Indução ao erro

É abusiva cláusula de plano de saúde que não deixa restrição clara

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1 de agosto de 2006, 7h00

Se o consumidor não tiver plena consciência da restrição, é abusiva a cláusula de seguro de saúde que cobre de forma parcial o tratamento de doença grave. Com esse entendimento, a 22ª Vara Cível de São Paulo condenou a Bradesco Saúde a pagar todo o tratamento de câncer de uma segurada. Cabe recurso. Esta não é a primeira vez que a empresa é condenada por cláusulas abusivas em seus contratos.

Em 2004, a segurada descobriu que tinha de câncer de pulmão. Ela teve de se submeter a uma cirurgia e diversos tratamentos. O plano de saúde se recusou a reembolsar o valor total dos gastos. Em outra ação, a segurada conseguiu parte do montante que pagou pelos procedimentos. Nesta, em que foi representada pelo advogado José Rubens Machado de Campos, do escritório Machado de Campos, Pizzo e Barreto, pediu o ressarcimento do valor total.

O juiz Carlos Eduardo Pratavieria observou que o contrato traz interpretação dúbia ao consumidor, “induzindo-o em erro”. Segundo ele, o contrato deixa claro que há cobertura para câncer. No entanto, “a restrição de reembolso atinente ao pós-operatório não esclarece se o tratamento ofertado é o suficiente para o caso em questão, nem se há outro tipo de opção”.

O juiz afirmou que a redação das cláusulas leva o consumidor a acreditar que terá cobertura para tratamento de doenças graves como o câncer e na verdade isso não ocorre. Ele concluiu que a Bradesco Saúde não deixou claro à segurada que a cobertura seria parcial.

Diante da ameaça de sobrevivência da segurada, o juiz entendeu que a persistência do contrato seria “despropositada e absurda”. Ele entendeu que os contratos de saúde não podem se comparar àqueles direcionados apenas pela lógica do lucro. “Nele está em jogo a vida das pessoas, que é o valor primeiro e do fundamento último de toda ordem jurídica”, afirmou.

Leia a íntegra da decisão

Processo nº 05.045405-6

Vistos.

Xxx ajuizou esta ação em face de BRADESCO SAÚDE S/A, aduzindo,em apertada síntese, que é conveniada à requerida e em janeiro de 2004 lhe foi diagnosticado um nódulo de origem cancerígena, sendo obrigada a submeter-se à cirurgia. Todos os gastos forma por ela suportados, mas o réu não a reembolsou integralmente. Parte foi objeto de acordo em outra ação. Por meio desta pede o reembolso integral das despesas efetivadas e das futuras para eficaz tratamento de sua enfermidade, incluídas consultas, exames e outros procedimentos recomendados pelos médicos, notadamente os fisioterápicos de recuperação. Pede a declaração de nulidade de cláusulas contratuais e interpretação mais favorável ao consumidor, além de fixação de preceito cominatório.

Deferida a antecipação de tutela para ao fim almejado, foi a ré regularmente citada e contestou a ação argumentando, em síntese, que há expressa exclusão contratual. Pede a improcedência.

Houve réplica.

RELATADOS.

DECIDO.

Trata de questão unicamente de direito, que dispensa a produção de outras provas além das que instruem os autos, motivo autorizante de se dar o julgamento no estado do processo, modalidade julgamento antecipado da lide.

A relação que envolve as partes é, certamente, de consumo. Embora a ré não preste diretamente os serviços médicos por meio de rede conveniada, o contrato impõe limitações que vinculam o consumidor a atuação dentro de seus limites, sendo certo que o seguro, em si já representa relação de consumo, pois não deixa de ser um serviço de garantia de cobertura ofertado pela seguradora.

Afirma o réu que o contrato fora cumprido dentro de seus termos e deve-se observar o bracardo pacta sunt servanda.

O contrato que envolve as partes é de trato sucessivo, sem prazo certo para encerramento, daí a necessidade de sua adequação aos ditames legais específicos, notadamente o CDC.

