Orgulho pela profissão

Advogado envolvido com o crime é exceção das exceções

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15 de agosto de 2006, 18h51

Há quase dois séculos — quando a Carta de Lei de 11 de agosto de 1827 foi sancionada por D. Pedro I, criando os cursos jurídicos no Brasil — começava a ser escrita a história de grandeza e independência da Advocacia. A cultura jurídica ajudou a consolidar as instituições do Estado emergente, as liberdades e os direitos do povo brasileiro. Durante o século XIX, o Brasil ficou conhecido como o “País dos Bacharéis”, uma vez que o bacharel em Direito tornou-se o principal intelectual da cena brasileira, com uma vida acadêmica intensa, não limitada ao conhecimento jurídico, mas extensiva aos demais saberes. O bacharel tornou-se um humanista por excelência, com ampla formação política, cultural e social.

Todas as grandes causas da vida brasileira — da abolição da escravatura à proclamação da República — foram endossadas pelos bacharéis em Direito. Esta tradição da Advocacia foi mantida com a criação da Ordem dos Advogados do Brasil, pelo Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930. E, nas últimas sete décadas, a entidade vem contribuindo, através de uma atuação efetiva, para ajudar a consolidar as instituições no país, sendo um espaço de reflexão sobre os grandes temas nacionais. A história da OAB é permeada pela defesa dos interesses públicos e da justiça social. A democracia brasileira deve muito aos advogados, que lutaram incansavelmente — e sem se intimidarem — pelas liberdades democráticas, especialmente durante os períodos de arbítrio e de autoritarismo vividos pelo país.

A despeito de um passado de serviços prestados, a advocacia vem sofrendo, recentemente, ataques infundados. Momentos de comoção, como os que estamos vivendo, nos quais o crime organizado busca um confronto direto com o Estado, certamente, alimentam a desconfiança nas instituições e nas entidades da sociedade organizada. No caso da advocacia, procura-se confundir advogado e cliente, defensor e acusado, querendo imputar ao primeiro a prática delinqüencial do segundo. O papel do advogado não é acobertar o crime ou patrocinar a impunidade, mas pleitear direitos em juízo, garantir o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, buscando para seu cliente, independente do crime, um julgamento justo.

O advogado é o artífice da defesa e dos direitos fundamentais dos cidadãos, sendo a advocacia essencial à administração da Justiça, como esculpido no artigo 133, da Constituição Federal. Como em qualquer profissão, em nossos quadros também temos exceções, a exemplo dos juízes, promotores, parlamentares, jornalistas, médicos, engenheiros etc. Não podemos aceitar, contudo, que as exceções sejam generalizadas e respinguem sobre a imagem de toda a classe, que comunga com os grandes ideais de Justiça e honra.

Certamente, pode haver alguns advogados que ignoram a base ética sobre a qual esta edificada a profissão, passando a ter condutas incompatíveis com a advocacia. Estes deixam de prestar um serviço público e exercerem função social para se tornarem criminosos, constituindo exceção das exceções. Se tomarmos como base o total de advogados paulistas com suposto envolvimento com o crime organizado, num universo de 250 mil colegas, o percentual não chega a 0,01% da classe, a qual na sua quase totalidade trabalha de forma honesta, honrada, ética, patrocinando as causas do cidadão e dignificando a advocacia.

O Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP existe para defender a verdadeira advocacia. Sem corporativismo, julga com independência e isenção todos aqueles que, durante o exercício profissional se desviam da conduta ética exigida pelo Estatuto da Advocacia, aplicando as penalidades previstas no Código de Ética e Disciplina.

Vimos observando que o comprometimento da conduta ética está diretamente relacionado à formação precária do profissional. Atualmente, temos mais de mil faculdades de Direito no Brasil, estando 222 delas instaladas em São Paulo. Não teríamos problemas, se todas fossem ilhas de excelência dentro do ensino superior. Contudo, temos constatado que parcela destas instituições promove um verdadeiro estelionato educacional, uma vez que não dispõe de sede, de corpo docente qualificado, de propostas pedagógicas atualizadas e com visão crítica; de bibliotecas etc, comprometendo a qualidade do futuro profissional, a despeito de o Exame de Ordem ser criterioso na avaliação dos bacharéis.

Na tentativa de minorar o problema, a OAB-SP leva neste semestre aos cursos de Direito no Estado de São Paulo o “Projeto OAB Vai à Faculdade”, para ensinar ética e prerrogativas profissionais — disciplinas ausentes das grades curriculares — e debater o Exame de Ordem com os estudantes de direito, desmistificando a prova, que busca apenas aferir os conhecimentos básicos do bacharel para avaliar se está apto para exercer a profissão. Esperamos, ainda nos bancos escolares, ajudar a formar bacharéis mais compromissados com estes três esteios da advocacia.

Outro alvo preocupante nas críticas à advocacia são as que visam às prerrogativas profissionais, conjunto de direitos que não constituem privilégios, mas garantias estabelecidas em lei para que o advogado possa cumprir sua missão constitucional de promover a defesa, sem cerceamento. Ter livre acesso aos processos, avistar-se com seus clientes presos, falar diretamente ao juiz, ter garantido o sigilo profissional e a inviolabilidade de seu local de trabalho e arquivos são medidas definidas pela Lei 8.906/94. Essas prerrogativas dão sustentação ao próprio Estado Democrático de Direito.

Na luta contra os abusos e violações às nossa prerrogativas profissionais, apresentamos pela OAB-SP projeto de lei (PL 4.915/05), que tramita no Congresso Nacional, para criminalizar as violações das prerrogativas profissionais. Este projeto terá o condão de inibir a prática da violação às prerrogativas, que constituem violação aos direitos dos cidadãos e da própria essência da Democracia. Também estabelecemos um cadastro de violadores de prerrogativas, para impedir que após a aposentadoria , essas autoridades judiciais venham inscrever-se na OAB-SP. Autoridade que, enquanto no poder desrespeitou a advocacia, não pode tornar-se um de nós porque terão suas inscrições indeferidas.

Em quase dois séculos de existência inúmeros desafios se apresentaram à advocacia brasileira e muitos outros estão por vir. Para enfrentá-los, os advogados devem reafirmar seu papel histórico de trincheira da cidadania — a garantir ao cidadão o direito de defesa — o julgamento justo e a correta aplicação das leis, essenciais ao pleno Estado Democrático de Direito. Imbuídos da certeza de que onde a OAB e advocacia recuam, o autoritarismo avança, saberemos sobrepujar todos os obstáculos com a mesma perseverança, dignidade e postura ética irrepreensível que sempre nortearam a nossa profissão, motivo de orgulho para toda a advocacia.

*O artigo foi publicado pelo jornal Folha de S. Paulo.

Luiz Flávio Borges D´Urso , advogado criminal, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, é presidente da OAB-SP

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