Mestre alemão

Supremo é o tribunal do cidadão, diz professor Peter Häberle

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14 de agosto de 2006, 20h27

“As grandes decisões, a exemplar revalorização do direito processual constitucional, os votos de alto nível de ministros, o manejo das petições do amicus curiae: tudo isto torna o Supremo Tribunal Federal (também graças ao controle concreto de constitucionalidade) um ‘tribunal do cidadão’ par excellence.” A constatação é do professor alemão Peter Häberle, um dos grandes nomes internacionais do Direito, ao relatar suas impressões sobre o Brasil.

Häberle esteve no país por duas semanas em setembro de 2005. Na ocasião, o professor recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Nacional de Brasília, mais um na sua imensa lista. Härbele é doutor honoris causa em diversos países.

Em entrevista concedida a Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo, ele falou da vida acadêmica no país e da “rica vida constitucional do Brasil” que, segundo ele, o motivaram a “desenvolver a idéia, já há cerca de quatro anos proposta, de um direito constitucional comum americano”.

Leia a entrevista, traduzida por Virgínia Coelho Felippe dos Santos.

O senhor poderia compartilhar suas impressões da recente visita ao Brasil, mencionando a distinção com o título de doutor honoris causa pela UnB — Universidade Nacional de Brasília, no dia 16 de setembro de 2005?

Peter Häberle — É uma honra e alegria poder realizar esta entrevista científica com ambos, pois a diversidade cultural e o nível científico do Brasil me impressionaram — para não dizer “seduziram” — profundamente [H.-U. Gumbrecht refere-se ao Brasil como “Nação do mito do exótico e do erótico”, Frankfurter Allgemeine Zeitung, de 26.10.2005, p.44].

Estive por 14 dias em seu fascinante país e é com muito prazer que participo desta entrevista científica. Nos países de influência romana, sobretudo Itália e Espanha, já de há muito as entrevistas científicas representam um gênero literário autônomo e um frutífero fórum de discussões. Elas oferecem determinadas possibilidades que não encontram espaço nas rigorosas formas das monografias ou artigos científicos. O formato dialogado permite maior abertura e flexibilidade, graças à imediatez dos jogos de perguntas e respostas no lugar da “palavra escrita unilateral“. Tatear em busca da verdade na acepção dos diálogos da Antigüidade, também os limites do reconhecimento do conhecimento podem ser ultrapassados de modo a se alcançar a esfera de uma confissão.

O momento pessoal e auto-biográfico (me reporto ao volume de meus Kleinen Schriften [Pequenos Escritos], Berlim, 2004, organizado por Wolfgang Graf Vitzthum, no qual constam minhas entrevistas até agora realizadas com parceiros de diversos países), se permite ser mais forte do que na ciência, e a nossa entrevista deve também refletir a inesquecível experiência de minha sobremaneira alegre (ainda que fatigante) viagem ao Brasil em setembro de 2005, como um ponto alto de minha existência científica, acadêmica e pessoal para terceiros, em especial a rica comunidade científica da Nação cultural brasileira.

Partamos agora para a sua pergunta inicial acerca de minha impressão geral sobre seu país, descoberto em 1500, cujas dimensões representam duas vezes o tamanho da Europa. Inicio com as impressões positivas: se podem reconhecer de imediato os surpreendentemente elevados níveis de tolerância e abertura culturais, a ausência de conflitos raciais acentuados, a despeito do multiculturalismo (considerando-se a “herança africana”) e o otimismo da nova geração, precisamente a dos juristas, como pude depreender das intensas discussões nas Universidades de Brasília e Fortaleza.

Ter encontrado um monumento a Goethe em Porto Alegre alegrou-me tanto quanto a tropical Florianópolis. A hospitalidade a mim dispensada pode ser comparada com a que experimentei no México e no Peru, o que é um grande elogio.

Graças a seus talentos organizatórios, o professor Ingo Sarlet preparou de maneira ideal esta viagem. Ele já havia me visitado previamente em Bayreuth, de modo que pude reconhecer com qual intensidade ele trabalhava por uma ponte entre a comunidade de professores publicistas da Alemanha e do Brasil. Ele é sobremaneira versado nos escritos alemães e sua amabilidade o torna um representante do Brasil. Alegro-me de poder ter construído um relacionamento amigável com ele e seu aluno Pedro Scherer de Mello Aleixo.

