Notas frias

A omissão do Fisco vira armadilha para as empresas

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7 de agosto de 2006, 18h08

Já se tornou corriqueira a autuação de empresas por créditos tributários considerados indevidos, sob o argumento de que teriam adquirido mercadorias de empresas consideradas “inidôneas”. Esses procedimentos relacionam-se com as denominas “notas frias” ou “documentos inidôneos”.

Na maioria dos casos o contribuinte recebe uma intimação para comprovar o pagamento dos fornecimentos e às vezes nem isso. O fiscal apenas exibe um “relatório” que diz que determinado fornecedor foi considerado como “inidôneo” por esta ou aquela razão, com base em supostas diligências e simplesmente se “glosa” o lançamento dos respectivos créditos, exigindo-se do adquirente das mercadorias o recolhimento do tributo, acrescido de multa, juros, etc.

Em alguns casos o fisco diz que o estabelecimento do emitente do documento não foi localizado, outras vezes que se tratava de simulação, outras ainda que a inscrição foi obtida mediante fraude, enfim, cada vez é uma história diferente, mas o final é sempre o mesmo: quem comprou a mercadoria seria responsável pelo pagamento de tudo, sempre sob ameaça de abertura de procediento criminal e sem que se dê a menor chance de contraditório, de defesa.

Essas alegações de “inidoneidade” dos documentos relacionados no auto de infração baseiam-se sempre em supostas diligências realizadas pelo Fisco. Mas em nenhum momento se dá conhecimento à autuada de tais diligências, como também não se dá qualquer notícia sobre a publicação dessa alegada “inidoneidade” no Diário Oficial ou qualquer outra forma de sua divulgação.

Os sistemas preventivos de consulta da idoneidade dos fornecedores são precários e inseguros. Através da internet o contribuinte pode consultar a Secretaria da Fazenda, pelo chamado “Sintegra”, mas ali fica claro que tal informação não serve para futura defesa, ficando sempre a dúvida: se não serve para defesa do adquirente, serviria para quê mesmo?

Ora, qualquer contribuinte, recebendo mercadorias acompanhadas de notas fiscais formalmente regulares, e das quais constam dados de autorização de sua impressão , possui razões bastante sólidas para não duvidar da legalidade desses documentos, até porque conhece a eficiência do Fisco e o rigor com que são emitidas essas autorizações.

Essas autuações geraram inúmeros processos, tanto administrativos quanto judiciais. Na esfera administrativa tem prevalecido decisões favoráveis ao Fisco, ante a conhecida parcialidade dessa instância. Mas judicialmente muitos contribuintes estão conseguindo obter resultados satisfatórios.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, pela sua 16ª Câmara Civil, na Apelação Civel 175.883-2/9 da Comarca de Taubaté, decidiu que não se pode cobrar do adquirente o imposto que não tenha sido pago pelo vendedor, se a “inidoneidade” dos documentos por este emitidos não tenha sido divulgada mediante publicação no Diário Oficial.

Concluiu o Tribunal nesse caso, que “…cabe ao Fisco cobrar da vendedora o imposto que for devido. Ante a ausência de publicação da declaração de inidoneidade da vendedora, não há que se penalizar…” o adquirente da mercadoria que agiu de boa fé.

No mesmo sentido é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que, em decisão unânime de sua 2ª Turma, no Agravo Regimental 173.817-RJ, decidiu que o crédito do ICMS não depende de prova de que o fornecedor tenha pago o tributo, mas apenas de que estava regularmente inscrito na repartição e de que o negócio tenha sido realizado.

Decisão similar está na RJTJESP 124/40, esta destacando antiga lição de Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, pág. 64) que ensina:

“A publicidade é a divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos. Daí por que as leis, atos e contratos administrativos, que produzem conseqüências jurídicas fora dos órgãos que os emitem, exigem publicidade para adquirirem validade universal, isto é, perante partes e terceiros.”

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, examinando questão do pagamento do ICMS na comercialização de gado, negou recurso interposto pela Fazenda do Estado de São Paulo, afirmando que:

“Constatado…que o vendedor agiu de boa fé e que a empresa compradora encontrava-se regularmente inscrita na data das operações de compra e venda, não pode o vendedor ser responsabilizado pelo recolhimento do tributo.” (REsp 89.364)

Vê-se, portanto, que a responsabilidade do comprador ou do vendedor pelo tributo que a outra parte não pagou só pode ocorrer se ficar demonstrada a existência de conluio ou má-fé.

Ao fazer diligências sem que as torne públicas ou sem que se informe ao contribuinte acusado da infração (de crédito indevido) a fiscalização impede que elas possam ser acompanhadas e contraditadas. Assim, deixa de observar o disposto no artigo 5º inciso LV da Constituição Federal, a saber:

“LV — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”

A autuação baseada em suposta inidoneidade de documentos, decorrente de processo a que a autuada não teve acesso , resulta, portanto, de simples presunção. E sobre presunções nossos tribunais têm decidido que:

“Indício ou presunção não podem por si só caracterizar o crédito tributário.” ( 2º Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, acórdão 51.841,in “Revista Fiscal” de 1970 , decisão nº 69).

“Para efeitos legais não se admite como débito fiscal o apurado por simples dedução.” (idem, acórdão 50.527,Diário Oficial da União de 11.7.69,secção IV).

“Provas somente indiciárias não são base suficiente para a tributação…

(Primeiro Conselho de Contribuintes, 1ª Câmara, Acórdão 68.574).

“Processo Fiscal — Não pode ser instaurado com base em mera presunção. Segurança concedida.” (Tribunal Federal de Recursos, 2ª Turma, Agravo em Mandado de Segurança 65.941 in “Resenha Tributária” nº 8)

“Qualquer lançamento ou multa, com fundamento apenas em dúvida ou suspeição é nulo, pois não se pode presumir a fraude que, necessáriamente, deverá ser demonstrada” (Tribunal Federal de Recursos,Apelação Civil nº 24.955 em Diário da Justiça da União).

Além disso, vale citar, ainda, a lição de Ives Gandra da Silva Martins, em trabalho publicado no “Caderno de Pesquisas Tributárias” 9, sobre “Presunções em Direito Tributário” (Editora Resenha Tributária, S.Paulo, 1984, página 65) de que se destaca o seguinte trecho:

“…a única arma possível do sujeito passivo,nas fronteiras pequenas que lhe são outorgadas, são aquelas garantias consubstanciadas nos dois princípios fundamentais da estrita legalidade e da tipicidade fechada. Ora,tais garantias,das poucas que ainda restam ao sujeito passivo, não são compatíveis com mecanismos convenientes das ficções legais, das presunções e dos indícios transformados em poderosas técnicas de arrecadação para sanar os irreversíveis “deficits” orçamentários, provocados pelo fracasso da presença estatal na economia.”

Se o contribuinte autuado pelo fisco sob o argumento de que se utilizou de documentos “inidôneos” possui prova razoável de que tenha efetivamente promovido os pagamentos das mercadorias, pode esperar que o Judiciário reconheça que não é de sua responsabilidade o imposto que não foi recolhido pelo fornecedor.

Assim, deverá o contribuinte, através dos seus advogados, levar a questão ao exame dos tribunais, para que não se veja obrigado a sofrer prejuízo por causa da deficiência dos sistemas fiscalizadores do Estado.

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