Estado de direito assaltado

Invadir escritório de advogado é igual a violar confessionário

Autor

  • Nilo Batista

    é professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Candido Mendes. É presidente do Instituto Carioca de Criminologia.

28 de abril de 2006, 7h00

Agradeço aos prezados colegas da Associação Brasileira de Direito Financeiro, particularmente ao ilustre advogado Pedro José Alves, o convite para participar deste encontro — que poderia ser festivo, não fossem as preocupações que contristam todos aqueles que têm um compromisso verdadeiro com o Estado de direito democrático.

Estou aqui para compartilhar com os colegas minha opinião acerca da constitucionalidade e da legalidade das diligências de busca e apreensão em escritórios de advocacia, que recentemente passaram a integrar o entrecho da baixa dramaturgia policial servida diariamente, como noticiário e como publicidade — no pior sentido desta palavra — pelas emissoras de televisão. Contudo, não posso ir diretamente ao tema que me foi assinado sem contextualizar essas graves violações no quadro do que parece constituir um inquietante avanço do Estado de polícia sobre o estado de direito.

Procurarei fazê-lo de modo a integrar e compatibilizar os mais distintos horizontes político-criminais, porque a conjuntura sinaliza para uma crise do Estado de direito democrático, e isto fornece um núcleo teórico comum para múltiplas tendências. Todos sabem que, no passado, integrei militantemente uma corrente político-criminal[1] que foi fragorosamente derrotada ao preconizar que o barraco nas favelas era inviolável. A nível estadual tal corrente foi derrotada, pelo flanco direito, por forças que propunham aterrorização permanente das favelas e se deleitavam com mandados judiciais de busca domiciliar genéricos, abrangendo comunidades pobres com milhares de domicílios. A nível nacional, foi aquela corrente derrotada, pelo flanco esquerdo, por uma força política emergente para a qual — talvez agora isto esteja mais claro — nenhum lugar deveria ser inviolável.

Distante, agora e para sempre, destes instrutivos porém ásperos embates, no reencontro definitivo do magistério e da advocacia, procurarei em seguida desincumbir-me da tarefa proposta evitando interpretações econômicas que poderiam dividir-nos, desnecessárias perante os graves riscos a que está exposta a legalidade democrática neste momento, o que nos une a todos.

Entre os marcos teóricos que poderiam auxiliar-nos (como, por exemplo, o garantismo de Ferrajoli[2]) devo optar por aquele ao qual aderi, confluindo no pensamento de Raúl Zaffaroni[3]. Há tempos, na linha de Novoa Monreal e Aníbal Bruno, me dera conta da inconsistência da categoria jurídica do ius puniendi[4], e das vantagens teóricas de trabalhar-se com o conceito de poder punitivo. A distinção entre poder punitivo e direito penal é o ponto de partida para a compreensão de uma dinâmica essencial para o Estado de direito. O poder punitivo, que na antiguidade está disperso entre a casa, o templo e o palácio, constitui o elemento estratégico de toda hegemonia política.

A construção dos Estados nacionais europeus supôs um enorme represamento de poder punitivo (no mundo feudal tardio, disseminado em sua base legal entre estatutos senhoriais locais, costumeiros ou outorgados, concorrendo com o dúplice direito comum, o emergente ius mercatorum, e as constituições régias), represamento este que viria a exprimir-se nas práticas penais do absolutismo, que terminarão por prevalecer, não sem conflitos, sobre a franquia punitiva canônica que se reservara a inquisição moderna. O Direito Penal, ao contrário, é um saber jurídico que se engendrou historicamente como oposição e controle racional do poder punitivo, e que realiza precisamente esta tarefa no Estado de direito.

Se olharmos para o século XX, será fácil identificar as ocasiões e os lugares onde o poder punitivo não esteve submetido ao controle do Direito Penal, e para ficar num exemplo unanimemente reconhecido, mencionemos o poder punitivo nazista. A obra monstruosa daquele poder punitivo não seria exeqüível sem as alterações no velho Código Penal imperial que, a partir de 1933, começam a ser implementadas, com a flexibilização de garantias — inclusive do princípio da legalidade, em 1935. Os jovens juristas nazistas tinham um lema, que poderia perfeitamente estar hoje num editorial mais atrevido: Erst, Keine Strafe ohne Gesetz. Jetzt: Kein Verbrechen ohne Strafe! (Antes, nenhuma pena sem lei. Agora, nenhum delito sem pena!)