Não se deve ignorar que a agitada, “incomensurável“ e “imponente” São Paulo (cf. Frankfurter Allgemeine Zeitung de 2/4/05, p.3, “A crítica multidão de São Paulo não pode ser reprimida”) teria me subjugado, não fosse o prazer intelectual de um seminário (conduzido pelos professores Marcelo Neves e Virgílio Afonso da Silva) realizado na famosa Universidade de São Paulo, em um magnífico auditório comparável com praticamente qualquer palácio italiano.


Não se deve ignorar, todavia, a típica e saliente diferença entre pobres e ricos, a qual pode ser ilustrada, em parte, com base na diferença entre o norte e o sul de seu “continente”. Para mim, mostra-se dificilmente compreensível o fato de Brasília, no centro do país, ser, desde 1960, a capital federal. Foi prima facie bem construída, praticamente de forma “mágica“ (cf., novamente, Frankfurter Allgemeine Zeitung de 19/10/05, p.34, que se utiliza de expressões como “utopia construída” e “cidade retorta”). Brasília segue como uma “capital sem povo“, ainda que gradualmente lá se estabeleça uma nova geração própria, que aos poucos cresce nesta fascinante cidade-arte de Oscar Niemeyer.

Seguramente nota-se que a teoria política transformou-se diretamente em arquitetura (“Praça dos Três Poderes”). Impressionei-me, também, com a hospitalidade da Universidade de Brasília e do Supremo Tribunal Federal, o que se deve à excelente condução por parte do ministro Gilmar Ferreira Mendes (autor da conhecida obra Jurisdição constitucional, 5.ed., 2005).

O recebimento do título de doutor honoris causa pela Universidade Nacional de Brasília comoveu-me profundamente e encheu-me de enorme gratidão: escutar a execução do hino alemão em homenagem a um mero acadêmico, e não de um político, a honrosa laudatio por parte do ministro Gilmar Ferreira Mendes, a magnificente acolhida por parte do reitor, e a própria programação musical com obras de Richard Strauss, Johann Sebastian Bach e Heitor Villa Lobos (1887-1959) — justamente na época do falecimento do alemão-brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, ao qual o universo musical brasileiro muito tem de agradecer (Cláudio Santoro e Antônio Carlos Jobim foram seus alunos).

Quais seriam, na perspectiva de sua Teoria da Constituição como Ciência da Cultura, os elementos constitutivos da identidade cultural brasileira?

Peter Häberle — A pergunta acerca dos elementos de identidade cultural de um país tão grande quanto o Brasil mostra-se central para a minha teoria constitucional jurídico-comparativa concebida de modo científico-cultural. O que mantém unido, “no íntimo“, este país tão repleto de tensões? O que dá origem à grande auto-consciência e coerência inerentes ao Brasil? A sua sociedade aberta deve ser, sim, culturalmente fundada, de modo não apenas a permitir a manutenção da estabilidade de sua grandeza, a despeito de sua quase inacreditável diversidade e abertura, como também a possibilitar o desenvolvimento de uma identidade própria.

No Direito Constitucional europeu, a “identidade nacional“ já é, a partir do direito positivado, um sólido conceito. Mas o que significa uma “identidade nacional“ especialmente no e para o Brasil? Os seguintes elementos de identidade cultural de seu país tornaram-se por mim conhecidos: primeiramente a língua, especificamente o “musical” português-brasileiro; seu som musical corresponde à amabilidade dos brasileiros (o Rio de Janeiro, todavia, não conheço). Em segundo lugar e imediatamente em seguida, a Igreja Católica, muito vital e marcante, não apenas na Catedral em Brasília. E, finalmente, em terceiro lugar, mesmo que, a bem da verdade, não por meu entusiasmo pessoal: o futebol.

