Prova do fracasso

Recuperação judicial da Varig mostra insucesso da lei

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1 de dezembro de 2006, 6h00

O desastroso processo de recuperação judicial da Varig inaugura novo capítulo de aberrações e inversões jurídicas e legais, mais uma vez imputando aos trabalhadores da empresa os ônus do insucesso total da aplicação da nova lei.

Inicialmente, vale apontar que a recuperação judicial da Varig, ou melhor, o seu resultado refletiu diretamente o insucesso completo da aplicação prática da lei. Nenhum dos objetivos colimados na lei de recuperação foi atingido. Milhares de trabalhadores ficaram desempregados. Os credores assistiram a boa parte de seus créditos sublimarem em incerteza e iliquidez. A “Varig S/A” ficou sem aviões, sem linhas, sem pilotos, sem comissários.

Esta constatação é a verificação concreta do quanto incorreta foi a aplicação da lei abstrata ao caso concreto Varig. Afinal, como poderia um processo de “recuperação” de uma empresa deixá-la despida de todos seus ativos operacionais ao fim e ao cabo? E foi exatamente isto que se deu com a venda da chamada “unidade produtiva Varig”, já que, operacionalmente, o que sobrou com a Varig S/A foi apenas o seu Centro de Treinamento, nada mais.

Agora quer-se imputar aos trabalhadores da companhia mais um dos ônus deste infeliz processo, não bastasse eles já haverem suportado vários meses de trabalho sem salários, rescisões contratuais sem indenização devida e, em muitos casos, a impossibilidade de sacar seus FGTS. Isto sem falar na teratológica situação jurídica de mais de 700 funcionários que estão na folha de pagamentos, recebem contracheques, mas são impedidos de trabalhar, e tampouco recebem salários.

As violações às proteções existentes na seara do Direito do Trabalho são incontáveis. Vários princípios constitucionais foram violados, como o princípio da proteção ao trabalho, da justa remuneração, da continuidade da relação de emprego e do próprio direito ao trabalho digno, no caso daqueles funcionários que estão no “buraco negro” acima citado.

Agora inaugura-se novo capítulo, pois o juízo da 8ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro intimou o sindicato de aeronautas a convocar uma assembléia para discutir um suposto Acordo Coletivo de Trabalho, lastreando-se no fato de que a realização de tal acordo estaria previsto no item 47 do Plano de Recuperação Judicial aprovado na última Assembléia Geral de Credores, com voto favorável dos representantes sindicais.

A assembléia de trabalhadores é uma das manifestações mais diretas e expressas da democracia. Traduz o direito sagrado de reunião pacífica, irradia abertamente o direito de livre expressão e, nas palavras de Jurgen Habermas, um dos maiores filósofos de nossos tempos, estimula e enriquece, pelo debate, as relações que compõem e enrijecem o tecido social que sustenta nossa forma de organização.

Por outro lado, Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) é um contrato entre empresa e seus funcionários. Resulta de um processo negocial, normalmente longo, com ampla participação da categoria e que reflete, tão somente, conquistas adicionais para os empregados, em termos de benefícios em remuneração e condições de trabalho, além daquilo que a lei já prevê. As poucas exceções possíveis a estas balizas estabelecidas conceitualmente para o ACT estão assim previstas no artigo 7º da Constituição Federal. Isto porque o constituinte compreendeu que, em certas hipóteses, como na retração da atividade industrial, é mais benéfico para a coletividade de empregados preservar os postos de trabalho, ainda que com salários ou jornada reduzidos, do que suportar demissões coletivas.

Desta forma, um ACT que objetiva trocar verbas salariais, protegidas constitucionalmente, por créditos ilíquidos e incertos, como no caso Varig, representa uma aberração jurídica, insuportável perante o ordenamento jurídico brasileiro. Aliás, como as normas trabalhistas possuem natureza cogente, o objeto deste malsinado ACT é nulo de pleno direito (Novo Código Civil, art. 166, VI; CLT, art. 9º)

Adicionalmente, se não houve negociação entre a empresa e seus empregados, não pode haver um ACT, pois este é resultado daquela. E, com efeito, sequer tal negociação poderia ter começado, porque, ao se considerar que o ACT ora em discussão versa sobre perda de direitos dos empregados, tivesse tal negociação ocorrida, haveria traição de mandato por parte dos representantes sindicais.