Não existe um Estado de direito democrático estagnadamente acabado, como hortus conclusus do empreendimento democrático. Dentro dele, pulsa surdamente e procura avançar, por todos os interstícios que se apresentam, o estado de polícia. Perceber essa permanente dialética é condição para avaliar a importância do Direito Penal como um dique — essa preciosa metáfora é de Raúl Zaffaroni — que contém a torrente do poder punitivo, e cuja imprescindível função é só permitir a passagem do poder punitivo que seja incontestavelmente constitucional, legal e racional.

O juiz, no Estado de direito democrático, tem precisamente esta função: a de filtrar implacavelmente toda a demanda de criminalização que lhe é apresentada, impedindo a passagem de todo poder punitivo que não seja meridianamente constitucional, legal e racional. Para exercer tal função — cuja importância para o Estado de direito dispensa considerações — dispõe ele do Direito Penal.

Se, ao invés de colocar-se nesta posição, o juiz resolve alavancar a demanda de poder punitivo, negligenciando garantias ou distendendo requisitos, ele está na verdade permitindo que o Estado de direito seja assaltado pelo Estado de polícia. O pior cenário é aquele no qual o juiz trata, ele próprio, de produzir avanço de poder punitivo,como aquele juiz inquisidor criado pelo artigo 3° da Lei 9.034/95, cuja inconstitucionalidade, pela afronta ao princípio acusatório, a Corte Suprema levaria quase dez anos para proclamar[5].

Podemos agora olhar para essas escutas telefônicas concedidas tão expeditamente, ou para essas prisões temporárias cuja desnecessidade qualquer pesquisa empírica sobre sua produtividade investigatória revelaria, se já não estivesse revelada por sua brevidade, que introduz a suspeita de serem, no fundo, um fim em si mesmas. Podemos nos perguntar como será possível, agora que o Supremo Tribunal Federal finalmente estabeleceu que o “tributo devido” constitui iniludível elemento normativo do tipo da sonegação fiscal (ou, solução tecnicamente menos correta porém politicamente tão eficiente quanto a anterior, condição objetiva de punibilidade), que só se perfaz com a decisão final da instância fiscal, como será possível autorizar uma aparatosa diligência policial sem que a autoridade que a pleiteia, seja o delegado de Polícia, seja o promotor de Justiça, apresente este dado essencial, este indício imprescindível da prática delituosa? Ou os atos preparatórios já são puníveis no Brasil, e o artigo 30 CP foi revogado sem que ficássemos sabendo pelo Diário Oficial?!

Pode ser ilustrativo, para algum colega mais cético, observar poder punitivo em estado bruto. Peço a este colega cético que olhe não para o exemplo grosseiro de um grupo de extermínio, mas sim para a hipótese mais dissimulada de uma CPI, e reflita sobre a circunstância de que todos os argumentos dirigidos contra o “procedimento investigatório” do Ministério Público, por falta de previsão legal de procedimento, são aplicáveis às CPIs. Aquela modesta Lei 1.579/52 lhes concede “ampla ação nas pesquisas”, para o que poderão “determinar as diligências que entenderem necessárias”, ouvir indiciados, inquirir testemunhas e requisitar documentos (artigos 1° e 3°).

Isto configura um cardápio, não um procedimento. Isto viola o devido processo legal em sua mais elementar expressão, o procedimento legal tipificado. E isto é, sobretudo, a grande causa das arbitrariedades e do autoritarismo que costumam cercar os trabalhos das CPIs. Poder punitivo solto é algo perigoso.