Me é particularmente difícil reconhecer o futebol como elemento de identidade cultural ou mesmo “constitutivo da cultura” de um Estado constitucional, mas o fato de um pequeno país como a Croácia vencer uma partida de futebol contra uma grande nação como a Alemanha, por exemplo, dá-nos uma grande lição de ser a ele inerente um momento de integração. Além disso, o esporte, já desde há muito, constitui um tema constitucional contemplado também pelo direito comparado. Embora possa a comercialização do futebol assustar os “europeus esclarecidos“, também o fazem certas formas de manifestação, que o tornam praticamente uma “religião substituta” com procedimentos ritualísticos quase-litúrgicos (cf., recentemente, H. Küng em artigo no Frankfurter Allgemeine Zeitung de dezembro de 2005). As regras de lealdade e a força pedagógica que se manifestam no jogo de futebol nos obrigam, também como juristas constitucionais, a levá-lo a sério.

O último — e quarto — elemento de identidade, mas para mim, naturalmente, o “primeiro” é a música. O Brasil possui grande tradição e cultura musical própria, não apenas como “alta cultura” (Heitor Villa Lobos), como também “cultura popular” (antigas formas de danças dos escravos, por exemplo) ou “cultura alternativa” (o carnaval). Desta forma, estão presentes as três formas de “cultura“ — cultura é uma palavra de Cícero (“cultivar, colher”) —, “alta cultura” (“dos verdadeiros, bons e belos”), “cultura popular” e “cultura do dia-a-dia” no sentido de “cultura(s) alternativa(s)”.


As progressivamente protegidas culturas das culturas indígenas latino-americanas (cf. Neue Zürcher Zeitung de 26/4/05, p.6 “Lula diz sim a uma reserva indígena”) pertencem, ao meu ver, às três categorias simultaneamente. “Observação compassiva“ de minha parte, não por profundo conhecimento, o qual poderia ser conquistado em anos, me levam a essa asserção no que tange aos elementos da (multicultural) “identidade nacional” brasileira, pela qual a consciência para uma totalidade latino-americana (palavra-chave: “direito constitucional comum latino-americano”?) seria aceita. Nas meritórias informações a respeito de países estrangeiros da Fundação Konrad Adenauer consta precisamente acerca do Brasil “de Lula”: “Meio-tempo com luz e sombra” (Fundação Konrad Adenauer, 4/05, p.4 ss.).

Qual sua avaliação da Constituição Federal brasileira de 1988?

Peter Häberle — Previamente, conhecia apenas a sua Constituição de 5/10/88, rica de inovações em inúmeros pontos, os quais foram já cedo publicados em meu Jahrbuch [des öffentlichen Rechts] (JöR 38, 1987, p.462 ss. — já ainda mais cedo escreviam José Galvão de Sousa assim como Christian Guy Caubet sobre o desenvolvimento constitucional no Brasil: JöR 7, 1958, p. 353 ss. assim como 38, 1987, p. 447 ss.). Refiro apenas textos como seu impressionante preâmbulo, o qual contém uma indispensável porção de utopia (“uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”).

Cito a bela expressão “a casa é asilo inviolável do indivíduo” (art. 5, XI), a cláusula de proteção do patrimônio cultural do artigo 5º, LXXIII, assim como a iniciativa popular do parágrafo 4º do artigo 27. Também merecedor de atenção é o artigo 193, com o pioneirismo da expressão “primado do trabalho”. O artigo 215, no que diz respeito à cultura, assim como o artigo 182, no que tange à política urbana, constituem elevados patamares textuais no âmbito do direito comparado. Após ter estado por duas oportunidades no México — graças a Diego Valades — e por uma vez ter visitado o Peru — graças a García Belaunde assim como César Landa —, já era hora de vir ao Brasil.

A rica vida constitucional do Brasil me instigou a desenvolver a idéia, já há cerca de quatro anos proposta, de um “direito constitucional comum americano” — analogamente à categoria de um “direito constitucional comum europeu” (1983/91) —, muito anterior a um “direito constitucional comum asiático”, talvez possível em cerca de 100 anos (JöR 45, 1997, p.555, 576ss.), sem que isto se permita vincular com um nivelamento da diversidade das culturas jurídicas nacionais, que, graças a vossa estrutura federativa (com 26 estados) e sua doutrina constitucional plural, cresce tão exemplarmente (o artigo 18, parágrafo 3º, é pioneiro, com a abertura para a organização dos estados federados).

