Veredicto sem fim

Homem é condenado aos 63 anos por crime cometido aos 33

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29 de agosto de 2006, 12h23

Em julho de 1976, quando o crime ocorreu, João Gomes de Oliveira, o réu, era um jovem de 33 anos, cozinheiro do navio Rio Grande do Norte. Adyr Vieira, a vítima, então com 46 anos, era o imediato da embarcação, hierarquicamente superior a João. Uma briga entre os dois, duas facadas desferidas e o destino de João estaria selado para o resto da vida.

Nesta segunda-feira (28/8), 30 anos depois dos fatos, João foi a Júri popular. Foi condenado a cinco anos de reclusão em regime semi-aberto, com direito a apelar em liberdade. Se transitar em julgado, a pena não será executada porque está prescrita. Para penas inferiores a oito anos, a prescrição ocorre em 12 anos.

Nem para João, nem para Adyr Vieira, a vítima, a vida vai mudar com a decisão tardia da Justiça. Como a sentença, o julgamento em si também teve um tom surrealista. Quando o crime ocorreu, nem a juíza da 1ª Vara Federal Criminal, Paula Mantovani Avelino, que presidiu o júri, nem o procurador responsável pelo caso, Roberto Antônio Diana, sabiam sequer falar. Diana tem 31 anos e a juíza, 32.

Todas as testemunhas do caso já estão mortas. Se estivessem vivas, possivelmente não lembrariam os detalhes do acontecido. A vítima, hoje com 76 anos, é a única testemunha tanto de acusação como de defesa. Mas não se lembra mais de quase nada. Seu relato no Tribunal do Júri, vago e impreciso, não durou mais que 10 minutos.

O acusado ainda se lembra de tudo. O fato aconteceu em 1976, em alto-mar, a bordo do navio Rio Grande do Norte, onde João era o cozinheiro e Vieira o imediato. Vieira queria um bife para comer no lugar da dobradinha servida à tripulação. Pediu a João que o preparasse. O cozinheiro recusou-se. Só recebia ordens do comandante. Os dois se desentenderam. Vieira deu um empurrão. João respondeu com dois golpes da faca que tinha à mão. Vieira sobreviveu.

De réu, João tornou-se vítima da morosidade do Judiciário. Representado por um defensor público — não um, mas vários que se sucederam ao longo do tempo — teve oportunidade, durante esses longos anos, de rever o crime, se arrepender, desarrepender, foi intimado, depôs e, principalmente, esperou. Sua vida ficou marcada não pelo crime em si, mas pela espera do julgamento e da sentença. Neste ínterim casou, teve filhos, se aposentou e ficou viúvo. Mas faltou Justiça.

A lentidão do julgamento é atribuída, neste caso, a sucessivos conflitos de competência (o processo foi distribuído e redistribuído cinco vezes), já que o crime ocorreu em alto-mar. Os autos foram para a Justiça Estadual e depois circularam pela Justiça Federal de Santos (litoral paulista) e São Paulo. Só chegaram à 1ª Vara Federal Criminal em 2004, 28 anos depois do recebimento da denúncia.

De acordo com o procurador responsável pelo caso, Roberto Antônio Diana, a dificuldade de localizar o réu também favoreceu a morosidade do julgamento. “Ele forneceu um endereço inexistente.” O procurador afirma que não recorrerá da pena para tentar fazer o réu cumpri-la. Se ele fosse condenado a 12 anos e um dia, não estaria prescrita e ele seria preso. “Neste caso, a punição é moral. Mas é importante ressaltar que é um caso atípico e não retrata o quadro da Justiça Federal”, diz.

“Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.” A frase de Rui Barbosa se ajusta sob medida ao caso. O veredicto do Tribunal do Júri não tem mais nenhuma conexão com a realidade, não teve nenhum significado para a vítima, dificilmente terá algum efeito para o réu.

Leia a íntegra da decisão

1ª Vara Criminal Federal, do Júri e das Execuções Penais da 1ª Subseção Judiciária de São Paulo.

Ação Penal.

Processo nº 2004.03.99.023468-2

Autora: JUSTIÇA PÚBLICA.

Réu: JOÃO GOMES DE OLIVEIRA.

SENTENÇA

Vistos, etc.

Trata-se de denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal, em face de JOÃO GOMES DE OLIVEIRA, como incurso nas penas do artigo 121, §2º, incisos II e IV, c.c. 14, inciso II e parágrafo único, do Código Penal (fls. 02/03).

Narra a inicial, em síntese, que o denunciado, no dia 20 de julho de 1976, por volta das 17h30 min, a bordo do navio Rio Grande do Norte, que se encontrava em alto mar, tentou contra a vida de Adyr Vieira, mediante a utilização de uma faca de cozinha, produzindo-lhe lesões de natureza grave, as quais só não culminaram em sua morte por circunstâncias alheias à vontade do primeiro.

Consta da peça de acusação, ainda, que João, após ter sido repreendido pela vítima, a qual ocupava a função de imediato do navio, procurou-a, depois de encerrada a discussão, e desferiu-lhe, de surpresa, duas facadas na região abdominal, sem lhe possibilitar a defesa, jogando a faca ao mar logo em seguida.

A denúncia foi recebida no dia 17 de março de 1977, conforme decisão de fl. 54v.

