reparação. Foi aceito apenas o pedido dele.

Ele montava sua barraca em Porto Alegre para vender o material que não lhe interessava mais, também para outros colecionadores. Uma das equipes de reportagem do SBT apareceu no local com câmera escondida e conseguiu comprar o cartão dele. Como não havia crédito no material, o repórter especulou que se tratava de contrabando, de acordo com os autos. Outro argumento foi o de que os vendedores não sabiam a origem dos cartões usados.

No final da reportagem, um dos entrevistados disse que aquele era um encontro de colecionadores, mas que também havia venda irregular. Mas do jeito que o material foi exibido, ficava claro que ali só trabalhavam vendedores clandestinos, segundo o colecionador.

A primeira instância considerou que o único objetivo da reportagem foi o da fazer sensacionalismo e mandou a emissora reparar o colecionador. O mesmo entendimento seguiu o desembargador Paulo Antônio Kretzmann, relator do caso.

Voto

“Muito embora os jornalistas e as empresas de comunicação muitas vezes assim não entendam, o direito à honra, à privacidade, e outros atributos da personalidade do indivíduo não cede ante o direito de informar, um direito público, coletivo”, observou o relator.

Kretzmann reconheceu que houve “manifesto abuso de direito” e que a atitude “não deve ser aceita nem tolerada pela ordem jurídica, merecendo veemente repressão”.

O desembargador lembrou, ainda, que “o direito de informar não prescinde do bem informar, não dispensa a prudência, não repele a má-fé, e mesmo a leviandade, a irresponsabilidade. Se a atividade da imprensa é essa, porque vive do fato, da notícia, porque quer vender, quer lucrar, não menos verdade é que corre o risco de informar mal, de causar prejuízo a outrem. Assume com a atividade um risco”.

O SBT já recorreu com Embargos de Declaração. O recurso ainda não foi julgado.

Leia a decisão

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. VEICULAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA. JUÍZO DE VALOR DEPRECIATIVO. ABUSO DE DIREITO RECONHECIDO. DANO CONFIGURADO. Hipótese em que a empresa jornalística, além de apenas noticiar um acontecimento, emitiu juízo depreciativo acerca do autor, com intenção nitidamente sensacionalista. Hipótese em que restou manifesto o abuso de direito, o qual não deve ser aceito nem tolerado pela ordem jurídica, merecendo veemente repressão. Contexto do qual exsurge cristalino o dano moral. QUANTUM INDENIZATÓRIO. Valor da indenização aumentado, consideradas as circunstâncias do caso concreto.

APELAÇÃO DO REÚ IMPROVIDA. RECURSO ADESIVO DO AUTOR PROVIDO.

APELAÇÃO CÍVEL

DÉCIMA CÂMARA CÍVEL: Nº 70013574074

COMARCA DE PORTO ALEGRE

SBT SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO: APELANTE/RECORRIDO

JOSÉ ALBERTO MENEZES MOREIRA: RECORRENTE ADESIVO/APELADO

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento à apelação e em prover o recurso adesivo.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. JORGE ALBERTO SCHREINER PESTANA E DES. PAULO ROBERTO LESSA FRANZ.

DES. PAULO ANTÔNIO KRETZMANN,

Relator.

RELATÓRIO

DES. PAULO ANTÔNIO KRETZMANN (RELATOR)

Adoto o relatório da sentença de fls. 113/23, aditando-o como segue.

O julgador monocrático julgou procedente a demanda indenizatória ajuizada por JOSÉ ALBERTO MENEZES MOREIRA contra SBT SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO, condenando a empresa demandada ao pagamento de indenização, a título de compensação por danos morais, no valor de R$ 6.000,00, corrigidos pelo IGP-M desde a publicação da sentença, acrescidos de juros de 1% ao mês, desde a citação.

Restou a requerida condenada ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios em favor do patrono do demandante, arbitrados em R$ 700,00.

Inconformada, a empresa jornalística apelou (fls. 125/32).

