Caos prisional

Defensoria pede transferência de presos de Mirandopólis

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1 de agosto de 2006, 21h01

A Defensoria Pública de São Paulo pediu nesta terça-feira (1º/8) a transferência de todos os presos da Penitenciária Nestor Canoa – Mirandópolis I, no interior, para outras unidades prisionais da Secretaria da Administração Penitenciária paulista.

O defensor público e coordenador regional da Defensoria Pública de Araçatuba, Pedro Antonio de Avellar, que visitou o local, disse que “todos os portões que dão acesso ao pavilhão ocupado pelos 1.250 presos estão soldados e lacrados. Não há, pois, celas em condição de serem habitadas, muito menos colchões e material higiênico”. A representação deve ser analisada pela juíza corregedora da Vara das Execuções e dos Presídios de Mirandopólis.

Avellar relata que os presos estão amontoados num único pavilhão onde cabem apenas 120, não há eletricidade, a alimentação é fornecida de forma precária. Também há notícias de presos portadores de doenças graves.

A situação é bastante semelhante com a do presídio de Araraquara (SP) que foi noticiado pela imprensa. A penitenciária chegou a ficar com o portão lacrado e com 1.443 detentos confinados em uma área de 600 metros quadrados a céu aberto.

Leia a representação

Excelentíssima Sra. Doutora Juíza de Direito da 1ª. Vara das Execuções Criminais de Araçatuba

PEDRO ANTONIO DE AVELLAR, Defensor Público, Coordenador da Regional da Defensoria Pública de Araçatuba, conforme publicações do D.O.E. anexas, exercendo a Coordenadoria de Assistência Judiciária ao Preso neste Regional, tendo em vista as garantias ditadas pelo artigo 5º., incisos III, XLVI e XLIX e parágrafo 2º., da Constituição Federal, bem como dos ditames dos artigos 1º.; 40; 41 e 66, incisos VI, VII e VIII da Lei de Execução Penal, vem respeitosamente perante Vossa Excelência requerer a remoção de todos os presos da Penitenciária “Nestor Canoa” – Mirandópolis I, para outras unidades prisionais da Secretaria da Administração Penitenciária, preferencialmente nesta região, tendo em vista os fatos e fundamentos a seguir expostos.

Conforme amplamente noticiado, a situação da Penitenciária I de Mirandópolis é dramática e a condição de confinamento dos respectivos presos ultrapassa qualquer limite de razoabilidade e humanidade.

O signatário realizou recente visita ao referido presídio (ao que consta, a visita foi devidamente registrada em vídeo pela administração da unidade prisional), vindo a atestar no local que dois dos três pavilhões que abrigavam os sentenciados estão completamente destruídos.

Em conseqüência, os 1.250 sentenciados que cumprem pena nesse presídio (cuja capacidade é de 804 presos – Vide documento anexo, da própria S.A.P.) estão amontoados em um único pavilhão, destinado normalmente a abrigar 120 presos.

Conforme foi atestado pelo próprio defensor público subscritor, bem como por entidades públicas e outras não oficiais, o presídio está quase que completamente destruído. Todos os portões que dão acesso a esse único pavilhão ocupado pelos 1250 presos estão soldados e lacrados. Não há, pois, celas em condição de serem habitadas, muito menos colchões, material higiênico, etc.

A parte elétrica foi totalmente danificada e com isso também não há eletricidade no interior do pavilhão. Mesmo as partes exteriores desse pavilhão encontram-se queimadas, com todas as salas, inclusive para atendimento médico, danificadas. A alimentação é fornecida de forma precária e há notícia de diversos presos portadores de doenças graves, sem condição de efetivo atendimento.

Vasto material sobre tais denúncias tem sido veiculado na imprensa, sendo aqui juntadas algumas dessas publicações, dando conta, enfim, que o presídio deverá ser inteiramente reformado, não reunindo condição de abrigar, mesmo que precariamente, os 1250 seres humanos ali recolhidos.

Com isso, vêm sendo violadas as garantias constitucionais dos sentenciados, submetidos a tratamento desumano e degradante, com notícia inclusive da ocorrência de tortura (CF – art. 5º., inc. III), além do que totalmente prejudicada a individualização das penas (CF – art. 5º., inc. XLVI), além de não terem os presos assegurado pelo Estado o respeito à integridade física e moral (CF – art. 5º., inc. XLIX). Afronta ainda é de se registrar aos direitos advindos dos tratados internacionais de que o Brasil é parte (CF – art. 5º., parágrafo 2º.).

A obrigação de o Estado manter condições mínimas de alojamento de condenados é inequívoca e decorre de diversas normas, nacionais e internacionais, que dispõem, com clareza, a esse respeito, a começar pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, cujo artigo 10°. determina que: “Todos os indivíduos privados na sua liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana.”

De forma análoga, a Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José) determina que “Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”

Vale lembrar que ambos os tratados internacionais referidos foram devidamente ratificados pela República Federativa do Brasil, gerando direitos públicos subjetivos aos cidadãos brasileiros e gerando obrigações estatais correspondentes, nos termos do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal.