Palavras-chaves seriam, por exemplo, a idéia do desenvolvimento de um “direito processual-constitucional comum americano”, ao menos na América Latina, no qual estaria abrangida a Corte Interamericana de Direitos Humanos na Costa Rica, e minha antiga doutrina (1976) de um “direito processual-constitucional” como “direito constitucional concretizado” e de sua autonomia frente a outras regulamentações como os regimentos dos tribunais e outras regulamentações processuais — doutrina esta que poderia ser uma proposta de discussão.

Deve-se ressaltar, ainda, que atualmente, na Europa, a prosperidade econômica do Brasil vem sendo descrita como “história de sucesso” (Frankfurter Allgemeine Zeitung, de 19/4/05, p.11).

Como o senhor percebe a práxis jurídico-constitucional brasileira?

Peter Häberle — No que toca à palavra-chave “ciência viva do direito constitucional” e à vívida práxis constitucional no Brasil, fui de muitas formas positivamente surpreendido. Em todos os planos de uma Constituição viva, em todos os âmbitos de uma sociedade aberta dos intérpretes constitucionais pude realizar, no Brasil, apenas observações positivas. Comecemos com o Supremo Tribunal Federal, em Brasília.

Personalidades judiciais como Gilmar Mendes me possibilitaram uma profunda visão de seu trabalho e de sua incontestada e extraordinária autoridade. As grandes decisões, a exemplar revalorização do direito processual constitucional, os votos de alto nível de ministros, o manejo das petições do amicus curiae: tudo isto torna o Supremo Tribunal Federal (também graças ao controle concreto de constitucionalidade) um “tribunal dos cidadãos” par excellence.

O tribunal é, ainda, apoiado por uma viva e muito profissional comunidade científica: na geração mais antiga avulta como representativo o decano Paulo Bonavides (o qual, juntamente com Gilmar Mendes e Ingo Sarlet, me encorajou à aventura desta viagem [ao Brasil]); na geração emergente pude estudar as obras de Gilmar Mendes, Ingo Sarlet, Ruy Espíndola, Martonio Barreto, Gilberto Bercovici, Virgílio Afonso da Silva, Luiz Magno e da professora Cristiane Peter da Silva (Hermenêutica de direitos fundamentais, 2005).


Todos eles conferem à doutrina constitucional brasileira um perfil próprio, também para além da natural influência portuguesa, onde se pode reconhecer e abertamente discutir influências alemãs. Esta ciência criou para si diversos fóruns e desenvolveu múltiplos gêneros literários: ocorreram, em função de minha presença, calorosos seminários, círculos de trabalho, encontros e frutíferas conversas em pequenos círculos.

A riqueza dos gêneros literários é sobressalente: de grandes manuais (por exemplo, André Ramos Tavares et. al. [Org.], Lições de direito constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos, 2005; Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 5.ed., 2003), assim como artigos basilares (Gilberto Bercovici, Die dirigierende Verfassung und die Krise der Verfassungslehre am Beispiel Brasilien, VRÜ 2004, p.286 ss.), passando pelas monografias (como, por exemplo, Ingo Sarlet, A eficácia dos direitos fundamentais, 6.ed., 2006; Rafael Caiado Amaral, Peter Häberle e a hermenêutica constitucional, 2004), até enriquecedoras coletâneas (por exemplo, acerca de dignidade da pessoa humana, Ingo Sarlet [Org.], Dimensões da dignidade, Porto Alegre, 2005, com contribuições de autores europeus, cujas obras cada vez mais concorrem com as norte-americanas) e até mesmo escritos em homenagem de determinados autores (como no caso do professor Paulo Bonavides, Belo Horizonte, 2005). Deve-se referir, ainda, à Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais de Paulo Bonavides, conduzida em alto nível.