Em seu art. 4°, o CDC previu a implementação de uma Política Nacional de Relações do consumo, tendo como objetivos: o atendimento às necessidades dos consumidores, respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção dos seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida e a transparência e harmonia das relações de consumo.

Tratam-se de princípios norteadores, normas pragmáticas que estão presentes em todo o corpo legal do CDC.

Falando sobre o tema, Antonio Hermen de Vasconcelos e Banjamim ensina que: De fato, a lei, por mais ampla que seja, não possa de um capítulo do direito. É componente de um todo. Daí — nas palavras precisas de Antônio Junqueira de Azevedo —, “é preciso não confundir todo direito com uma lei”, um singelo esqueleto, sendo que “a vida a este esqueleto vai ser dada pela doutrina, pela jurisprudência e, principalmente, pelo próprio espírito do povo, fonte última da própria lei, da doutrina e da jurisprudência” (grifos no original). Por conseguinte, compete ao intérprete a árdua tarefa de proceder à intelecção da lei em sintonia com as exigências atuais do espírito do povo, mesmo que ao fazê-lo tenha de abandonar princípios e conceitos arraigados. E o espírito do povo hoje reclama uma tutela efetiva — direta, célere e dinâmica — do consumidor. Eis a razão da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, instrumento primeiro de regramento do mercado de consumo e, ressalte-se, de tutela do consumidor, como norma de ordem pública e interesse social (art. 1°). (Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, Ed. Saraiva, 1991, pág. 23 e 24).


Deve-se ter em mente que não mais se pode oprimir o consumidor ao bel prazer dos fornecedores de serviço.

De há muito que as poderosas empresas de plano de saúde e no mais todas fornecedoras de produtos e serviços se escondem atrás de pareceres, nada imparciais ou eqüidistantes, para fugirem de suas responsabilidades e, de uma forma ou de outra, levarem vantagens sobre os consumidores, normalmente mais indefesos, no sentido de infra-estrutura jurídica e financeira — hipossuficiente.

Tal postura começou diminuir com o Código de Defesa do Consumidor, que veio colocar freio nessa conduta.

Ponto central da discussão é a cobertura do tratamento necessitado pela autora.

Pelo teor da escritura do contrato, tem-se que a sua redação é por mais deficiente, a ponto de trazer dúbia interpretação ao consumidor, induzindo-o em erro.

É que de fácil entendimento que há cobertura do tratamento da autora (cancerologia), contudo, o direito exposto no contrato não é exatamente aquele que o consumidor pretende obter.

O caso concreto é exemplo claro dessa deficiência de informação que macula a restrição da cláusula, justamente porque maquiada pela forma de sua redação.

Ao leigo basta a informação que são cobertos serviços de tratamento de câncer. Desconhece ele em que consiste esse tratamento. O que lhe interessa é que esteja protegido caso tenha a infelicidade de ser acometido por esse mal.

Pela leitura do contrato, não resta dúvida que há cobertura.

A restrição de reembolso atinente ao pós operatório não esclarece se o tratamento ofertado é o suficiente para o caso em questão, nem se há outro tio de opção.

Ora, parece óbvio que ninguém busca cobertura parcial de tratamento. Se a pessoa está acometida de uma doença, pretende ver-se tratada com todos recursos possíveis e a redação da clausula, que conflita diretamente com aquela que dá cobertura, não esclarece suficientemente o consumidor.

A redação das cláusulas atinge de morte a boa-fé que deve haver nas contratações, justamente por mascarar na mente do consumidor leigo, a idéia de que estaria ele coberto para o tratamento de gravíssima doença, quando na verdade não está, daí a necessidade de se impor os princípios basilares do direito consumeirista, não interferindo na manifestação de vontade das partes, mas sim equilibrando essa relação do onipotente fornecedor de serviços com o hipossuficiente consumidor, dando isonomia ao trato. Lembre-se que isonomia é tratar de forma diferente pessoas em situações — sociais, físicas, econômicas, jurídicas etc. — diferentes.