Dúvida não resta, portanto, de que é do Estado o dever de manter condições minimamente aceitáveis de encarceramento, obrigação essa que não vem sendo cumprida na penitenciária objeto da presente representação. Ao contrário, a situação de encarceramento vem gerando a dramática piora nas condições de sobrevivência dos presos, chegando-se ao paradoxo de que o ente público não só não cumpre seu mister de criar condições dignas de encarceramento, mas culmina por violar os mais elementares direitos da pessoa presa, como a de ser alimentada e provida de cuidados elementares de saúde.

Por derradeiro, não há uma afirmação pública categórica, ou no mínimo alentadora, de que tal situação será revertida de forma imediata. Pelo contrário, o que se assiste é uma notória passividade como se o fato de os presos estarem nessa condição fosse algo natural, decorrente das rebeliões ocorridas e que assim ficará por prazo indefinido.

Ora, se é certo que o presídio sofreu danos decorrentes de uma rebelião, também é certo que ao Estado incumbe, incondicionalmente, a preservação da dignidade mínima dos presos, em razão de normas jurídicas a que está inexoravelmente jungido.

Ainda que fosse para argumentar, mesmo que se pretendesse reformar o estabelecimento penal imediatamente, tal medida somente seria possível com a remoção dos presos, sem o que se torna inviável o ingresso de pessoal e material de construção necessário aos trabalhos.

Tratando-se de obrigações internacionais assumidas pelo País, caso a situação não seja imediatamente equacionada, certamente sobrevirão representações a organismos internacionais, acarretando não só a instauração de procedimentos de apuração perante as Comissões de Direitos Humanos da ONU e da OEA, como significará mais um constrangimento para a já desgastada imagem nacional no exterior.

A análise da capacidade e lotação das unidades prisionais da Secretaria de Administração Penitenciária dá conta de que os presos da Penitenciária de Mirandópolis (P 1) podem ser removidos imediatamente e absorvidos pelo próprio sistema. Haverá, naturalmente, superlotação nas unidades que houverem de recebê-los, mas este fato, também preocupante, certamente é muito menos grave do que o dantesco quadro de inequívoco desrespeito aos direitos humanos identificado no odioso aprisionamento aqui versado.

De se registrar, inclusive, que não registra bom senso a desculpa de que os prejuízos devem ser debitados aos próprios presos. Antes mesmo das recentes rebeliões ocorridas em todo o Estado já era mais que notória a superlotação das unidades prisionais, especialmente a P 1 de Mirandópolis (o documento ora juntado, emitido pela SAP, atesta isso). Também é notório que o Estado não cumpre nem mesmo parcela ínfima dos direitos assegurados na Constituição Federal e melhor explicitados na Lei de Execução Penal, tais quais, dentre outros, o direito ao trabalho, à assistência material, à saúde, à assistência jurídica, educacional, social e religiosa.

Que dizer das regras mínimas que devem ser observadas no cumprimento da pena, como a capacidade do presídio, as celas individuais, em se tratando de penitenciária ? O espaço mínimo a ser ocupado ? O direito à higiene pessoal que não se revista de caráter humilhante ou degradante ? O direito e um espaço condigno para dormir, sem necessidade de escalas de revezamento para tal… ?

Basta que se leia, mesmo com uma rápida vista d’olhos, tudo o que registra a Lei de Execução Penal, para se ter certeza do descaso do Estado. No entanto, quando se trata do inverso, ou seja, quando se discutem os deveres do preso, ou a transgressão desses deveres, nisso o Estado, seja o administrador, seja o Ministério Público, seja o próprio Poder Judiciário têm sido inflexíveis, resultando sanções que diminuem ainda mais as expectativas de ressocialização, que é afinal o objetivo da lei de execução penal.

Esse quadro macabro, repita-se, não surgiu agora, com as recentes rebeliões. É bem mais antigo, fruto de equivocados entendimentos até mesmo de autoridades e políticas públicas, que fazem vista grossa a garantias que de outro lado registra a Constituição Federal.

Então, frente ao problema concreto aqui exposto, mister se faz a intervenção do Juízo, na função de corregedor dos presídios, para propiciar a remoção dos presos da Penitenciária I de Mirandópolis.

Bom que se diga, afinal, que problema idêntico se viu há poucos dias enfrentado pela Corregedoria Geral da Justiça, em recurso inominado contra decisão do Juiz da Execução Penal da VEC de Araraquara. Junta-se, em anexo, cópia da decisão da Corregedoria Geral da Justiça.

Diante do exposto, é a presente para requerer determine V. Exa. a remoção de todos os presos da Penitenciária I de Mirandópolis para outras unidades penais da Secretaria de Administração Penitenciária, preferencialmente desta região, no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência e responsabilidade objetiva do Estado pelos danos já causados à integridade física e moral dos que se encontram ali recolhidos, fixando multa diária de cento e vinte e cinco mil reais por dia de descumprimento, à razão de cem reais per capita.

Nestes termos,

Pede deferimento.

Araçatuba, 01 de agosto de 2006.

Pedro Antonio de Avellar

Defensor Público

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