No divã

Entrevista: Leonardo Sauaia, psiquiatra

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6 de agosto de 2006, 7h00

Sauaia - por SpaccaSpacca" data-GUID="sauaia.png">Não chamem um advogado e um psiquiatra para discutir na mesma mesa temas como maioridade penal. O psiquiatra vai analisar as condições subjetivas de cada situação para dizer que a consciência do crime só ocorre quando o indivíduo tem pleno juízo crítico. O advogado vai invocar as razões objetivas previstas em lei e concluir que se deve estabelecer um ponto de corte no tempo para generalizar a situação.

Do ponto de vista da ciência, o conceito de maioridade penal pode variar dos 10 aos 24 anos de idade. Do ponto de vista do Direito, pode ser 18 anos, como determina a Constituição Federal, ou 16 anos, como querem muitos, mas em qualquer caso deve ser expresso por um número real.

É este diálogo, aparentemente impossível, entre ciência e Direito que o psiquiatra Leonardo Sauaia, do Núcleo de Psiquiatria Forense do Hospital das Clínicas de São Paulo, persegue como ideal. “Se existe um desvio do comportamento, a pessoa precisa de um tratamento. Esse tratamento pode ser oferecido na cadeia, no hospital, em casa, o local pouco importa, o que importa é que se faça o tratamento”, diz Sauaia.

Para a Lei, importa antes a sanção social. Se houver possibilidade de recuperação, tanto melhor. Sauaia explica que a psiquiatria trata com um grau de subjetividade muito alto, porque o indivíduo é subjetivo. Logo, há uma dificuldade para a ciência lidar com a lei que é genérica.

Como integrante do Núcleo de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Sauaia é um dos 15 profissionais que prestam atendimento psiquiátrico aos menores internados na Febem — Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, de São Paulo. O projeto é novo. Leonardo Sauaia atende na unidade do Tatuapé, zona leste de São Paulo, desde o mês de abril. Acredita que apesar do pouco tempo, o resultado alcançado já mostrou a validade do projeto.

Nesta entrevista à ConJur, Sauaia também fala da influência do meio sobre o comportamento das pessoas. “Alguém que vive em um meio de absoluta impunidade tem mais possibilidades de delinqüir porque sabe que isso não é problema”, afirma. Para o psiquiatra, o componente ambiental pesa mais na composição da criminalidade do que a genética. “O meio determina, em grande parte, o comportamento da pessoa”, esclarece.

Leonardo Sauaia tem 29 anos. É formado em Medicina pela Universidade de Santo Amaro e fez residência em psiquiatria na Santa Casa de São Paulo. Fez especialização em transtorno de personalidade em Sutton, na Inglaterra. Quando voltou, passou a atender em clínicas e hospitais. Veio assim a oportunidade de fazer parte do Núcleo do Hospital das Clínicas.

Também participaram da entrevista os jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Como a psiquiatria define a consciência do crime?

Leonardo Sauaia — A consciência é tida como um divisor entre a possibilidade de o paciente ter juízo crítico ou não. Para determinar isso, usamos diversos mecanismos, desde os mais básicos até os mais complexos. Por exemplo, analisando o sentido de orientação podemos determinar se a pessoa tem noção de tempo e espaço, se a memória está preservada, se há capacidade de pensamento elaborado. Logo no início de uma entrevista psiquiátrica, detectamos alguns dados que ajudam a diagnosticar se a pessoa tem capacidade intelectual para assumir a conseqüência dos seus atos. Conversando um pouco mais, vemos se a capacidade cognitiva está preservada e também se existe algum tipo de distorção cultural muito grave. Por exemplo: alguém que vive em um meio de absoluta impunidade e, de repente, começa a roubar. Para essa pessoa, isso não é problema. Alguém que vive em um meio de mais selvageria ou em ambiente familiar onde acontece pedofilia ou incesto dificilmente terá os mesmos valores do restante da sociedade. Na micro-sociedade a pessoa não absorve os valores da macro.

ConJur — Na formação da consciência, então, a parte cultural é muito importante?

Leonardo Sauaia — Sem dúvida. A psiquiatria já sabe que a carga genética traz alguns traços possíveis de comportamento. No entanto, o meio é fundamental para que esses traços comecem a aflorar; para que estas pequenas informações biológicas se transformem em características sociais de uma pessoa. O meio é que determina o comportamento de uma pessoa. Não podemos dizer que alguém se comportou de determinada maneira apenas porque já tinha uma carga genética desfavorável.

ConJur — A consciência está relacionada com a idade?

