Culpa e pecado

Conduta médica não pode ser enquadrada num tipo penal

Autor

5 de agosto de 2006, 7h00

O artigo 21 do Código Penal Brasileiro prevê pena de reclusão de 6 a 20 anos por homicídio. Logo adiante, no parágrafo 4º, lemos: “No homicídio culposo, a pena é aumentada de um terço, se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou oficio, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro a vitima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio a pena é aumentada em um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 anos”.

É nesse contexto que toda vez que se entender, em tese, que a morte de um paciente se deu não porque tinha que acontecer, mas porque o médico foi o culpado, o doutor estará submetido ao rigor legal. Temos, por força da profissão, lidado com os médicos que estão tendo esse dissabor de se verem processados pelo crime de homicídio. Aliás, mais que um dissabor, uma verdadeira via crucis para quem vive em prol da saúde e da vida, com um padrão ético de conduta profissional.

Não são muitos, graças a Deus, os que vivem esse martírio. Porém, uma análise é preciso que seja feita, pois, assim como nas ações indenizatórias (responsabilidade civil médica), estamos observando um certo desvio na forma de alguns interpretarem a conduta médica e, erroneamente, na maioria das vezes por emoção, colocá-la como supostamente enquadrada num tipo penal.

É claro que não estamos e nem podemos ser contrários à instrução processual, seja ela civil, administrativa ou criminal, mas há de se ter em mente a necessidade de uma análise mais profunda, pré-processual, com o objetivo de uma apuração dos fatos com mais solidez.

A morte é inexorável. É a mais implacável certeza do homem. Entretanto, pode-se dizer, paradoxalmente, que os seres humanos jamais se preparam para ela e, ao perderem um ente querido, tendem a iniciar uma busca para encontrar — se houve circunstância para isso — um culpado para o triste evento. Gautama Buda dizia que “a maioria nunca percebe que todos nós aqui pereceremos um dia. Mas os que percebem esta verdade resolvem suas brigas pacificamente”.

É bem verdade que não se costuma ver cirurgiões oncológicos ou cardíacos serem processados na Justiça pelo crime de homicídio, pois de alguma maneira e por alguma razão óbvia, o parente que fica não consegue encontrar lógica para sustentar tal pretensão. E nessa linha de raciocínio vão também a autoridade policial e o Ministério Público.

Mas, se a morte advém após uma cirurgia bariátrica (redução de estômago em obeso mórbido), por exemplo, um sentimento poderoso de vingança parece se instalar quase que instantaneamente, provocando uma erupção de fatos que criam um ou mais desvios de interpretação a que nos referimos no início deste escrito, principalmente se o paciente era jovem. Citando o escritor e filósofo Lou Marinoff, “há varias maneiras de lidar com o sofrimento, uma delas é tentar passá-lo para outra pessoa, como se isso fosse realmente possível”.

Há toda evidência que ninguém aspira que uma pessoa querida, que se submete a um procedimento cirúrgico, morra. Daí entender que o cirurgião é um homicida há uma distância incomensurável. Mas a cultura judaico-cristã, da culpa e do pecado, não nos dá trégua.

Devemos alertar a sociedade que, ao nosso ver, o médico não pode — ou não deveria — sofrer o processo criminal, sobretudo por homicídio, sem uma filtragem mais rigorosa, técnica e ética e sem um juízo rigoroso prévio de admissibilidade. E muitos são os fatores a justificar tal assertiva, dentre eles, o fato do médico ao proceder num paciente está no livre exercício de uma profissão, que não exerce sozinho, precisando de auxiliares e estrutura, como tantas outras profissões.

O médico está muito longe da figura de “chefe de equipe” (caso dos cirurgiões) como ainda é concebido. No caso da cirurgia bariátrica, por exemplo, o paciente permanece em unidade de tratamento intensivo, no pós-imediato, afastando a possibilidade de se alegar destrato ou falta de atenção, devendo-se lembrar que em qualquer procedimento cirúrgico a reação do organismo é variável a cada pessoa e relevante para a recuperação.

As investigações, às vezes, trazem intrinsecamente uma necessidade tão grande de condenar o médico que, durante um processo, são feitas certas empreitadas em pontos absolutamente fora da razoabilidade. Busca-se, de qualquer maneira, responsabilizá-lo ilimitadamente. Em nosso país, autoridades policiais, promotores, advogados, testemunhas e até julgadores têm a cultura da culpa e do pecado, sendo leigos em ciência médica.

Para um médico, ser processado por homicídio em razão da morte de seu paciente é sofrer um peso maior do que pode carregar. Porém, perceber que a busca pela sua condenação, por vezes, percorre um caminho passional, tentando vincular a ele todos as supostas ilicitudes que, inclusive, não estão sob sua responsabilidade, é maior do que o sofrimento. É uma quase-morte.

O Brasil precisa evoluir para esclarecer o que a Cirurgia Bariátrica é para os obesos mórbidos. Tratar os cirurgiões como criminosos seria a absurda hipótese de condenar a todos, pois as mortes, lamentavelmente, são contadas em frios e indesejados números estatísticos, tal o grau de risco.

O Estado precisa fomentar o aparelho jurídico com aulas urgentes e técnicas sobre o assunto, objetivando habilitar os seus membros para funcionarem em processos cíveis, administrativos e penais de forma mais embasada e melhor compreendendo o procedimento cirúrgico, seus riscos e seus pacientes com suas enfermidades.

O momento é do mais puro e necessário conhecimento multidisciplinar, sendo vital para a mantença da paz social.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!