Não cuidou o réu de esclarecer adequadamente o consumidor sobre o fato de que a cobertura para o tratamento do câncer era, em verdade, apenas parcial, de que um tratamento mais específico poderia não ser prestado (CDC, art. 31 c.c. art. 39, inc. I). Nada disso fez, retirando do contrato a boa-fé que dele se deve exigir, notadamente quando trazido o caso ao Judiciário.

Assim, de se considerar abusiva a cláusula restritiva de tratamento fisioterápico para continuidade do tratamento, assim como todo procedimento de acompanhamento posterior, sem que se tenha dado plena ciência dessa restrição e seus efeitos ao consumidor contratante (CDC, art. 51, inc. IV e XV), pois direito basilar seu (CDC, art. 6°, inc. III).

As cláusulas restritas (2.1 “j” e 3, “j” e “q”) não são nulas por si só, mas apenas não se aplicam ao caso concreto da autora, pois as consultas e exames complementares, assim como a fisioterapia são necessários e imprescindíveis ao tratamento de câncer, para o qual o contrato dá cobertura. São ineficazes à autora as cláusulas em questão, pelo que acima foi dito.

Questão análoga à limitação de tratamento é aquela que visa também limitar os dias de internação em UTI. São similares as restrições, porque dão cobertura para o inicio do tratamento e, embora imperiosa a sua continuidade, simplesmente os consumidores têm a cobertura obstada, em prejuízo, não somente do tratamento em si, como da própria vida e da dignidade humana.

Sobre o tema, cuja análise e fundamentação se encampa como luva ao caso dos autos, coloca pá de cal no assunto, em brilhante voto, o Des. Cezar Peluso (AC 57.169-4-SP — Apte. I. Sistema de Saúde Ltda. — Apdo. Espólio de C.O.R., representado por sua inventariante). (Voto n° 10.823):

“… Deveras é nula a cláusula contratual que, em plano de saúde, limita o tempo de internação em unidade de terapia intensiva…” poder-se-ia dizer, limita o tratamento de câncer ao que estiver disponível em determinada área geográfica, …e sê-lo-ia ainda quando, por hipótese, tivesse sido acordada antes do início de vigência do chamado Código de Defesa do Consumidor, que a averba de nulidade de pleno direito (artigo 51, caput, inciso IV, e § 1°, incisos, I, II e III, da Lei Federal n° 8.078, de 11.9.90).


É especioso o argumento básico, a que se reduzem as razões recursais, de que, na hipótese, o sistema jurídico não impõe obrigações não previstas no contrato. O de que se trata não é de impor obrigações que o contrato não contenha, senão de reconhecer a pronunciar a invalidez e a conseqüente ineficácia de cláusula que limite ou exclua a obrigação já compreendida nas virtualidades lícitas do negócio jurídico. Ou seja, o caso é de remover obstáculo prévio, unilateral e ilegítimo à exigibilidade de obrigação genérica pactuada e, com isso, de recompor o equilíbrio da avença, o qual não se situa nem afere apenas no plano das correspondências de caráter econômico ou financeiro, mas no quadro harmônico de todos os proveitos esperados pelos contraentes.

A estratégia normativa, aqui, é de atender ao princípio da conservação do contrato, fulminando de nulidade a cláusula, sem a qual desata-se, quando concretizado a suporte fático (fattispecie concreta), a obrigação da prestadora de serviço, ou a seguradora.

E tal nulidade vem do caráter abusivo, que, em nada em nada entendendo com a figura do abuso de direito prevista no artigo 160, inciso II, do Código Civil, senão com a demasia ou iniqüidade do resultado prático à luz do sistema jurídico, é agora objeto de repressão normativa expressa, segundo o Disposto no artigo 51, caput, inciso IV, e § 1°, inciso I, II e III, do Código de Defesa do Consumidor, e já o era, aliás, da ordem precedente. E não precisa muito para o demonstrar.