Em suas razões recursais pugnou pela reforma integral da sentença. Alegou que a matéria jornalística mostrou-se fiel aos acontecimentos, não tendo extrapolado o ânimo de narrar. Apontou os artigos 1º e 27, VIII, da Lei de Imprensa, como norteadores de seu agir.


Disse que a reportagem não mencionou o nome do autor, limitando-se a informar à sociedade a ocorrência de venda irregular de cartão telefônico. Ainda salientou que não logrou o demandante produzir qualquer prova que denote a ocorrência dos requisitos do dever de indenizar: conduta ilícita, dano e nexo de causalidade.

De outra parte, requereu fosse reduzido o valor arbitrado na sentença a título de indenização, observados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade.

Devidamente intimado, o apelado apresentou razões recursais, requerendo o improvimento do apelo.

Interposto recurso adesivo pelo autor, no qual é postulada a majoração do quantum indenizatório. Contra-arrazoado o recurso no prazo legal.

Vieram os autos conclusos em 30/11/05.

É o relatório.

Voto

DES. PAULO ANTÔNIO KRETZMANN (RELATOR)

Eminentes Colegas.

Tenho afirmado em julgados que tangem a mesma matéria que a imprensa, seja a escrita, a falada, ou mesmo a desenvolvida através da televisão, possui um poder de manipulação dos fatos muito grande, poder esse que deve ser usado com muito critério e responsabilidade.

Não foi com esse cuidado que agiu a ré.

Muito embora os jornalistas e as empresas de comunicação muitas vezes assim não entendam, o direito à honra, à privacidade, e outros atributos da personalidade do indivíduo – um direito eminentemente individual, personalíssimo, um direito subjetivo inalienável, não cede ante o direito de informar, um direito público, coletivo.

O exercício regular de um direito – informar – passa a ser irregular e, por isso, ilícito, quando não veraz, quando causador de danos a terceiros.

É o caso dos autos.

O direito de informar não prescinde do bem informar; não dispensa a prudência, não repele a má-fé, e mesmo a leviandade, a irresponsabilidade.

Se a atividade da imprensa é essa, porque vive do fato, da notícia, porque quer vender, quer lucrar, não menos verdade é que corre o risco de informar mal, de causar prejuízo a outrem. Assume com a atividade um risco. As conseqüências, imputet sibi.

Assim, comprovada a ação, a sua autoria, que recai na pessoa da ré, pois é parte passiva tanto o veículo de comunicação como o signatário da notícia, da reportagem, e configurado o nexo causal, tem a ré a obrigação de reparar os danos produzidos.

Tais danos, saliente-se, são presumidos e decorrem do próprio fato, dispensando comprovação. Trata-se de dano moral puro.

A indenização por dano moral é admitida pela lei, pela jurisprudência e pela doutrina, atuando como uma forma de reparar o prejuízo causado, e também como meio de desestimular e corrigir o agente causador do dano. É óbvio, não pode servir de instrumento de enriquecimento indevido e injustificado.

No caso concreto, esgrima a apelante com o animus narrandi.

Ora, de fato a ré ultrapassou a barreira do simples narrar, tendo em vista que a chamada inicial da reportagem chama a atenção dos telespectadores para a ilicitude relativa a vendas de cartões telefônicos clandestinos. Todavia da análise do conjunto probatório, fácil de ver que o autor coleciona cartões telefônicos, fazendo parte de clubes de colecionadores, e participando de encontros promovidos pelas entidades afins. Os documentos acostados, fls. 42 e seguintes, corroboram a assertiva.

Fato desconhecido por parte da ré, que ao veicular a reportagem não tomou os devidos cuidados, generalizando, tratando de forma igual os desiguais.

Transcrevo trechos da bem lançada sentença, na qual a Douta Magistrada principia por apreciar as imagens reproduzidas na fita VHS trazida aos autos pelo autor, por oportuno:

“A chamada inicial da reportagem denota exatamente este enfoque:

“Eles não se escondem” (momento em que aparece a imagem do autor com outras pessoas).

