Mulher no comando

“Posse de Ellen inaugura nova fase jurídica”, diz Celso de Mello

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27 de abril de 2006, 21h56

Para o ministro Celso de Mello, a posse da ministra Ellen Gracie como a primeira presidente da corte suprema brasileira é um marco na história do Judiciário brasileiro. Em seu discurso durante a cerimônia de posse de Ellen nesta quinta-feira (28/4), Mello ressaltou as importantes conquistas do movimento feminista.

Celso de Mello falou em nome de todos os ministros do Supremo. Ele lembrou que o processo de afirmação da condição feminina teve um significativo reconhecimento quando Ellen foi nomeada ministra pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2000. Sua ascensão para a presidência da corte seria uma continuação desse reconhecimento.

“Inaugura-se, na história judiciária do Brasil, uma clara e irreversível transição para um modelo social que não mais convive com a intolerável discriminação de gênero e com a inadmissível exclusão preconceituosa das mulheres dos processos sociais e políticos”, disse o ministro.

Mello também ressaltou a importância do Supremo continuar cumprindo sua obrigação, de zelar pela Constituição.

Leia a íntegra do discurso

Esta cerimônia, mais do que a celebração de um ritual que se renova desde 1891, constitui, na solenidade deste instante, o símbolo da continuidade e da perenidade desta Corte Suprema, tal como foi ela concebida, em momento de feliz inspiração, pelos Fundadores da República.

Não creio que palavras possam descrever, adequadamente, o alto significado que este momento histórico representa não só na existência do Supremo Tribunal Federal, mas, sobretudo, na vida de nosso povo e na história das mulheres brasileiras, cujo esforço, talento e valor têm contribuído, de modo decisivo, para tornar o Brasil um país mais digno, mais justo, mais forte, mais consciente de sua importância e mais aberto a todos, sem exclusões, sem discriminações e sem intolerância.

O longo itinerário histórico percorrido pelo movimento feminista, seja em nosso País, seja no âmbito da comunidade internacional, revela trajetória impregnada de notáveis avanços, cuja significação teve o elevado propósito de repudiar práticas sociais que injustamente subjugavam a mulher, suprimindo-lhe direitos e impedindo-lhe o pleno exercício dos múltiplos papéis que a moderna sociedade, hoje, lhe atribui, por legítimo direito de conquista.

Cumpre destacar o relevantíssimo papel pioneiro desempenhado, entre nós, no passado, por Nísia Floresta, Carlota Pereira de Queiroz, Bertha Lutz, Chiquinha Rodrigues, Mirtes de Campos, Anésia Pinheiro Machado, Nair de Teffé, Celina Guimarães Viana e Maria Augusta Saraiva, dentre outros grandes vultos de nosso País, que souberam impulsionar, no processo de afirmação da condição feminina, pela força de seu notável exemplo, a reação contra velhos preconceitos — muitos deles fundados em irracional sucessão de intolerantes fundamentalismos, quer os de caráter teológico, quer os de índole política, quer, ainda, os de natureza cultural — que impunham, arbitrariamente, à mulher, um inaceitável tratamento discriminatório e excludente que lhe negava, sem qualquer razão legítima, a possibilidade de protagonizar, como ator relevante, e fora do espaço doméstico, os papéis que, até então, lhe haviam sido recusados.

Vejo, portanto, na decisão do Senhor Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando nomeou Vossa Excelência, no ano de 2000, como a primeira Juíza da Suprema Corte do Brasil, o significativo reconhecimento de que o processo de afirmação da condição feminina há de ter, no Direito, não um instrumento de opressão, mas uma fórmula de libertação destinada a banir, definitivamente, da práxis social, a deformante matriz ideológica que atribuía, à dominação patriarcal, um odioso estatuto de hegemonia, capaz de condicionar comportamentos, de moldar pensamentos e de forjar uma visão de mundo absolutamente incompatível com os valores desta República, fundada em bases democráticas e cuja estrutura se acha modelada, dentre outros signos que a inspiram, pela igualdade de gênero e pela consagração dessa verdade evidente (a ser constantemente acentuada), expressão de um autêntico espírito iluminista, que repele a discriminação e que proclama que homens e mulheres, enquanto seres integrais e concretos, são pessoas igualmente dotadas de razão, de consciência e de dignidade.