Leonardo Sauaia — Está, na medida em que falamos de uma pessoa que vive em um ambiente que comporta outra noção de moral. A criança, até certa idade, é amoral. Ela só forma a característica a partir dos exemplos existentes nas sociedades menores ou mais próximas, como família, escola, vizinhança… Crianças que vivem em ambientes onde os limites não são tão claros, são pouco nítidos, ou são distorcidos têm dificuldade de encontrar os limites morais do que é certo e do que é errado.


ConJur — E por que algumas pessoas crescem escutando sobre os limites, sobre o que é certo e o que é errado, mas ainda assim cometem algum delito?

Leonardo Sauaia — O que acontece é que a mensagem pode estar clara para o emissor, mas não está tão clara para o receptor. Os pais podem dizer: “roubar é errado”, “não está certo fazer isso”, ou “não é certo passar a perna no colega”, mas a criança não recebe as mensagens de maneira tão clara. Pode ser por dificuldade até intelectual. Pode ser também de ouvir os pais falando sobre isso, mas ligar a televisão e assistir a um monte de gente fazendo diferente e se dando bem. Também pode ser por algumas características de personalidade. Ou ainda uma questão de alguém na fase do questionamento. Ele pode saber que roubar é errado, mas o vizinho rouba e tem um tênis melhor do que o dele. Se não há confirmação dos limites, essa questão fica sem resposta, sem o confronto com o outro lado. Nesse momento, o limite se perde. Não é que o jovem não recebeu a mensagem. É aí que mora a questão da educação. Se fosse simples, elaboraríamos uma cartilha sobre as coisas certas da vida.

ConJur — Um pouco é aquela pergunta que recentemente se fazia: porque a moça rica, bonita, bem na vida, matou o pai e a mãe.

Leonardo Sauaia — Ninguém sabe qual a vivência dessa pessoa. A vivência é extremamente importante e uma das coisas que faz com que a gente pegue todo o nosso arsenal teórico e deixe de lado. É preciso traçar em que teoria o caso se encaixa, e não o contrário. Nesse caso recente [de Suzane von Richthofen], muita gente quis estabelecer diversos diagnósticos, estabelecer diferenças, mas a questão é: o que essa moça viveu e como viveu. Não só como a mensagem foi dada a ela, mas como ela recebeu essa mensagem. E mais importante ainda: ela teve condições de receber essa mensagem?

ConJur — Se é complicado aplicar a teoria à prática, mais complicado ainda é aplicar a lei à prática.

Leonardo Sauaia — Complicado porque temos dificuldade de diálogo. Uma das coisas que se indaga quando a psiquiatria conversa com a lei é se o receptor é aguçado o suficiente para não só receber determinada informação, como assimilá-la. Além disso, para a psiquiatria o ponto fundamental é o juízo crítico. Já a lei precisa de um ponto de corte para generalizar uma situação. Podemos conversar com alguém de 16 anos que tem perfeito juízo crítico sobre a conseqüência dos seus atos, assim como podemos conversar com alguém da mesma idade que não tem. Tudo depende da exposição daquela pessoa, depende da miscelânea moral à que ela foi submetida. E principalmente depende da estrutura do adolescente, para se firmar como um adulto a partir de determinado momento.

ConJur — As leis no Brasil acabam sendo definidas a partir de situações de grande comoção social. No caso Liana Friedenbach e Felipe Caffé [casal de namorados assassinado com requintes de crueldade em São Paulo, por uma quadrilha comandada por um menor], por exemplo, discutiu-se muito a redução da maioridade penal. O quadro legal que se espera é que as regras sejam feitas para a maioria e não para determinados casos. Com os fundamentos da psiquiatria, dá para pensar em uma lei que sirva à maior parte das pessoas?

Leonardo Sauaia — Temos uma teoria que é colocada por trás de todo o relacionamento com o indivíduo. O importante é saber se estamos falando de um adolescente que cometeu determinado crime sem condições intelectuais, ou estamos falando de um jovem que tem perfeitas condições e, mesmo assim, resolveu cometer o crime. Antes de a gente chegar a qualquer diagnóstico, precisamos saber o que está acontecendo, quais são as condições reais daquele indivíduo. A expectativa das pessoas é que o psiquiatra pense: “ele matou alguém então tem o transtorno y”. Só que não é assim que a psiquiatria reage. Não podemos partir do macro para o micro. Temos de partir do micro para o macro. A partir daí, a gente estabelece um tratamento, mas o diagnóstico não serve para saber se aquela pessoa é capaz de julgar, de discernir o certo do errado. O diagnóstico serve para determinar o tratamento.

ConJur — O tratamento do indivíduo é mais importante que a punição?

Leonardo Sauaia — Para o psiquiatra, sim. No caso da Febem, por exemplo, o nosso trabalho é tratar os internos. Não queremos saber se ele vai tomar o medicamento dentro ou fora da fundação. O importante é que ele tome o remédio e que o faça de maneira correta.