O deputado, semana passada, queria saber qual era a natureza da relação profissional entre um depoente e seu advogado: mais explicitamente, queria requisitar o contrato, queria saber o valor dos honorários! Na noite anterior, o <I>Jornal Nacional</I> usava a expressão “artifício” para referir-se à concessão liminar de Habeas Corpus que facultava ao investigado calar-se quando bem entendesse, atrapalhando aquela cena, da última temporada operística parlamentar investigatória, na qual o investigado era obrigado a firmar o compromisso de dizer a verdade, qual testemunha fora, para ser preso ao primeiro titubeio ou à primeira contradição. E o que dizer da excitação dos inquisidores, entusiasticamente compartilhada por jornalistas que fazem a cobertura, para arrancar alguma declaração comprometedora do investigado?


Esta obsessão para obter uma confissão, em longas sessões nas quais o investigado é freqüentemente achincalhado mais que inquirido, inscreve-se no paradigma da tortura por sua dinâmica, e no paradigma das penas infamantes por sua escandalosa exibição.

Introduziu-se, meio casualmente, o tema do olhar suspeitoso sobre a advocacia, que integra o quadro de sua criminalização. Seria ingenuidade imaginar que esta expansão de poder punitivo — à qual corresponde um Estado de direito acometido pelo Estado de polícia — é obra de alguns juízes ou promotores policialescos ou de alguns parlamentares exibicionistas. Há algo mais estrutural, porém quero destacar uma mentalidade punitiva que é intensamente divulgada pela mídia[6].

Reduzir toda a riqueza e complexidade dos conflitos sociais à bisonha lógica binária infracional pode ser muito importante, não por certo pelo que revele, mas pelo que esconda sobre eles. A cada dia estou mais convencido de que o poder punitivo, que domina completamente o noticiário, constitui hoje a referência cultural hegemônica no discurso jornalístico. Prestem atenção nas caras e bocas desses oráculos dos tempos pós-modernos: a notícia criminal não é servida a seco, para que o destinatário possa digeri-la segundo suas convicções.

Uma convicção geral, “global” se quiserem, é servida junto. Aqui um sorriso, ali um esgar indignado, mais adiante um ricto piegas, tudo conflui na imposição de uma ética da punitividade. Há uma astúcia dramatúrgica que elege, quando é preciso respaldo técnico, o “especialista” que está de acordo, aquele sempre disponível fast thinker, como dizia Pierre Bourdieu[7]. Alguém aqui já viu na TV algum especialista afirmar que tal ou qual Habeas Corpus foi bem concedido pelo tribunal, que havia efetivamente uma coação ilegal?!

Em suma, a mídia está muito longe de ser o imparcial cronista dessa escalada do Estado de polícia: é um dos protagonistas mais importantes, seja na difusão da mentalidade policialesca que a sustenta, seja na seleção dos casos que podem alimentá-la. Exceção feita a algum criminólogo nefelibata, todos sabem que o sistema penal opera seletivamente. Pois a mídia apoderou-se dessa seletividade, e aprofundou todas as disfunções dela derivadas. A mídia pauta as agências do sistema penal, na razão direta em que seus operadores sucumbam às tentações da boa imagem. Em alguns casos, o processo que verdadeiramente importa é o processo que tramita virtualmente, nas manchetes, nas imagens, na carranca dos âncoras que monopolizam a narrativa dos fatos. Todo colega que já funcionou num caso selecionado pela mídia sabe do que estou falando.

Não posso me deter sobre algumas propostas para superar democraticamente este impasse, como por exemplo o “direito de intervenção” de Hassemer[8]. Mas é fácil perceber que, nesse contexto, a advocacia é uma atividade na linha da criminalização. Quem se recordar das prisões a que foram submetidos advogados na ditadura do AI-5, ou mesmo de sua execução em outros momentos históricos, estará se dando conta de como é importante sensibilizarmos toda a classe, e a partir dela a nação, acerca do estado policial que se está implantando. Agora que vimos que o conselho advocatício está sendo metamorfoseado em cumplicidade, examinemos as diligências de busca e apreensão em escritórios de advocacia.

A proteção legal do escritório de advocacia poderia reportar-se ao direito à privacidade[9] ou à inviolabilidade do domicílio[10]; no último caso, porque a lei equipara expressamente a domicílio todo “compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade”[11]. Contudo, as linhas argumentativas que daí derivam apenas suplementariam aquelas que residem no núcleo da questão: a proteção legal do escritório de advocacia vincula-se diretamente ao princípio fundamental do direito de ampla defesa[12] e ao sigilo profissional que lhe é inerente. Suas raízes estão, portanto, naquilo que costuma designar-se por “velho e bom direito penal liberal”.


