Inversão de papéis

Quem deve defender promotor é advogado, não o MP

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2 de dezembro de 2006, 6h00

Ainda que uma das partes do processo seja um promotor, acusado de algo no exercício de sua função, sua defesa tem de ser feita por advogados, e não pelos colegas de profissão. Com esse entendimento a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, barrou a tentativa do Ministério Público de Minas Gerais de exercer um papel que não é seu.

A Associação Brasileira de Criadores de Zebu de Uberaba (MG) entrou com pedido de Mandado de Segurança contra ato de um promotor de Uberaba. O MP mineiro, exercendo o papel de defensor, tentou fazer com que fosse garantido ao seu membro o foro privilegiado no Tribunal de Justiça.

Com o recurso em mãos, a ministra Cármen Lúcia ditou o que está expresso na Constituição — membro do MP está proibido de exercer a advocacia — e no Estatuto da Advocacia — esta é privativa do advogado. Se todo cidadão tem de ser representado perante o juiz por um advogado, disse a ministra, por que com os promotores deveria ser diferente?

“Não se tem, em qualquer norma jurídica vigente no país, autorização legal para que se afaste da vedação constitucional da advocacia o membro do Ministério Público. Não compete a ele distinguir-se de qualquer cidadão”, afirmou.

Cármen Lúcia ressaltou que “não é possível admitir-se que os Procuradores de Justiça, membros da nobre carreira do Ministério Público, e terminante e taxativamente proibidos de advogar, exerçam, como pretendido no presente caso, desempenhar função que lhes é, expressa, literal e exemplarmente, vedada por norma constitucional”.

Mesmo se a assinatura do recurso que chegou ao Supremo não fosse de promotores, mas de advogados, o pedido do MP teria sido negado. Os defensores-promotores esqueceram de anexar no pedido a cópia da decisão do Tribunal de Justiça mineiro recorrida — a que considerou que a competência para analisar o processo da associação e o promotor era da primeira instância.

“Não há como sequer mensurar, portanto, as conseqüências de uma decisão acautelatória determinando a sustação dos efeitos de acórdão proferido por Tribunal de Justiça estadual, pois seus termos não se dão a conhecer na espécie”, explicou a ministra.

Mas, mesmo se os promotores fossem advogados e a cópia da decisão estivesse anexada, ainda assim a ministra teria negado o pedido. Ela não encontrou os requisitos necessários para a concessão de liminar. Os riscos ordinários da falta de eficácia suspensiva do recurso extraordinário são comuns para todos que se valem desse recurso, explicou, e não justificam concessão de liminar.

Veja a decisão

AÇÃO CAUTELAR N°. 1450

PROCED: MINAS GERAIS

RELATOR: MIN. CÁRMEN LÚCIA

REQTE.(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

REQDO.(A/S): ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CRIADORES DE ZEBU DE UBERABA

ADV.(A/S): DIAMANTINO SILVA FILHO E OUTRO(A/S)

DECISÃO

AÇÃO CAUTELAR – ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO EXTRAORDINÁRIO — CARÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL REGULAR – AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA A LIMINAR – INSUBSISTÊNCIA DO PEDIDO DE MÉRITO — SEGUIMENTO NEGADO.

RELATÓRIO

1. Trata-se de Ação Cautelar, com pedido de medida liminar, ajuizada neste Supremo Tribunal pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em 10 de novembro de 2006, com fundamento nos arts. 21, IV e V, e 304 do RISTF, “com o intuito de obter efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário n° 1.0000.05.422943-0/000 aviado contra o acórdão proferido pela Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.”

O CASO

2. A instituição autora, “Ministério Público do Estado de Minas Gerais”, narra que a Requerida, Associação Brasileira de Criadores de Zebu de Uberaba, impetrou mandado de segurança contra ato do 5º Promotor de Justiça da Comarca de Uberaba — MG, para o qual o juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de Uberaba se declarou incompetente, remetendo os autos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

A Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais afirmou a competência do juízo de primeira instância, devolvendo os autos para o prosseguimento do feito.

Não obstante aquela decisão, o Ministério Público mineiro interpôs recurso extraordinário contra o acórdão prolatado, o qual foi admitido.

Devolvido a este Supremo Tribunal em seu efeito legal próprio — o devolutivo — avia a presente Ação o Ministério Público estadual requerendo seja emprestado também efeito suspensivo, alegando perigar a demora no julgamento do recurso extraordinário, pois durante o seu processamento poderia haver a “prolação de atos decisórios pelo Juiz de Direito (1ª instância)” (fls. 05).