ConJur — O senhor, como cientista do comportamento humano, acredita que cadeia resolve alguma coisa?

Leonardo Sauaia — Se existe um desvio do comportamento, a pessoa precisa de um tratamento. Se esse tratamento for oferecido na cadeia, ótimo. Se esse tratamento for oferecido em um hospital, ótimo. Se esse tratamento for oferecido em um manicômio judiciário, ótimo. Se esse tratamento for oferecido na casa do indivíduo, ótimo. Mas estou falando de uma doença, não estou falando de alguém que cometeu algum crime em perfeito estado mental.


ConJur — O crime não é um desvio de comportamento?

Leonardo Sauaia — Não necessariamente.

ConJur — Então o que é o desvio de comportamento?

Leonardo Sauaia — Em casos mais perceptiveis, como um retardo mental, ou até em outros menos nítidos, como os transtornos de personalidade, os desvios de comportamentos acontecem quando há inflexibilidade no comportamento de uma pessoa. Essa inflexibilidade acaba prejudicando o relacionamento com o mundo e com outros indivíduos. Quando isso existe, a pessoa não sabe reagir de uma outra forma a não ser aquela. Não que ela não possa aprender ou reaprender. O mais importante é saber se essas pessoas têm consciência das conseqüências dos seus atos. Inclusive, a falta de consciência é menos freqüente.

ConJur — O fato de ela não conseguir agir de outra maneira não a torna inimputável?

Leonardo Sauaia — Não é que ela não pode agir de outra maneira. A questão é que ela não sabe. Essa é uma diferença muito importante.

ConJur — Em casa, a família oferece disciplina, submissão, obrigações. Tem de agüentar às vezes o pai ou a mãe que bebem ou que batem. Enquanto isso, a rua oferece a liberdade, drogas, emoções fortes. Uma criança dessas chamadas “meninos de rua” pode ter uma vida “normal”?

Leonardo Sauaia — É importante frisar que vários dos meninos que estão na Febem vieram de um lar e não da rua diretamente. Eles têm uma família que visita ou então uma família que não visita porque mora muito longe. Mas, no geral, têm um lar para o qual vão voltar.

ConJur — A rua perverte menos do que a família?

Leonardo Sauaia — Não. A família pode ser mais problemática, mas é ela que oferece carinho e que provê cuidado nos momentos que a criança realmente precisa. A rua pode oferecer mais liberdade, só que é um meio extremamente hostil. Se a criança se endividar, por exemplo, a forma de cobrar a dívida é um pouco mais selvagem do que dentro de casa. Quando a criança precisa de acolhimento, é mais difícil encontrar. Em casa também pode ser que esse acolhimento é pouco disponível, ou pouco acessível. Uma das possibilidades para uma criança quando ela é internada na Febem é de uma intervenção não só no comportamento dessa criança, mas também no convívio dessa família. Tanto que as visitas familiares são estimuladas.

ConJur — Quando acontece a crise moral?

Leonardo Sauaia — Acontece muito mais no período de questionamento. O período em que a pessoa começa a entrar na puberdade, vai para a adolescência e daí começa a questionar as coisas. Observamos que esse período de questionamento hoje em dia, até por uma exposição mais precoce às questões morais, começa muito mais cedo. Ao mesmo tempo, a sociedade tem se tornado muito mais permissiva em relação às responsabilidades. Não falo só de uma parcela pequena da população, mas de todo um mercado. Hoje pode-se dizer que a adolescência dura dos 10 aos 24 anos, pois cada dia que passa você percebe que há um período gigantesco de contestação. Estamos falando de alguém que está buscando um confronto, mas não tem um adversário. Quando você faz uma pergunta e não tem resposta, além de ter de tolerar essa angústia, você preenche aquilo com o que te vem às mãos. Quando falamos em valores morais, temos o hábito de acreditar automaticamente que o que é moral é o certo. Mas não é. A gente está falando de valores morais que podem tanto incluir coisas nocivas à vida em sociedade, quanto de coisas benéficas da vida em sociedade.

ConJur — Com essa super-adolescência, onde colocamos a maioridade?

Leonardo Sauaia — Entendo que a Justiça busca um ponto de corte a partir do qual o indivíduo tem juízo crítico da consciência e conseqüência dos seus atos. Isso pode ser em qualquer idade. Se a psiquiatria entende que um indivíduo com 16 anos sabe a gravidade do crime que cometeu, então aí temos um ponto de equilíbrio entre a medicina e a Justiça. Se a lei busca alguém que possa se responsabilizar pelos seus atos, essa resposta já está sendo dada na própria perícia. A lei precisa ver caso a caso.

ConJur — A lei poderia guardar um grau de subjetividade para ser aplicada individualmente?