A investidura de Vossa Excelência no elevadíssimo cargo de Presidente desta Suprema Corte, além de dar seqüência a esse processo de crescente afirmação da condição feminina, constitui, sem qualquer dúvida, momento impregnado de densa significação histórica, especialmente se se considerar, transcorridos quase dois (2) séculos desde a instalação, por força de Alvará Régio do Príncipe Regente D. João, em 10/05/1808, da Casa da Suplicação do Brasil – que foi, ainda na fase colonial de nosso processo institucional, o primeiro órgão de cúpula da Justiça do Brasil, sucedido, no Império, pelo Supremo Tribunal de Justiça (09/01/1829) e, na República, pelo Supremo Tribunal Federal (28/02/1891) –, que é Vossa Excelência, Senhora Ministra Ellen Gracie, a primeira mulher a assumir a condição eminente de Chefe de um dos Poderes da República.


Na realidade, Senhora Ministra ELLEN GRACIE, a escolha de Vossa Excelência para o Supremo Tribunal Federal, valorizada pela rica experiência de seu passado profissional e acadêmico, como Advogada, integrante do Conselho Seccional da OAB/RS, fundadora e Diretora, nesse Estado, da Escola Superior de Advocacia, Vice- -Presidente do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, membro do Ministério Público Federal, Presidente do E. Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Professora de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e bolsista da Fundação Fulbright, dentre outras inúmeras atividades, já representou, no momento mesmo em que efetivada a sua nomeação para esta Corte, um gesto emblemático, pois constituiu ato pleno de expressivas conseqüências políticas e sociais na história de nosso País.

Com essa opção por Vossa Excelência, Senhora Presidente, transpôs-se uma barreira histórica, rompeu-se uma resistência cultural e inaugurou-se, de modo positivo, na história judiciária do Brasil, uma clara e irreversível transição para um modelo social que não mais convive com a intolerável discriminação de gênero e com a inadmissível exclusão preconceituosa das mulheres dos processos sociais e políticos.

Celebramos, pois, aqui e agora, Senhora Presidente, um novo tempo, um tempo rico em transformações, que assume o elevado sentido de verdadeiro rito de passagem, pois se torna claro, agora, com a presença de Vossa Excelência na Presidência desta Suprema Corte, que o Brasil repudia comportamentos discriminatórios fundados em razões de gênero, ao mesmo tempo em que consagra a prática afirmativa, democrática e republicana da igualdade.

Esse fato — que se mostra impregnado de altíssima carga simbólica, quaisquer que sejam os aspectos considerados — representa, com grandeza, um expressivo momento histórico que há de se perpetuar na memória das grandes conquistas sociais, políticas e jurídicas do povo brasileiro.

A altíssima relevância de que se reveste a posse de Vossa Excelência, Senhora Ministra ELLEN GRACIE, no cargo de Presidente do Supremo Tribunal Federal, estimula, pela solenidade do momento, um instante de reflexão sobre o significado institucional, para a vida de nosso País, do Poder Judiciário, que não pode perder — sob pena de deslegitimar-se aos olhos dos cidadãos da República — a gravíssima condição de fiel depositário da permanente confiança do povo brasileiro, que deseja preservar o sentido democrático de suas instituições, e, mais do que nunca, deseja ver respeitada, em plenitude, por todos os agentes e Poderes do Estado, a autoridade suprema da Constituição da República e a integridade dos valores ético-jurídicos e político-sociais que ela consagra na imperatividade de seus comandos.

O Poder Judiciário brasileiro, por isso mesmo, há de se manter fiel à sua alta missão constitucional, devendo ser uma instituição livre de injunções marginais e imune a pressões ilegítimas, em condições de cumprir, com incondicional respeito ao interesse público e com absoluta independência moral, os elevados objetivos que pautaram a sua criação, consistentes em servir, com reverência e integridade, ao que proclamam e determinam a Constituição e as leis da República.

Nesse contexto, incumbe, aos Juízes e Tribunais, inclusive a esta Corte Suprema, o desempenho do dever que lhes é inerente: o de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, o de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a práticas discriminatórias e o de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal.

Ao assim proceder, o Poder Judiciário revelará fidelidade à sua vocação protetiva, amparando o real destinatário das atividades do Estado brasileiro, que é o povo deste País, valor fundante e legitimador da ordem democrática. Mais do que isso, os juízes e Tribunais, com essa atuação, demonstrarão que têm presente a advertência de TOBIAS BARRETO, grande mestre da Escola do Recife, para quem “um País em que o Povo não é tudo, o Povo, então, não será nada”.