Duas instituições que dizem respeito à práxis judiciária devem ser expressamente citadas: a seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em Florianópolis, perante a qual pude palestrar (meu paradigma da “sociedade aberta” foi, inclusive, aceito em uma votação com apenas duas abstenções), e a Associação dos Magistrados Catarinenses (igualmente em Florianópolis, com seu maravilhoso ambiente ilhéu). Lá, pude experienciar, junto aos demais conferencistas, do mais alto quilate (o professor Jonas Machado, de Coimbra, dentre outros, proferiu uma primorosa palestra), o quão culta e interessada é a magistratura brasileira.

A magistratura, como podem atestar meus anfitriões, juntamente com a classe dos advogados e a imprensa, assim como alguns publicistas, afirmou-se inclusive durante o período de ditadura (os artigos 133 e seguintes de sua Constituição criaram impressionantes normas para o exercício da advocacia). Peter Naumann foi um primoroso tradutor também em Florianópolis.

Como o senhor sintetizaria o resultado de sua viagem ao Brasil?

Peter Häberle — Uma palavra final sintetizadora enquanto olhar retrospectivo e prospectivo: o resultado a longo prazo de minha viagem [ao Brasil] poderei mensurar completamente talvez em um maior interstício temporal. Que desde hoje seja manifestado o meu permanente sentimento de gratidão.

Dois vultos já clássicos serviram-me como “condutores intelectuais”: Alexander von Humboldt, o qual celebrava Simón Bolívar como o “verdadeiro descobridor da América”, e Stefan Zweig, o qual falava do Brasil já em 1941 como “um país do futuro” (TB 1994) (também digno de leitura W.L. Bernecker et. al., Eine kleine Geschichte Brasiliens, 2000). Agora mesmo foram publicadas as suas Cartas selecionadas [Ausgewählten Briefe] (1932 – 1942, S. Fischer Verlag, 2005), nas quais se encontram palavras, por exemplo, acerca da “amabilidade das classes simples, que não conhecem nem organização, nem inveja”.

Caso eu proceda à realização de um escrito “Cartas pedagógicas a um jovem jurista constitucional”, como planejo para mais tarde (tenho em conta especialmente o jovem e promissor professor Miguel Azpitarte, de Granada, que pôde me acompanhar energicamente por estes inesquecíveis 14 dias), à cultura constitucional do Brasil será certamente conferido um lugar especial. A impressionante rica vida acadêmica no Brasil, o fato de as instituições estarem basicamente funcionando, a ”agitação” dos jovens estudantes das ciências jurídicas, a suavidade nas relações pessoais dos brasileiros fazem com que este país seja também aos meus olhos um “país do futuro” (Stefan Zweig).

O Brasil presta já hoje um grande serviço ao Estado constitucional como tipo, em todos os déficits, carências (como, por exemplo, os casos de corrupção e a acumulação de cargos e funções) e omissões (cf. Claude Lévi Strauss, Traurige Tropen, 1978). Uma doutrina constitucional com propósitos cosmopolitas, no sentido de Immanuel Kant não se permite delinear sem referência às contribuições brasileiras. Em mais de um aspecto, poderia caber a este país maravilhoso uma função de modelo em relação a toda América Latina.

Quando Paulo Bonavides, em minha despedida, disse-me, meio motivador, meio vaticinante e esperançoso, ser eu “um amigo do Brasil”, concordei com gratidão. Amizades científicas no que tange ao Estado constitucional, por fronteiras e continentes afora (no sentido de uma “república erudita global”), são mais importantes do que nunca (particularmente porquanto o direito internacional há de ser desenvolvido como “direito da humanidade”). Elas alegram aqueles que com isto consentem.


Porque haveria de ter-se felicidade apenas na arte e entre homens individualmente? Há também felicidade na ciência de uma doutrina de direito constitucional comparado, contanto que a ela estejam vinculados aqueles momentos pessoais, como os que pude experienciar em tão larga medida em duas semanas no Brasil. Surgiram amizades, algo que pelo visto é um talento específico dos brasileiros. Prefiro, certamente, não comentar a orgulhosa frase “Deus é brasileiro”!

A Constituição da África do Sul constitui exemplo de institucionalização da idéia pelo senhor sugerida do jus-comparativismo como quinto método de interpretação. Como o senhor avalia o papel dessa noção para o século XXI?