Em passagem célebre, observava o grande jurista liberal Carrara, na segunda metade do século XIX, que “de todas as idéias tirânicas, a mais tirânica (la più tirannica) é aquela que pretendesse que o advogado defensor comunicasse ao Ministério Público ou ao juiz as coisas que o cliente lhe confidenciou (le cose a lui confidate dal cliente)”[13]. Buscar nos papéis de trabalho do advogado qualquer espécie de prova contra seu cliente é, portanto — foi o venerando Carrara quem no-lo ensinou — realizar objetivamente a mais tirânica de todas as idéias tirânicas.

Nosso clássico João Mendes colocou a questão magistralmente, valendo-se de comentários de Faustin Helie sobre um aresto do Tribunal de Toulouse: “se a prevenção é dirigida contra o próprio advogado ou procurador, por fatos estranhos ao exercício de sua profissão, a autoridade competente tem o direito de proceder a todas as buscas e apreensões que julgar úteis; mas, si se trata de buscar, examinar e apreender cartas e outros papéis confiados ao advogado ou procurador, em sua qualidade de patrono do acusado, o seu escritório deve estar ao abrigo de buscas que tenham por objeto descobrir aí indícios ou provas dos delitos imputados a seus clientes. Não há justiça sem liberdade de defesa; e esta plenitude de defesa é um direito garantido pela Constituição”[14].

Esta lição secular foi acolhida por inúmeros ordenamentos de nossa família jurídica, com a única e justificada exceção dos casos em que detenha o advogado em seu poder o corpo de delito, pelas relevantes funções processuais dessa prova. Assim, no CPP italiano estabeleceu-se que “junto com os defensores (presso i defensori) não se pode proceder ao seqüestro de cartas ou documentos a eles consignados para o cumprimento de seu ofício, salvo quando tais cartas ou documentos integrem (facciano parte) o corpo de delito”[15].

Na Espanha, mesmo sem um texto tão claro quanto o italiano, é idêntica a solução proposta pela doutrina. Admite-se a diligência, ensina Cortés Bechiarelli, quando tenha ela “por objeto la investigación de los delitos presuntamente cometidos por el abogado”, entre os quais “el de encubrimiento” — correspondente a nosso favorecimento pessoal[16] — ou quando detenha o defensor “el cuerpo, los efectos o los instrumentos del delito”. Em contrapartida, “la entrada y registro (que) se llevem a cabo para intentar conseguir datos incriminatorios de un cliente del abogado (…) no puede producir efecto alguno en el procedimiento[17]. Pela mesma linha Moreno Catena: a apreensão de “documentos y notas que, sin constituir cuerpo del delito, estén en poder” do advogado configura uma “monstruosidad jurídica[18].

Nossa lei processual penal foi explícita a respeito. Dispõe o parágrafo 2° do artigo 243 CPP que “não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito”. Na lição imperecível de Frederico Marques, “vedado está ao juiz e à autoridade policial apreender cartas e documentos que o advogado retém em virtude de lhes terem sido entregues por clientes a quem está incumbido de defender”[19]. O prestigiado Tourinho Filho assegura que “em se tratando de documento que se encontra em poder do defensor (…) a diligência não será permitida”[20]. Seria grosseiramente contraditório com o dever legal de sigilo, imposto não só pelo Estatuto da Advocacia[21] quanto pelo Código Penal[22] e pelo Código de Processo Penal[23], que a lei autorizasse sua violação pela via oblíqua da busca e apreensão ou da interceptação telefônica.


Bernardino Gonzaga referenda, em seu notável ensaio, essas opiniões. Sem dúvida, “a ‘guitarra’ utilizada em estelionato” pode ser objeto de busca e apreensão, por constituir corpo de delito. Da mesma forma, “não possui o advogado a faculdade de acoitar em seu escritório o cliente sobre o qual pese mandado de prisão”. Contudo, “não têm nenhum direito as autoridades de entrar num escritório de advocacia para ali descobrirem os seus segredos: papéis em que os clientes descrevam sua participação num crime, identifiquem os co-autores, revelem o local em que se acham refugiados”[24].