Afirma ser pacífica a jurisprudência deste Tribunal Supremo na possibilidade do “manejo de demandas cautelares para conferir efeito suspensivo a Recurso Extraordinário interposto e admitido na origem, desde que presentes os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora”(fls. 05).


3. Em face do que expõe, requer “seja concedida liminar inaudita altera pars para atribuir efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário…”, bem como “a procedência da demanda, para se conferir, em caráter definitivo, o efeito suspensivo ao Recurso Extraordinário, suspendendo-se a tramitação do mandado de segurança até que essa Corte Suprema determine, definitivamente, qual o órgão do Poder Judiciário competente para apreciar e julgar a demanda mandamental” (fls. 09).

4. Os autos vieram-me conclusos em 10 de novembro de 2006 (fl. 42).

Apreciada a questão posta, DECIDO.

Ausência de elementos essenciais na ação cautelar

5. A instituição autora busca obter efeito suspensivo ao recurso extraordinário ajuizado neste Supremo Tribunal e, por conseqüência, quer ver sustados os efeitos da decisão judicial proferida no mandado de segurança impetrado e no qual decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais caber ao juiz de primeira instância decidir sobre o ato nele questionado.

Os autos trazem cópias da decisão do Tribunal de Justiça admitindo o recurso extraordinário e das certidões sobre as publicações. Mas deles não consta cópia da decisão recorrida.

6. O teor do que teria, se fosse o caso — e não é —, de ser suspenso por se conter no acórdão recorrido não é juntado aos autos.

Não há como sequer mensurar, portanto, as conseqüências de uma decisão acautelatória determinando a sustação dos efeitos de acórdão proferido por Tribunal de Justiça Estadual, pois seus termos não se dão a conhecer na espécie. Não se vislumbra situação processual plausível a autorizar, portanto, o deferimento da liminar na forma pleiteada.

Ausência de regularidade processual

7. Ainda que não houvesse o óbice acima, outro haveria a impedir, tal como se põe, o prosseguimento da ação proposta. Trata-se da irregularidade da representação processual para a propositura.

Tem-se, na inicial apresentada, assinatura não de advogados constituídos, na forma constitucional e legalmente determinada para o processamento das ações, mas dos eminentes Procuradores de Justiça, Dra. Elaine Martins Parise (Procuradora-Geral Adjunta Jurídica) e Dr. Renato Franco de Almeida (Promotor de Justiça e Assessor Especial do Ministério Público Estadual).

Nem é matéria sujeita a controvérsia que a representação processual é exclusiva de advogados no Brasil, ressalvadas as hipóteses em que se tenha ação penal ou civil conferida, no sistema jurídico, à legitimidade ativa do Ministério Público (arts. 129, incs. I, III, IV e V combinado com 133, todos da Constituição da República).

De se observar, por igual, a proibição constitucional da advocacia por membro do Ministério Público (art. 128, § 5º, inc. II, alínea b, da Constituição do Brasil, além de ser imperativo dar cumprimento à legislação processual civil (arts. 7º a 13, do Código de Processo Civil).

Não é possível admitir-se que os Procuradores de Justiça, membros da nobre carreira do Ministério Público, e terminante e taxativamente proibidos de advogar, exerçam, como pretendido no presente caso, desempenhar função que lhes é, expressa, literal e exemplarmente, vedada por norma constitucional.

Procurador de Justiça ou Promotor Advogado não é, e por isso mesmo não pode exercer a representação judicial.

O que se tem, no caso presente, é uma ação judicial — ação cautelar — na qual se buscam prerrogativas alegadas ou pretendidas pelo Ministério Público. Não se tem, em qualquer norma jurídica vigente no País, autorização legal para que se afaste da vedação constitucional da advocacia o membro do Ministério Público. Não compete a ele distinguir-se de qualquer cidadão ou entidade de direito público ou particular, que, ao buscar os seus direitos, tem de se valer de advogado para fazer-se representar perante o Juiz competente.

É o que se estampa nos arts. 1º e 3º da Lei n. 8.906/93, denominado “Estatuto da Advocacia”:

“Art. 1º São atividades privativas de advocacia:

I – a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;

II – as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

§ 1º Não se inclui na atividade privativa de advocacia a impetração de habeas corpus em qualquer instância ou tribunal.”

“Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),

§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.”


E tudo quanto posto na Constituição da República, ao atribuir a exclusividade da advocacia aos profissionais específicos — excluídos os membros do Ministério Público — é para se poder fazer a exigência a esses profissionais da qualificação que lhe é necessária e de que se ressente uma postulação quando apresentada por quem não tenha a necessária qualificação técnica, em que pese possa ser o não advogado dotado das melhores condições intelectuais jurídicas para outros desempenhos, como, tem-se por certo, ocorre no caso presente.

Ademais, qualquer problema ou dificuldade que se apresente pelo advogado submete o profissional às exigências éticas perante a instituição específica, que é a Ordem dos Advogados do Brasil. Igual não poderia ser o deslinde se permitisse o desempenho daquela atividade específica e constitucionalmente afirmada a outrem que não, exclusivamente, ao advogado.

Inegável, portanto, a irregularidade processual havida na espécie, que estaria a merecer a aplicação do art. 13 do Código de Processo Civil, se os outros óbices não estivessem a impedir o prosseguimento da presente ação.

Ausência dos requisitos referentes à plausibilidade do direito

8. Não se pode atestar, na espécie, a alegada fumaça do bom direito, porque carentes os autos dos elementos necessários para a sua comprovação, conforme acima exposto.

9. Quanto ao perigo da demora, cabe aqui anotar o que decidiu o Ministro Sepúlveda Pertence na Petição 2.218-DF:

“Não se podem negar os percalços acarretados a uma empresa …, na pendência de um recurso desprovido, por força de lei de efeito suspensivo, e que lhe discuta a legitimidade. Recordam-nos as requerentes, no esforço de demonstrar a ocorrência do periculum in mora, pressuposto necessário da medida cautelar que pleiteiam. É necessário ponderar, entretanto, que se trata de inconvenientes comuns a todos quantos se vejam sujeitos às conseqüências do efeito meramente devolutivo dos recursos extraordinários, agravados, é certo, se trata da discussão acerca de obrigações tributárias de contribuinte dedicado a atividades empresariais. Não bastam, portanto, tais riscos ordinários da falta de eficácia suspensiva do recurso para autorizar que, esvaziando a lei que o denega, se prodigalizem medidas cautelares que o outorguem. A ser assim, a concessão do efeito suspensivo haveria de ser universalmente concedida a quantas empresas interpusessem recurso extraordinário ou especial de decisões que lhes contrariem as pretensões em questões tributárias” (DJ 13.2.2001).

No caso que ora se apresenta, o juiz de primeira instância reconheceu, inicialmente, a procedência do questionamento quanto à competência para a prática dos atos processuais válidos e remeteu os autos ao Tribunal de Justiça.

Esse eminente órgão é que, em sede decisória, já então em segunda inst. Esse eminente órgão é que, em sede decisória, já então em segunda instância, entendeu pelo não provimento do quanto postulado pelo digno Ministério Público mineiro.

Como, então, considerar-se existente a fumaça de bom direito, tal como alegado, ou riscos pela demora da prestação jurisdicional — que, aliás, teve a sua prestação duas vezes ofertada — a impor uma suspensão de efeitos que a lei vigente não admite, senão em situações excepcionalíssimas?

Bem dita a frase, de óbvio acerto, como usual na palavra do eminente Decano do Supremo Tribunal, Ministro Sepúlveda Pertence, ao afirmar que os riscos ordinários da falta de eficácia suspensiva do recurso extraordinário hão de ser por todos, igualmente, assumidos, pois o contrário seria prodigalizar medidas cautelares e botar abaixo o sistema de norma que o nega para os casos comuns, como o que aqui se apresenta.

DECISÃO.

10. Do quanto exposto, conclui-se que não apenas os pressupostos para a concessão da liminar não se apresentam na espécie como ainda que, sendo esse o único pleito formulado pela instituição autora, não há subsistência da ação para outros fins, nem razões jurídicas que permitam o seu prosseguimento para o que não se dá a cumprir a ação com os argumentos e o pedido formulado, por quem sequer poderia estar postulando diretamente em juízo em ações como a que se ajuíza.

11. Assim, nego seguimento à ação, ficando prejudicada a apreciação da liminar (art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).

Publique-se.

Brasília, 15 de novembro de 2006.

Ministra CÁRMEN LÚCIA

Relatora

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