Peter Häberle — Esta tese foi por mim primeiramente em 1989 desenvolvida. Vinculada aos quatro clássicos cânones de Savigny, esta proposta teórica tem sido na atualidade discutida quase que globalmente. O Tribunal Constitucional de Lichtenstein já há alguns anos invocava expressamente minha doutrina. Muitos outros Tribunais Constitucionais da Europa também se utilizam do direito comparado em suas decisões. Até o presente momento, contudo, não se optou por sua canonização como quinto método. Desta forma, deve-se aludir somente à elevada categoria, e não a uma determinada ordem dos quatro cânones interpretativos.

Como vocês sabem, não há até o presente momento uma hierarquia segura relativa aos quatro métodos de interpretação. Os tribunais a criam provavelmente partindo da sua capacidade de aplicação jurídica, ou seja, de seu controle de justiça. Assim pode realmente acontecer que o método histórico de interpretação não constitua o início, mas que seja, dentro do contexto do pluralismo dos métodos de interpretação, acrescentado no final, a título de corroboração.

Além disso, suponho que o método primário de interpretação é o teleológico, sendo os demais métodos apenas complementarmente adicionados.

Por fim, minha sugestão é mencionada no Handbuch für Schweizerisches Verfassungsrecht, de 2001: uma interpretação orientada ao contexto. Isto significa interpretação através de um “acrescentar de outras idéias”.

Não poucos elementos da cultura jurídica européia possuem uma pretensão universal (cf. seu recente artigo Der europäische Jurist vor den Aufgaben unserer gemeinsamen Verfassungs-Zukunft, Jahrbuch des öffentlichen Rechts 53, 2005, p.478). Daí o senhor falar de uma irradiação das idéias jurídicas européias além-mar (Ausstrahlung der europäischen Rechtsideen nach Übersee), sempre frisando que os processos de europeização não devem ser tomados como formas ocultas de novas colonizações. Quais os limites da cultura jurídica européia em suas intenções universais, sobretudo diante do fundamentalismo islâmico?

Peter Häberle — De fato, existem vários elementos da cultura jurídica européia com pretensão de universalidade. A estes pertencem a dignidade da pessoa humana, no sentido de Immanuel Kant, o princípio do Estado de Direito e alguns direitos fundamentais, assim como a máxima da justiça na concepção de Aristóteles a John Rawls.

O “coração“ dos Estados constitucionais europeus é, não por último, o princípio constitucional da tolerância, ao qual chegou a Europa apenas após muitos séculos de longas guerras religiosas. Um texto clássico a este respeito é a parábola do anel, de Lessing, que também abrange os muçulmanos. Eu muito advirto para os processos de recepção e produção no que tange ao Estado constitucional: deve-se também respeitar o particular e o específico das outras culturas. Neste sentido, o auxílio de meu princípio científico-cultural: Constituição como cultura.

A compreensão de família na África ou em Estados Islâmicos, por exemplo, difere de sua compreensão na Europa. O modo como os Estados constitucionais europeus devem se comportar perante o fundamentalismo islâmico resta ainda inexplicado. Há anos, proponho, seguindo outros autores, lutar por um “Euro-Islã”. Certamente só pode haver tolerância na reciprocidade. É de se supor que precisamos, para esta enorme tarefa, de um novo Hugo Grotius no direito internacional e de um novo John Locke no direito constitucional. Afinal, somos apenas “anões sobre os ombros de gigantes”.

O senhor sustenta existir, tanto na arte como na ciência, um contrato cultural de gerações entre professores e estudantes, entre mestres e alunos, do qual a ciência do direito constitucional aufere vitalidade. O senhor poderia tecer algumas considerações sobre a importância do seu relacionamento científico com seu professor Konrad Hesse e discorrer sobre a importância de Rudolf Smend, seu “avô-científico”, na perspectiva da sempre pelo senhor lembrada metáfora do “anão sobre os ombros de gigantes”?