Esta Suprema Corte, Senhora Presidente, possui a exata percepção dessa realidade e tem, por isso mesmo, no desempenho de suas funções, um grave compromisso com o Brasil e com o seu povo, e que consiste em preservar a intangibilidade da Constituição que nos governa a todos, sendo o garante de sua integridade, impedindo que razões de pragmatismo ou de mera conveniência de grupos, instituições ou estamentos prevaleçam e deformem o significado da própria Lei Fundamental.


Já o disse, certa vez, Senhora Presidente, que o Supremo Tribunal Federal — que é o guardião da Constituição, por expressa delegação do poder constituinte — não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a Suprema Corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas.

Nenhum dos Poderes da República, Senhora Presidente, pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios e a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência política ou de pragmatismo institucional, eis que a relação de qualquer dos três Poderes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação de respeito incondicional, sob pena de juízes, legisladores e administradores converterem o alto significado do Estado Democrático de Direito em uma palavra vã e em um sonho frustrado pela prática autoritária do poder.

A consciência da alta responsabilidade institucional de que é depositária esta Corte não nos permite desconsiderar, por isso mesmo, o fato de que nada compensa a ruptura da ordem constitucional, porque nada recompõe, Senhora Presidente, os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental.

Antes de concluir, Senhora Presidente, cabe-me acentuar que Vossa Excelência sucede, na direção desta Corte Suprema, ao eminente Ministro NELSON JOBIM, cuja atuação foi rememorada pelo decano da Corte, eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, que lamentou, em nome dos membros do Tribunal, “a precoce aposentadoria de um jovem”, que chegou ao Supremo com uma biografia pronta e consagrada, após expressiva passagem pela Advocacia, pela Câmara dos Deputados, pela Assembléia Nacional Constituinte e pelo Ministério da Justiça, proferindo, então, a respeito do Ministro JOBIM, palavras que vale relembrar:

É preciso marcar que a sua atuação na presidência do Supremo assinala dias de excepcional relevo para a história do Tribunal, seja pela administração extremamente operosa que fez internamente, seja pelas tarefas que cumpriu com galhardia, de dar alento à reforma constitucional do Poder Judiciário, e, promulgada a Emenda Constitucional, dar-lhe conseqüências (…).

(…)

‘A quem conhece a autenticidade de suas decisões, só cabe respeitá-las e, porque as respeitamos, é que lhe digo, com a maior sinceridade, que os que ainda ficam e os que ficarão por longo tempo, ainda sentirão a sua falta’.

É preciso que se ressalte, também, Senhora Presidente, que Vossa Excelência, ao longo de seu biênio administrativo, terá a valiosíssima colaboração do eminente Ministro GILMAR MENDES, hoje empossado na Vice-Presidência desta Corte Suprema, cujos altos predicados como grande jurista e doutrinador constitucional, já revelados — e por todos reconhecidos — em brilhante carreira acadêmica como professor universitário e em suas anteriores atividades profissionais, como Procurador da República, Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República e Advogado-Geral da União, bem distinguem Sua Excelência, que também presidiu ao E. Tribunal Superior Eleitoral, como um dos vultos notáveis do Supremo Tribunal Federal, digno do respeito e merecedor da justa admiração da comunidade jurídica e de todos os que têm o privilégio de com ele conviver neste Supremo Tribunal.

Apresento, ainda, em gesto de especial saudação, os cumprimentos respeitosos desta Corte Suprema aos Senhores Helena e José Barros Northfleet, bem assim à doutora Clara Northfleet Palmeiro da Fontoura, pais e filha da eminente Ministra ELLEN GRACIE, e, ainda, à doutora Laura Schelder Mendes, filha do eminente Ministro GILMAR MENDES, com quem temos o privilégio de partilhar este momento tão expressivo em suas vidas e tão pleno de significação na história do Supremo Tribunal Federal.

Concluo este pronunciamento, Senhora Presidente. E, ao fazê-lo, tenho a honra de saudar, em nome do Supremo Tribunal Federal, Vossa Excelência e o eminente Senhor Vice-Presidente, Ministro GILMAR MENDES, augurando-lhes uma gestão eficiente e estendendo-lhes a solidariedade de nosso integral apoio na resolução dos problemas e na superação dos desafios, notadamente daqueles representados tanto pela implementação definitiva da reforma do Poder Judiciário quanto pela adoção, em comunhão com os demais Poderes da República, das medidas que permitam estabelecer, em nosso País, um sistema de administração da justiça que se revele processualmente célere, tecnicamente eficiente, politicamente independente e socialmente eficaz.

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