Vida e obra

Vida de Reale oscilou entre o direito e a política

Autor

  • Taís Gasparian

    é advogada sócia do escritório Rodrigues Barbosa Mac Dowell de Figueiredo Gasparian e Tourinho e mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP.

15 de abril de 2006, 10h02

Nascido em 1910, no interior do Estado de São Paulo, Miguel Reale teve uma vida que oscilou entre o mundo jurídico e o político. Com trânsito fluente nessas duas áreas, Miguel Reale contribuiu para a elaboração dos mais importantes documentos jurídicos brasileiros da segunda metade do século 20. Esteve presente na elaboração da Constituição Federal de 1946; colaborou para a redação da emenda constitucional nº 1, em 1969; foi o responsável pela sistematização do anteprojeto do Código Civil; deu importantes subsídios quando da elaboração da Constituição Federal vigente e foi presidente da Comissão Paulista de Estudos Constitucionais, criada na Secretaria de Estado da Justiça, que tinha por objetivo elaborar sugestões para a revisão constitucional.

No que se refere à sua atuação política, Miguel Reale teve um passado de proximidade com o poder. Em 1935, estava na linha de frente do movimento anticomunista, tendo sido um dos líderes da Ação Integralista Brasileira, que possuía forte inspiração fascista. Foi grande colaborador de Adhemar de Barros, candidato vitorioso ao governo do Estado de São Paulo, em 1947, pelo PSP, ocupando o cargo de secretário da Justiça. Foi um dos fundadores do Instituto Brasileiro de Filosofia e, em 1950, foi nomeado reitor da Universidade de São Paulo.

Em 1962, apesar da distância que então o separava de Adhemar — em razão de ter sido preterido na indicação de seu sucessor-, novamente eleito ao governo de São Paulo, Miguel Reale retorna à Secretaria da Justiça. Dali, participou das articulações do Movimento de 1964, acreditando, verdadeiramente, serem as Forças Armadas, àquela época, as intérpretes fiéis da opinião pública.

Ultrapassados 13 anos da revolução, Miguel Reale, em depoimento à Folha, reafirmou sua crença no movimento: “Felizmente a estrutura janguista esboroou-se tal como se constituiu, melancolicamente, sem grandeza, e a Revolução, resolvida em poucas horas, quedou perplexa diante de seu próprio destino, até que fossem emanados atos definidores de uma diretriz até hoje ainda não claramente formulada, mas que, desde as suas origens, só pode ter por objetivo a realização de uma democracia social com liberdade e segurança”. Mais cético, no mesmo ano de 1977, em análise das reformas então apregoadas pelo presidente Geisel, Reale afirmou que “o processo revolucionário possui raízes mais profundas do que aquelas que condicionaram as primeiras atitudes aparentes, fazendo, com o tempo, brotar e desenvolver resultados que levam de roldão as intenções ou os cálculos originários”.

Mais uma vez assumiu a reitoria da USP entre 1969 e 1973, implantando a reforma administrativa e universitária. Em 1970, foi cogitado para suceder a Abreu Sodré no governo de São Paulo e, em 1975, em razão de problemas familiares, recusou convite de Leitão de Abreu para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal.

Mais tarde, por volta de 1978, defendeu a institucionalização do regime de 1964, inclusive tendo se manifestado a favor da anistia e da adoção de medidas visando à “abertura política”. Reconheceu, então, que a consolidação democrática somente se daria com a revogação do AI-5. Sempre cauteloso, não advogava a tese da revogação sumária, mas sim a substituição desse mecanismo por outros que pudessem “proteger a sociedade da grave ameaça de atos de violência e subversão”. Assentiu ser o AI-5 sempre indesejável, proclamando, em contrapartida, ser esse recurso sempre utilizado cada vez que o “Legislativo invade a área de segurança que o governo revolucionário reservou para si”. Em 1984, elogiou a campanha pelas eleições diretas, pelo seu caráter de “entusiasmo popular”.

Como filósofo e jurista, destacou-se, sem qualquer sombra de dúvida, como o maior paradigma que a filosofia do direito já teve no Brasil. Para Tristão de Athayde, a carreira filosófica de Miguel Reale teria sido uma tentativa crescente para libertar-se do rótulo de “integralista”, que o perseguiu durante décadas. Presente ou não uma atitude deliberada nesse sentido, o fato é que, apesar de a atuação de Reale sempre ter tido um caráter conservador, sua obra é um dos pilares de qualquer análise progressista do direito.

Extremamente inovadora para a época em que foi formulada, a Teoria Tridimensional do Direito, da qual Miguel Reale é considerado o fundador, é expressada pela integração de três fatores — fato, valor e norma — na experiência jurídica. Miguel Reale foi o primeiro, de acordo com os maiores centros de cultura jurídica mundiais, a conceber a experiência jurídica com essa conotação tríade, o que veio a proporcionar a compreensão do direito como experiência concreta. Rejeitou a antiga interpretação que considerava esses fatores de modo isolado, tendo com isso aberto nova fase nos estudos filosóficos nessa área.

Cursou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, no início dos anos 30, e em 1940, depois de um concurso conturbadíssimo, assumiu a cátedra de filosofia do direito da USP, dela só se aposentando em 1980, aos 70 anos.

Dizem, sobre o seu concurso de cátedra, que Miguel Reale foi aprovado pela banca examinadora, mas o parecer desta teria sido rejeitado pela congregação da faculdade. Reale teria, então, recorrido administrativamente da decisão ao interventor. Este, por sua vez, consultou Getúlio Vargas, que mandou que fosse lavrada a nomeação de Reale. Contam, ainda, que em 1943, os alunos da Faculdade de Direito permaneceram meses em greve, recusando-se a aceitar Reale como professor.

Seus alunos guardam a lembrança de um professor didático, porém rígido. Não fez sucessores na faculdade, sendo que Tercio Sampaio Ferraz Jr. e José Eduardo Faria talvez sejam, atualmente, os seus mais brilhantes discípulos.

Sua vasta obra na área jurídica conta com mais de 30 livros, destacando-se, dentre eles, “Fundamentos do Direito” (1940), sua tese de cátedra; “Teoria do Direito e do Estado” (1940), no qual já se nota a concepção da Teoria Tridimensional; “Filosofia do Direito” (1953), no qual sistematizou a metodologia da Teoria Tridimensional, sendo extrato dessa obra o livro “Teoria Tridimensional” (publicado em 1968), que ganhou repercussão internacional; e “O Direito Como Experiência” (1968).

Em 1962, escreveu um trabalho sobre “O Cansaço das Ideologias”, no qual, parodiando Machado de Assis, proclamou que por onde quer que se andasse, “havia um desencanto por toda e qualquer idéia encaixotada”.

Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo

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    é advogada, sócia do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian e Tourinho, e mestre pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP.

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