A restrição quanto ao corpo de delito é totalmente justificável. Num caso de bancarrota documental, por exemplo, a detenção pelo advogado de “documentos de escrituração contábil obrigatória” que o cliente esteja ocultando[25] coloca o profissional na perspectiva da participação criminal, o que seria suficiente para legitimar a diligência. Não pode o advogado reter em seu poder o corpo de delito de uma infração penal.

Todos reconhecemos no atual ministro da Justiça um colega cuja biografia honra as lutas da advocacia brasileira; particularmente, tenho por ele grande admiração e estima pessoal. A Portaria 1.288/05, com a qual o ministro pretendeu disciplinar a atuação da Polícia Federal nessas diligências[26], entretanto, cabe naquelas decepções em que a emenda piora o soneto. Prescreve dita portaria que tais diligências “só poderão ser requeridas à autoridade judicial quando houver (…) fundados indícios de que em poder do advogado há objeto que constitua instrumento ou produto do crime, ou que constitua elemento do corpo de delito, ou ainda documentos ou dados imprescindíveis à elucidação do fato em apuração” (art. 2°, inc. II).

Ora, a lei só abriu exceção para “documento que constitua corpo de delito” (art. 243, § 2º CPP). Como pode a portaria admitir a diligência referida a “produto do crime” (para alguns membros daquela CPI, o interesse pelos honorários do advogado tinha este matiz), ou a “documentos ou dados imprescindíveis à elucidação do fato”, cláusula tão genérica que equivale a abrir indiscriminadamente todos os escritórios de advocacia à inspeção policial?!

No artigo 4°, quando a portaria proíbe — “salvo expressa determinação judicial em contrário” — a apreensão de “documentos relativos a outros clientes”, fica bem claro que saímos definitivamente do velho modelo democrático, e que se trata de invadir escritórios para colher efetivamente prova contra seus clientes. A “expressa determinação judicial em contrário”, ou seja, a ordem de uma busca e apreensão em todos os arquivos de um escritório de advocacia, é tão flagrantemente ilegal que melhor seria recomendar que a polícia não a cumprisse.

Convém encerrar estas observações. Em minha opinião, toda prova colhida em diligência de busca e apreensão em escritórios de advocacia que extravase da autorização legal (“elemento do corpo de delito” — art. 243, § 2° CPP) constitui prova ilícita, que não pode ser admitida no processo, segundo expresso princípio constitucional[27]. Não tenho dúvida de que a Corte Suprema, tão logo seja adequadamente provocada, imporá remate a tais arbitrariedades.

Nós, porém, advogados, que temos um compromisso com a ordem jurídica do Estado de direito democrático, para além de nossos interesses corporativos, não deveremos interromper nossa vigília. Essas decisões judiciais refletem uma mentalidade político-criminal perigosa para o Estado de direito, complacente com a “bigbrotherização” das relações sociais, com o vigilantismo eletrônico, com a inversão no estatuto ético da delação, com este ambiente inquisitorial que sacrifica as liberdades públicas em nome de um projeto autoritário que ninguém sabe aonde leva.

Quem acha que a invasão dos escritórios de advocacia, à procura do segredo profissional dos clientes, se justifica por conta de eventual esclarecimento de um delito, tem de achar igualmente legítimo introduzir microfones nos confessionários ou nos consultórios de atendimento psicanalítico. Na verdade, meus caros colegas, temos que escolher entre o culto da pena ou o culto da liberdade.


Peço desculpas se as nuvens pesadas que tentei descrever atrapalharam um pouco o almoço. Muito obrigado.

(Discurso proferido em palestra no Rio de Janeiro, na Associação Brasileira de Direito Financeiro, e publicado na revista Itec — Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais)


[1] A história da política criminal brizolista já começou a ser escrita: cf. Buarque de Holanda, Cristina, Política e Direitos Humanos, Rio, 2005, ed. Revan; Dornelles, João Ricardo W., Conflitos e Segurança, Rio, 2003, ed. L. Juris; Coimbra, Cecília, Operação Rio, Niterói, 2001, ed. Intertexto; Borges, Wilson C., Mídia, Violência e Conjuntura Política: a presença dos militares no Rio de Janeiro, Niterói, 2005, diss. mest UFF; as raízes históricas de seus opositores em Batista, Vera Malaguti, O Medo na Cidade do Rio de Janeiro, Rio, 2003, ed. Revan.