E mais: há grave problema relativo à “capacidade” das partes. Isto porque, como muitos dos funcionários da companhia foram demitidos, eles não podem votar em Acordo Coletivo de Trabalho, cujo único objeto possível, conforme já salientado, é a melhoria de condições de trabalho e não a transação ilegal de direitos irrenunciáveis. Portanto, é impossível votarem em algo que irá modificar seus contratos de trabalho se eles não mais existem. Por outro lado, os funcionários que continuam trabalhando são “incapazes” para deliberar sobre os direitos de outrem, o que inexoravelmente ocorrerá caso decidam pela novação dos créditos trabalhistas já vencidos em créditos de ICMS e derivados de ação judicial (defasagem tarifária) sequer transitada em julgado; isto é, repise-se, incertos no segundo caso e ilíquidos em ambos.

Por fim, é de se atentar para o fato de que a Constituição Federal, ao repartir competências entre e dentro dos Poderes da República, atribui à Justiça Trabalhista jurisdição exclusiva para os conflitos desta natureza, entre empregados e empregadores, sendo certo que a Emenda Constitucional 45 atribuiu também à Justiça laboral a competência para processar e julgar dissídios entre empregados e seus sindicatos. Assim, a Justiça Cível é manifestamente incompetente para ordenar convocação de assembléia, seja pela ótica externa, uma vez que o ACT se estabelece entre empregados e empresa; seja pelo âmbito interno, já que também as relações entre membros de uma categoria e seu sindicato, como no caso de assembléia, são da competência improrrogável da Justiça do Trabalho.

Mais ainda, no âmbito da própria Justiça laboral, há rito especial para ser seguido na discussão de um ACT, conforme previsto nos artigos 611 a 625 da CLT, ali estando previstos não só os passos como as conseqüências de eventual rejeição das proposições, qual seja, um dissídio coletivo da categoria, sempre na Justiça do Trabalho, que é a única competente para a questão, tanto pelas regras constitucionais como pelo texto expresso do artigo 625 da CLT.

Mais ainda, além da óbvia incompetência da Justiça Estadual, também não é nem mesmo possível ao Poder Judiciário investir-se de qualquer poder coercitivo sobre os trabalhadores para obrigá-los a votar ACT, tanto que a própria lei aplicável ditou os efeitos da recusa: a instauração do dissídio coletivo e nada além disto.

Aliás, ao se falar em separação de Poderes, insta recordar que neste processo não há anjos, como muitos possam haver suposto. Ensinamento antigo este, pois foi senão sobre a necessidade de impor limites aos governantes, que são homens, e não anjos, que assinalou Madison, em prestigiada passagem do Federalista nº 51, a respeito da separação de Poderes: “se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se coubesse aos anjos governar os homens, não seria necessário controle interno, nem externo sobre o governo”.

Portanto, pretender obrigar um sindicato a convocar uma assembléia representa um ataque gravíssimo e inaceitável contra o próprio Estado Democrático de Direito, pois transforma uma das mais sagradas liberdades fundamentais do cidadão em obrigação imposta pelo Estado. E o que é pior, viola a repartição de competências, tão cara para a democracia, pois esta constitui um de seus mais importantes pilares: os checks and balances, a separação de Poderes. Como neste caso, se trata de uma proposta de ACT manifestamente deteriorante dos direitos dos trabalhadores, entre eles o direito à remuneração em moeda corrente, há também assustadora infração de natureza material.

Nada obstante, se representantes sindicais contrataram tal obrigação em assembléia de credores, o fizeram em excesso de mandato (ultra vires), não somente porque não consultaram seus representados, a priori, como exige a lei nestes assuntos, como também porque o maléfico conteúdo de tal ACT não se coaduna com a vocação da representação sindical legítima, nem tampouco com as limitações legais e constitucionais existentes. E, destarte, são eles, e apenas eles, pessoal e civilmente responsáveis pelos danos futuros e pretéritos que venham a ocorrer contra o processo de recuperação, contra as empresas recuperandas e contra os credores, entre eles os próprios trabalhadores, pelas manifestações que hajam realizado e pelas obrigações que hajam contratado inadequadamente, na forma do Novo Código Civil (artigos. 47 c/c 1.015, 149, 186).

Mas, não se queira, mais uma vez, condenar os trabalhadores da Varig à situação ainda mais esdrúxula e aviltante. Nem tampouco se pretenda dar rumos inovadores, porém novamente incautos, à interpretação da Lei de Recuperação Judicial, porque, como já afirmado alhures, necessário se faz que ela seja lida conforme a Constituição e não de forma contrária.

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