“A venda clandestina de cartões telefônicos no centro de Porto Alegre está por toda a parte. O comércio irregular acontece principalmente na Av Borges de Medeiros (…) Fomos verificar como acontece a negociação. Em pouco tempo, conseguimos comprar um cartão e o vendedor avisou ser usado.” (novamente, apareceu a imagem do autor, como sendo o vendedor que estava conversando com o repórter.)

(…)

Durante a reportagem, foram focados diversos policiais no centro da cidade, bem como várias pessoas aglomeradas, dentre elas o autor, o qual efetuou a venda do cartão ao repórter. Neste momento, não houve qualquer distorção na imagem do requerente. Em seguida, aparece a imagem do repórter, com cartão telefônico em mãos, informando que testaria o cartão comprado, afirmando que vendedor (no caso, o autor), teria informado que o cartão era usado. O repórter, após o referido teste, afirmou que esta saber a origem do cartão”.

Com a continuação da reportagem, o repórter Ticiano Kessler, quando tenta continuar a reportagem, é interpelado pelo autor, agora em imagem distorcida, que faz a seguinte pergunta “tá filmando aí?”

Inclusive, ao final da reportagem um senhor afirmou que há encontro de colecionadores e vendas de cartões para colecionismo, mas que há, também, venda irregular de cartões. Entretanto, a reportagem da maneira em que foi veiculada induz à conclusão no sentido de que todas as pessoas que haviam sido filmadas, entre elas o autor, estavam envolvidas de alguma forma em fraudes.”


No caso concreto, aí está o erro da empresa jornalística. Divulgou notícia errada. Contou um fato que não era verdadeiro. Foi sensacionalista.

Esse o entendimento esboçado na lição do Mestre Rui Stoco, em seu Tratado de Responsabilidade Civil, que passo a transcrever:

“A divulgação de fatos verdadeiros como mera representação e projeção do ocorrido no mundo físico e no plano material, através dos meios atualmente à disposição – tais como jornal, revista, televisão, rádio e Internet – como mero repasse de informações obtidas e transmitidas de forma lícita, fiel e assisada, não comporta disceptação, nem se traduz em abuso ou excesso.

(…)

Até mesmo a notícia verdadeira sobre a prisão e o indiciamento de alguém em inquérito policial, ou que esteja sendo objeto de investigação através do Ministério Público ou de Comissão Parlamentar ou, ainda, acusado formalmente em ação penal é legítima e possível

(…)

É certo que uma notícia dessa natureza pode causar constrangimento. Contudo, se divulgada adequadamente, com fidelidade e despida de adjetivação, juízo de valor, acréscimos ou sensacionalismo, nenhum agravo poderá ser invocado.” (Grifei – 5ª ed., Editora RT, 2001, p.1448/1449). “

Destarte, conquanto se fizer presente o animus narrandi, consubstanciado na intenção meramente informativa da notícia prestada, sem que se agregue qualquer juízo de valor, ou mesmo erronia, não se pode invocar o pretenso dever de indenizar.

A narrativa, no caso, não dispensa a fidedignidade.

Todavia, como acima referido, o direito de informação estará legitimado enquanto se mostrar consentâneo com a realidade dos fatos, não podendo ser invocado para tutelar abusos ou despropósitos. Se, no exercício do direito constitucional, o agente for além do que lhe é autorizado, invadindo a esfera patrimonial alheia, configurado estará o ato ilícito e, por conseqüência, na presença dos demais requisitos, o dever de indenizar.

Essa é a situação dos autos.

A imagem do autor restou claramente associada pela reportagem à venda clandestina de cartões.

Nesse contexto, incorreu a empresa jornalística requerida em manifesto abuso de direito, o qual não deve ser aceito nem tolerado pela ordem jurídica, merecendo veemente repressão.

Por oportuno, cita-se a definição de abuso de direito, segundo o magistério de Carvalho Santos (C.C. Interpretado, vol 3º, pág. 341, 13ª edição):

“O abuso de direito, em face do nosso Código, consiste no exercício irregular, no exercício anormal do direito, no exercício do direito com excessos, intencionais ou involuntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem (Plínio Barreto, Ver. Dos Trib. 79/506).”

