Conflito inerente?

Evento da OMC discute diversidade biológica e Trips

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25 de abril de 2006, 7h00

No dia 30 de março, penúltimo dia da COP-8 (Oitava Conferência das Partes), foi promovido pela OMC — Organização Mundial do Comércio um evento paralelo que lotou a sala B1.14 do Expotrade em Curitiba. Pela primeira vez, a OMC promove um evento como esse, demonstrando o crescimento da importância do tema em debate. Nos referimos à relação entre a CDB — Convenção sobre Diversidade Biológica e o Trips.

Jayashree Watal, conselheira da OMC da divisão de propriedade intelectual, foi a organizadora e mediadora do evento, que também contou com a participação de representantes de três países membros da OMC que fizeram exposições sobre as posições de seus respectivos países e responderam perguntas dos presentes.

Pelo Brasil, falou Henrique Moraes, diplomata componente da delegação brasileira e um dos responsáveis pela área de Propriedade Intelectual do MRE e que também tem acompanhado as negociações da Agenda do Desenvolvimento; Martin Girsberger, da Swiss Federal Institute of Intellectual Property e um representante de Departamento de Estado dos Estados Unidos.

A apresentação foi iniciada por Jayashree que forneceu aos presentes um panorama geral da temática. Desta forma, iniciou sua apresentação com o histórico das negociações até então realizadas, destacando as formas básicas pelas quais os países membros da OMC têm encarado a relação CDB e Trips, especificamente no que diz respeito ao tema da existência ou não de um possível conflito entre citados tratados e a conseqüente necessidade de alteração do artigo 27(3) do Trips. Mais abaixo, apresentaremos citadas posições.

A representante da OMC fez questão de ressaltar, no inicio de sua palestra, que não estão sendo discutidos no âmbito da OMC os temas relativos ao certificado de origem/fonte/procedência legal e ao desenvolvimento de um possível sistema sui generis de proteção ao conhecimento tradicional e folclore.

Citados temas estão sendo tratados no âmbito da OMPI — Organização Mundial da Propriedade Intelectual, que, após consulta realizada pela ONU, apresentou propostas de tratado internacionais que podem ser conferidas nos documentos WIPO/GRTKF/IC/9/4 (sobre folclore) e WIPO/GRTKF/IC/9/5 (sobre conhecimentos tradicionais), atualmente em discussão no Wipo Intergovernmental Committee on intellectual Property and Genetic Resources. A próxima reunião desse comitê intergovernamental ocorrerá em abril, em Genebra.

Segundo Jayashree, os objetivos relativos ao acesso autorizado e a justa e eqüitativa divisão de benefícios (conhecido por sua sigla em inglês como ABS — Access and benefit sharig) aterrissaram na OMC a pedido dos países em desenvolvimento que fazem parte dos países megadiversos (Brasil, índia, Venezuela, entre outros). Desta forma, a primeira vez que o tema apareceu foi durante as discussões do Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente ocorridas no período entre 1995 e 1996, culminando no encontro de Singapura.

A partir de então, os países membros da OMC reconheceram que objetivos comuns são perseguidos em ambos os foros (OMC e CBD), apesar de existir forte distinção a respeito da forma de encarar como tais objetivos serão atingidos.

Nesse sentido, os principais objetivos comuns reconhecidos pelos países membros da OMC são (a) o de se evitar patentes errôneas ou com defeitos em sua validade, pelo não cumprimento do estabelecido na CBD e tratados que lidam com a temática das patentes (PCT) e (b) assegurar o consentimento prévio informado e a adequada divisão de benefícios.

As discussões no âmbito da OMC continuaram, sendo estabelecido, no encontro de Hong Kong, um mandato para implementação de quaisquer ações julgadas apropriadas em até, no mais tardar, 31 de julho de 2006.

Por sua vez, declarações da Rodada de Doha estabeleceram que o foco da discussão deve estar relacionado com a influência da relação CBD x Trips nas negociações relativas ao acesso aos mercados agrícolas e não agrícolas e, ainda, em novembro de 2001, fez constar o parágrafo 19 com a determinação: “We instruct the Council for Trips … to examine, inter alia, the relationship between the Trips Agreement and the Convention on Biological Diversity, the protection of traditional knowledge and folklore”.