Tipificando-se, aqui, uma condição geral do contrato de seguros de serviços médico-hospitalares, ou de plano de saúde, qualificada pelas notas de preestabelecimento, unilateralidade, uniformidade, abstração e rigidez, a qual se transformou em cláusula de contrato de adesão, parece indiscutível que, pré-excluindo obrigação da seguradora a prestar, após curto limite temporal, em caso de internação em unidade de terapia intensiva, tal cláusula põe o consumidor em desvantagem injuriosa e ofende os princípios cardeais do sistema, que o protege como pessoa humana, ao decepar-lhe direito fundamental inerente à natureza do contrato e aniquilar a função socioeconômica deste, que é a de garantir pagamento das despesas médico-hospitalares indispensáveis ao resguardo, preservação ou recuperação da saúde do aderente.

Seria fraqueza de espírito insistir em que, se o doente fica, depois de certo período na unidade, privada do custeio das despesas necessárias à continuidade do tratamento de crise aguda que, por pressuposição, lhe ameace a sobrevivência, então estão comprometido, do ângulo de seus interesses, o próprio objeto da tutela contratual, porque submete a risco insuportável a vida mesma.

Esse risco perverso tornaria despropositada e absurda a persistência do contrato, porque, tendo por escopo último socorrer, dentro de certos limites, a saúde do aderente, condena-lo-ia contraditoriamente, com a interrupção possível do tratamento, a agonia dolorosa e a morte certa, a menos que, a despeito do adimplemento do prêmio, dispusesse de recursos cuja posse o dispensaria da necessidade de ajustar o seguro. É como se o contrato fora acordado para acudir doenças e crises graves, sim, mas sempre de prazo curto e predeterminado, após o qual já não valeria apenas para um dos contratantes, o mais fraco e em risco de vida!

Tal absurdo deve ser sobretudo discernido e realçado nos horizontes dos valores constitutivos do contrato de seguro de saúde, ou análogo, o qual não pode equiparar-se a negócios jurídicos de efeitos estritamente patrimoniais. Nele está em jogo a vida das pessoas, que é o valor primeiro e o fundamento último de toda ordem jurídica.

Por isso, são-lhe inoponíveis as objeções ou interpretações baseadas nos cálculos mesquinhos das operações econômicas ou financeiras. Não se pode reduzir tais contratos aos padrões dos negócios governados apenas pela lógica dos lucros. É preciso ir além, enxergar um pouco mais alto, no sistema jurídico-normativo, e deixar-se iluminar pelos princípios que se radicam na dignidade da pessoa humana, hoje sublimada à condição constitucional de fundamento da República (artigo 1°, caput, inciso III, da Constituição, e perante a qual devem justificar-se as normas jurídicas e toda a juridicidade (cf. Castanheiras Neves, “Questão-de-Facto-Questão-de-Direito”, Coimbra, Livraria Almeidina, 1967, pág. 507). Extraído de Comentários à Lei de Plano Privado de Assistência a Saúde, Ed. Saraiva, 2ª ed. 2000, pág. 277/279.

Então, nenhum impedimento há para a cobertura integral do tratamento.

Assim, por qualquer angula que se enfoque a questão, soa tranqüilo a abusividade de limitação de tratamento, razão pela qual, pertinente e procedente os pedidos da autora, para que o réu arque com as despesas de tratamento, de forma integral, pois o tratamento não pode ser fracionado sem prejuízo ao doente.

Isto posto, JULGO PROCEDENTE o pedido para condenar a ré a arcar com todo ao tratamento da autora, já efetivado ou por se efetivar, nos moldes dos pedidos de fls. 19, alíneas “e” e “f”, convalidando-se a antecipação de tutela, inclusive a multa cominatória. JULGO EXTINTO o processo nos termos do art. 269, I, do Código de Processo Civil.

Pelos ônus da sucumbência, arcará o réu com as custas e despesas do processo, bem como honorários de advogado da parte contrária, que se fixa em 05 (cinco) salários mínimos (CPC, art. 20, § 4°).

P.R.I.

São Paulo, 12 de julho de 2006.

CARLOS EDUARDO PRATAVIERIA

Juiz de Direito

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