Sobre o tema, lapidar é a lição de Pontes de Miranda, colacionada por Rui Stoco, in Abuso do Direito e Má-fé Processual, Editora Saraiva, 2ªedição, 2003, p. 56 e 57, verbis: “Quando o legislador percebe que o contorno de um direito é demasiado, ou que a força, ou intensidade, com que se exerce é nociva, ou perigosa a extensão em que se lança, concebe as regras jurídicas que o limitem, que lhe ponham menos avançados os marcos, que lhe tirem um pouco da violência ou do espaço que conquista.”

Duas, portanto, são as condições exigidas para a caracterização dessa figura jurídica: a) a falta de moderação no exercício do direito; b) intencionalidade ou imprudência, má-fé ou temeridade, como causas determinantes dessa falta de moderação.

Foi o que exatamente ocorreu. A ré extrapolou o seu direito de informar na matéria jornalística.

Em tal contexto, devem ser rechaçadas as alegações da recorrente no sentido de que não teriam restado provados os requisitos do dever de indenizar.

Como exaustivamente discorrido supra, tendo a ré incorrido em inequívoco abuso de direito, caracterizado estará o ato ilícito por ela perpetrado.

De outra parte, o autor logrou demonstrar os prejuízos e dissabores que advieram do evento danoso.

O nexo causal, por conseguinte, exsurge absolutamente cristalino de tal contexto, fazendo incidir o dever de indenizar.

O abuso do direito, que enseja reparação, assenta-se no juízo depreciativo atribuído ao recorrido em virtude dos acontecimentos.

Consigna-se que a indenização pelo dano moral deve corresponder à realidade dos fatos, pois objetiva reparar os prejuízos da vítima, bem como evitar a prática reiterada dos atos lesivos.

Sustenta Wilson de Melo da Silva (in O Dano Moral e sua Reparação , Nº 224, páginas 501/504), que: “O patrimônio moral decorre dos bens da alma e os danos que dele se originam, singelamente, danos da alma, para usar a expressão do evangelista São Mateus, lembrada por Fischer e reproduzida por Aguiar Dias. Os alicerces sobre que se firmam as danos morais são puramente espirituais”.

Em relação à fixação do montante indenizatório, ensina Wilson Melo da Silva, em “O Dano Moral e sua Reparação” (n.º 231, pág. 513, 2ª edição), que:

“Para a fixação, em dinheiro, do quantum da indenização, o julgador haveria de atentar para o tipo médio do homem sensível da classe.”

Segue conceituando:

“…seria aquele cidadão ideal que tivesse a igual distância do estóico ou do homem de coração seco de que fala Ripert, e do homem de sensibilidade extremada e doentia.”

Assim é que, cotejados vários elementos, múltiplas variáveis, e tendo como padrão do legitimado à indenização o homo medius, devem ser analisadas as circunstâncias gerais e especiais do caso em concreto, a saber: gravidade do dano, o comportamento do ofensor e do ofendido – dolo ou culpa, sua posição social e econômica, a repercussão do fato, à vista da maior ou menor publicidade, a capacidade de absorção por parte da vítima, etc.

Assim, e principalmente considerando a capacidade econômica da demandada, aumento o montante indenizatório para R$ 10.000,00.

Nesse passo, improvejo o apelo e dou provimento ao adesivo.

É como voto.

DES. JORGE ALBERTO SCHREINER PESTANA (REVISOR) – De acordo.

DES. PAULO ROBERTO LESSA FRANZ – De acordo.

DES. PAULO ANTÔNIO KRETZMANN – Presidente – Apelação Cível nº 70013574074, Comarca de Porto Alegre: “NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO E PROVERAM O RECURSO ADESIVO. UNÂNIME.”

Julgador(a) de 1º Grau: AMITA ANTONIA LEAO BARCELLOS

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