Em 09 de novembro de 1994, foi proferida sentença de pronúncia e determinada a expedição de mandado de prisão em desfavor de João (fls. 282/287).

O réu foi intimado da sentença de pronúncia à fl. 512v, tendo interposto, por seu defensor, recurso em sentido estrito às fls. 538/542, ao qual foi negado provimento (fls. 579/591), por acórdão transitado em julgado no dia 29 de junho de 2005 (fl. 602).

A acusação ofereceu o libelo-crime acusatório às fls. 518/519, recebido pelo Juízo à fl. 603. A contrariedade ao libelo foi apresentada às fls. 614/616, tendo sido designado o dia 28 de agosto de 2006 para realização do Julgamento (fl. 629), decisão da qual o réu foi intimado pessoalmente (fl. 656v).

As folhas de antecedentes, informações criminais e demais certidões foram juntadas às fls. 45, 60, 63, 64, 66/68, 397/399, 401/403, 405, 406, 415, 416, 740/741, 742/745 e 746/747.

É o relatório.

Decido.

Submetido o réu a julgamento, o Conselho de Sentença reconheceu a autoria e a figura da tentativa, tendo afastado a excludente da legítima defesa. Reconheceu, também, o privilégio previsto no artigo 121, § 1º, a qualificadora prevista no § 2º, inciso IV, do mesmo artigo e a existência de circunstância atenuante.

Portanto, os senhores jurados entenderam que o acusado foi autor de um crime de homicídio tentado, com incidência de privilégio, qualificadora de caráter objetivo e atenuante genérica.

Dispositivo

Diante do exposto, condeno o réu João Gomes de Oliveira às sanções previstas no art. 121, §§ 1º e 2º, inciso IV c.c. artigo 14, inciso II e parágrafo único, todos do Código Penal.

Passo, portanto, à dosimetria da pena.

a) Em relação às circunstâncias judiciais (art. 59), o acusado é culpável, já que tinha conhecimento do caráter ilícito do fato e condições de autodeterminação. Apresentava e apresenta sanidade mental que lhe permitia não realizar a conduta ilícita, sendo exigível que agisse de modo diverso. Não há nos autos qualquer prova da existência de causa excludente da culpabilidade.

Nesse tópico, tenho que a mencionada culpabilidade deve ser considerada em seu grau normal, não havendo motivos que determinem acentuação.

No que concerne aos antecedentes, não possui o réu registros negativos e nem foram colhidos elementos que permitam a avaliação de sua personalidade e conduta social, não sendo o caso de se presumir comportamento desfavorável pela sua inexistência, já que, com isso, violar-se-ia o princípio segundo o qual, na dúvida acerca de qualquer fato, decide-se a favor do acusado.

Os motivos do crime são normais à espécie. As conseqüências são próprias da infração em questão. A vítima não favoreceu a ocorrência dos fatos delitivos.

Em face do acima exposto, fixo a pena base privativa de liberdade para o crime em 12 (doze) anos de reclusão.

b) Na segunda fase da aplicação da pena, reconheceu o Conselho de Sentença a existência de atenuante.

Contudo, observo que a pena-base foi fixada no mínimo legal previsto na norma incriminadora, não sendo possível ao Juízo diminuí-la para aquém dos limites fixados pelo próprio legislador, especialmente tendo em vista que as atenuantes não fazem parte da estrutura do tipo penal, ao contrário do que ocorre com as causas de aumento ou diminuição.

Ressalto que tal posicionamento está em consonância com a Súmula nº 231, do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal (22.09.1999)”.

Por conseguinte, mantenho a pena, nessa fase, em 12 (doze) anos de reclusão.

c) Na terceira fase da aplicação da pena, devem ser consideradas as causas de diminuição previstas nos artigos 14, inciso II e 121, § 1º, do Código Penal.

Em relação à tentativa, tenho que o agente avançou de maneira considerável na prática dos atos de execução do crime, razão pela qual entendo deva a pena ser diminuída de metade, em valor intermediário entre os fixados no parágrafo único do artigo 14.

No que concerne ao privilégio, diminuo a pena de 1/6, uma vez que o acusado, ainda que tenha agido movido por violenta emoção, reagiu de maneira desproporcional à provocação da vítima.

Assim, fixo a pena privativa de liberdade definitiva em 5 (cinco) anos de reclusão, estabelecendo, ainda, o regime inicial semi-aberto, nos termos do art. 33, caput, e §2º, “b”, do Código Penal.

Em face do montante acima fixado, são incabíveis a substituição da pena corporal por restritivas de direitos ou aplicação das regras referentes à suspensão condicional da pena.

Tratando-se de acusado primário, que não ostenta antecedentes negativos, concedo-lhe o direito de apelar em liberdade.

Custas ex lege.

Após o trânsito em julgado da presente sentença para o Ministério Público Federal, voltem-me os autos conclusos para apreciação de eventual ocorrência de prescrição retroativa.

Não ocorrendo a hipótese acima, registre-se o nome do réu no rol dos culpados.

Lida a presente sentença em plenário, dá-se por publicada e intimadas as partes. Registre-se e comunique-se.

São Paulo, 28 de agosto de 2006.

PAULA MANTOVANI AVELINO

Juíza Federal Substituta

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