Peter Häberle — A idéia de um contrato científico entre gerações foi, há alguns anos, por mim tomada de empréstimo da arte, onde já existe há séculos um contrato cultural de gerações entre mestres e alunos. Pense-se na Renascença italiana. No âmbito do direito constitucional, falo com prazer acerca dos clássicos weimarianos. Não me refiro apenas a grandes textos, juridicamente relevantes, de Goethe e Schiller, mas também mestres como Hermann Heller, Rudolf Smend, Carl Schmitt e Hans Kelsen.


Enquanto na América Latina reverencia-se especialmente Hans Kelsen, na Espanha Hermann Heller, ao qual sinto-me quase mais ligado do que a meu próprio “avô” científico, Rudolf Smend. Devo muito, senão tudo aos seminários de Konrad Hesse. O livro Grundzüge des Verfassungrechts der Bundesrepublik Deutschland [Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha], de Hesse, marcou não apenas a mim, mas a toda uma geração de juristas alemães. A isto pertence não apenas a arte da estruturação e a sensível consciência do problema, mas também a capacidade de se questionar as pré-compreensões e de se buscar as condições prévias do pensamento. Uma idéia fundamental não só pedagógica, como científica é o princípio da “concordância prática”.

A geração de meus atuais colegas considera verdadeiramente que eles mesmos sejam gigantes. Sou, todavia, da opinião de que até hoje não realizamos algo que se possa comparar com os clássicos weimarianos. Isto é, contudo, controverso.

O senhor enxerga a música como linguagem universal. Em que medida o papel por ela exercido em sua formação pessoal influenciou o alinhamento jurídico-comparativamente aberto, interdisciplinar, humanista e, sobretudo, a sensibilidade científico-cultural caracterizadores de sua teorização doutrinária?

Peter Häberle — A música é, talvez, a língua mais universal, não apenas quando se pensa no eterno Johann Sebastian Bach e no divino Wolfgang Amadeus Mozart. Agradeço pela sua amigável suposição de que haveria uma influência musical em minha obra científica. Assim o é de fato. Vocês referiram a palavra-chave decisiva. Acrescento, ainda, um elemento estilístico: concebo muitas palestras praticamente como uma “composição”. Tenho prazer em trabalhar com elementos rítmicos e com o método dos contrapontos. Não posso lhe conceder uma visão mais ampla de minha pequena “oficina” [Werkstatt].

Em minha viagem ao Brasil, aprendi muito da grande música de seu país, como, por exemplo, de Villa Lobos.

Finalizemos com uma pergunta envolvendo uma verdadeira “paixão nacional“ brasileira, nomeadamente, o futebol. O senhor afirma, em seu recente ensaio Der europäische Jurist vor den Aufgaben unserer gemeinsamen Verfassungs-Zukunft, que também os campeonatos europeus de futebol auxiliam a consolidação da esfera pública européia. Lembremos que 2006 foi ano de Copa do Mundo, com realização na Alemanha. Poderia esta sua idéia a respeito do futebol ser estendida para o plano mundial, mais especificamente no que toca ao futebol como elemento consubstanciador da identidade cultural dos povos?

Peter Häberle — O futebol é certamente um elemento da identidade cultural brasileira, ainda que me seja difícil reconhecê-lo como tal.

Nele, são apreendidos lealdade e competitividade, ambos igualmente necessários nas disputas no âmbito da comunidade estatal. Os campeonatos europeus de futebol constituem um pedaço da esfera pública européia, pertencendo à nossa identidade. Certamente não desconheço a proeminência comercial do mundo futebolístico. Também é desconcertante que muitos jogadores de uma seleção nacional não venham daquele respectivo país.

Quanto à sua pergunta acerca da Copa do Mundo de futebol, apenas isto: aqui se forma uma parcela da esfera pública mundial de nosso único, azul, planeta Terra. Posso apenas esperar que ela se torne uma nobre competição de nações. Uma vez que muitos homens atribuem significado relevante ao futebol, devemos, como juristas constitucionais, fazer de tudo para que não pensemos de maneira elitista sobre este tema. Democracia é, também, uma forma de vida.

Agradeço-lhes cordialmente: suas perguntas foram melhores do que minhas respostas!

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