Leonardo Sauaia — Não sei se a lei se satisfaz com isso, mas digamos que do ponto de vista psiquiátrico, isso seria o mais adequado.

ConJur — É o caso do Champinha [menor, líder da quadrilha que assassinou o casal em São Paulo]. O laudo médico disse que ele pode voltar para a rua. Só que isso não condiz com a realidade.

Leonardo Sauaia — Falar sobre esse caso para mim é impossível, porque eu não avaliei esse menino e mesmo se eu tivesse avaliado, não poderia falar. O que eu posso dizer é que isso me intriga. Talvez seja desinformação minha. Em um momento ele foi tido como um retardado mental. Não sei se isso procede, porque não li nenhum laudo. Alguém que tem retardo mental, por mais leve que seja, tem prejudicada a capacidade de julgar a conseqüência dos seus atos. É muito difícil responsabilizar uma pessoa que não tem condições cognitivas.


ConJur — Seria razoável supor que todos fossem responsáveis pelos seus atos e a faixa etária apenas uma atenuante ou agravante?

Leonardo Sauaia — Em outros países isso acaba acontecendo. Quando existe algum tipo de situação criminal em que a capacidade de entendimento do réu é colocada em xeque, é feita uma avaliação. A grande questão que gira dos 16 aos 18 nos é se essa pessoa tem condições de se responsabilizar pelo crime. Se esse indivíduo pode ser incriminado, o que será feito? Será aplicada a mesma lei para alguém que já atingiu a maioridade? Onde essa pessoa vai ser colocada?

ConJur — Agora, é óbvio que há pessoas que não têm condições de conviver em sociedade, certo?

Leonardo Sauaia — Sim. Só precisamos pensar de quais pessoas estamos falando. Há pessoas que não têm condições de viver em sociedade, ou há pessoas que a sociedade não tem condição de assimilar. Quem vai ceder?

ConJur — No contexto forense há um modelo de tratamento psiquiátrico de outros países que pode ser aplicado para o sistema brasileiro?

Leonardo Sauaia — No Canadá, há um modelo bastante interessante de atendimento à população carcerária. O tratamento costuma ser determinante para estabelecer características de personalidade do indivíduo. E dependendo das características que forem percebidas, isso pode afetar na permanência daquela pessoa por maior ou menor tempo na prisão. Já na Inglaterra existem as comunidades terapêuticas. São formas de trabalhar as condições de ressocialização dos indivíduos, seja no ambiente prisional, ou não. Estas pessoas vivem normalmente, cozinham, cuidam da casa, trocam a lâmpada, essas coisas. Existe a proposta de se fazer isso no Brasil, mas há outras prioridades.

ConJur — Como é o seu trabalho na Febem?

Leonardo Sauaia — Atendo adolescentes duas vezes por semana, em uma das unidades. Somos um grupo de quinze psiquiatras selecionados pelo Núcleo de Psiquiatria Forense (Nufor) do Hospital das Clínicas. Atendemos os adolescentes que são normalmente agendados pela própria Febem. Os internos passam pela avaliação psiquiátrica e, dependendo do caso, ele é acompanhado pelos profissionais. O tratamento é muito mais clínico, ou seja, baseado em remédios. Quando há necessidade, sugerimos atendimento psicoterápico.

ConJur — Qual é a média de idade dos adolescentes da Febem que o senhor atende?

Leonardo Sauaia — A maioria se concentra nos 17, mas é uma coisa bem distribuída.

ConJur — Há quanto tempo o senhor trabalha com isso?

Leonardo Sauaia — Desde abril deste ano, quando começou a parceria entre Nufor e Febem.

ConJur — Como o senhor avalia o resultado?

Leonardo Sauaia — Apesar do pouco tempo, é impressionante como o trabalho tem dado certo. A primeira coisa que temos feito é separar os meninos que realmente precisam de atendimento psiquiátrico. Por exemplo, garotos que fizeram uso de drogas, mas já estão em abstinência há muito tempo, não precisam de tratamento medicamentoso. Todo o programa de desintoxicação que a gente poderia promover já foi feito na própria Febem. Talvez, não da forma mais saudável e mais tranqüila. Se a gente fala de meninos que foram medicados na rua e estão há algum tempo tomando o mesmo remédio, analisamos se ainda há necessidade do tratamento. Se não, tira o remédio e pronto. Isso já é alguma coisa e faz uma grande diferença na vida dos adolescentes. Já tivemos também a oportunidade de atender a alguns meninos que estavam precisando de alguma assistência psiquiátrica e um único remédio resolveu o problema. Às vezes, estimular algum tipo de atividade ao longo de sua permanência na Febem já foi o suficiente para tornar a vida daquele adolescente mais saudável. É para isso que a gente está lá.

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