[2] A obra fundamental é Ferrajoli, Luigi, Diritto e Ragione, Roma, 1998, ed. Laterza.

[3] Zaffaroni, E. Raúl et alii, Direito Penal Brasileiro, Rio, 2003, ed. Revan, v. I, esp. cap. I.

[4] Cf. Batista, Nilo, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, Rio, 1990, ed. Revan, pp. 106 ss; para Novoa, cf. Homenage a Hilde Kaufmann, B. Aires, ed. Depalma, pp. 185 ss; para Bruno, Direito Penal, P.G., Rio, 1959, ed. Forense, v. I, t. I, p. 21.

[5] ADIn nº 1.570/UF, rel. Min. Maurício Corrêa.

[6] Em outra ocasião, detive-me sobre o tema: Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, em DS-CDS nº 12, pp. 271 ss.

[7] Sobre a Televisão, trad. M.L. Machado, Rio, 1997, ed. Zahar, pp. 38 ss.

[8] Uma descontraída exposição do autor sobre o tema (palestra no IBCCrim) em Hassemer, Winfried, Três Temas de Direito Penal, P. Alegre, 1993, ed. FESMP, pp. 95 ss. Algumas sugestões para o quadro legislativo brasileiro em Batista, Nilo, Novas Tendências do Direito Penal, Rio, 2004, ed. Revan, 79 ss.

[9] Art. 5º, inc. X CR.


[10] Art. 5º, inc. XI CR.

[11] Art. 150, § 4º, inc. III CP.

[12] Art. 5º, inc. LV; também XXXVIII, al. a, XXXII, XXXIII, XXXIV e passim.

[13] Programma, P.S., Lucca, 1896, 7ª ed., ed. Canovetti, v. II, p. 559 (§ 1643).

[14] João Mendes de Almeida Júnior, O Processo Criminal Brazileiro, Rio, 1901, ed. J. Ribeiro dos Santos, v. II, p. 52. Como ensinava Romeu Pires de Campos Barros, era esta comum “doutrina dos processualistas da primeira república” (Processo Penal Cautelar, Rio, 1982, ed. Forense, p. 403).

[15] Art. 341. Sobre a “insequestrabilità” desses documentos, cf. Leone, Giovanni, Trattato di Diritto Processuale Penale, Nápoles, 1961, ed. Jovene, v. II, p. 230.

[16] Art. 348 CP.

[17] Cortés Bechiarelli, Emilio, El Secreto Profesional del Abogado y del Procurador y su Proyección Legal, Madri, 1998, ed. M. Pons, pp. 202 e 203. A lei que rege a advocacia espanhola também prevê que a diligência seja acompanhada pelo decano do Colegio de Abogados, que velará “por la salvaguardia del secreto profissional ”.

[18] Moreno Catena, Victor M., El Secreto en la Prueba de Testigos del Proceso Penal, Madri, 1980, ed. Montecorvo, p. 233.

[19] Elementos de Direito Processual Penal, Rio, 1965, ed. Forense, v. II, p. 316.

[20] Código de Processo Penal Comentado, S. Paulo, 1998, ed. Saraiva, v. I, p. 448.

[21] Lei nº 8.906, de 4.jul.94, arts. 7º, inc. XIX e 34, inc. VII.

[22] Art. 154 CP.

[23] Art. 207 CPP.

[24] Bernardino Gonzaga, João, Violação de Sigilo Profissional, S. Paulo, 1976, ed. M. Limonad, p. 101.

[25] Lei nº 11.101, de 9.fev.05, art. 168, § 1º, inc. V.

[26] DOU de 1º.jul.05, nº 125, p. 50

[27] Art. 5º, inc. LVI CR.

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    é professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Candido Mendes. É presidente do Instituto Carioca de Criminologia.

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