Uma nova declaração ministerial de dezembro de 2005 determinou que os trabalhos continuassem, abrangendo, inclusive, consultas técnicas e que os relatórios fossem apresentados no próximo encontro ministerial da OMC.

Ao longo das discussões, as posições dos países membros da OMC foram sistematizadas em quatro formas de encarar a relação CDB X Trips:

(1) A não existência de qualquer conflito jurídico entre a CBD e o Trips, visto que cada um deles possui objetivos diferentes e não conflituosos. Desta forma, nada precisaria ser feito em relação ao Trips para assegurar que ambos os tratados serão adequadamente implementados no nível nacional de cada pais membro, ademais de acreditar que a implementação de ambos deve ser uma implementação construtiva e baseada nos objetivos gerais amplamente compartilhados, quais sejam, (a) o de se evitar patentes errôneas e (b) o de assegurar o consentimento prévio informado e a adequada divisão de benefícios;

(2) A não existência de conflito inerente entre os tratados, mas sem se pronunciar se algum tipo de ação internacional seria ou não necessária. Para os países que suportam essa visão, estudos adicionais que abranjam a troca de experiências nacionais seriam necessários e deveriam incluir a analise de prós e contras em relação as diferentes tendências de regulamentação internamente adotadas;

(3) A não existência de conflito inerente entre os tratados, mas afirmando a necessidade de ação internacional. Desta forma, ambos os tratados deveriam ser implementados com base em ajuda e suporte mútuos, incluindo a necessidade de que pedidos de patentes passassem a contar com a obrigação de alguma forma de disclosure. Para tanto, seriam necessárias alterações nos tratados internacionais sobre as matérias. Nesse ponto, os países que suportam essa visão dividem-se em: (a) necessidade de alterar o Trips, (b) necessidade de alterar o PCT, mas não o Trips, (c) necessidade de alterar, por meio do estabelecimento de cláusulas mandatárias, todos os tratados internacionais relativos a patentes; e

(4) Existência de um conflito inerente. Para os países que apóiam essa visão, urge a necessidade de reconciliação do Trips com a CBD, por meio da revisão do artigo 27.3 (b), visto que a patente sobre recursos genéticos não seria compatível com a soberania nacional e, dessa forma, qualquer patente sobre formas de vida, incluindo de microorganismos, deveria ser proibida.

As soluções para ação em relação à temática acima foram divididas em duas vias, a do national approach e a do disclosure approach. A via do national approach diz respeito à forma de regulamentação da questão para que a existência de um possível conflito fosse resolvido. Entretanto, para a maioria dos países, essa solução não seria viável em função de citada questão ultrapassar as fronteiras nacionais, visto o uso externo de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, ademais de eventuais problemas de jurisdição, entre outros.

Enquanto que a via do disclosure approach estabelece a obrigação para os requerentes de patentes que utilizam recursos genéticos ou conhecimento tradicional associados aos seus inventos, de revelarem, pelo menos, a fonte e o país de origem de citados recursos ou conhecimentos. O Brasil e a Índia estão entre os países que apóiam essa visão, assim como a União Européia e a Suíça, ressaltando-se, entretanto, gritante diferença de tais posições em relação à implementação de tal visão.

Desta forma, a titulo exemplificativo, para Brasil e Índia, a cláusula de identificação de origem deve ter natureza substantiva e obrigatória, enquanto para a UE a identificação seria um elemento formal. Ademais, para o Brasil e Índia, o disclosure refere-se à identificação da fonte e do país de origem do recurso genético e conhecimento tradicional associado, a evidência do consentimento prévio informado e a evidência do justo e eqüitativo repartição de benefícios.

Para aqueles que desejam uma visão mais aprofundada desta temática, atentem-se para o documento da OMC IP/C/W/368/Rev.1 de 8 de fevereiro de 2006.

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  • Brave

    é líder de Projetos do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito do Rio de Janeiro, responsável pelo Open Business. É também professora de pós-graduação na universidade.

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