Reale por Reale Jr.

Miguel Reale foi um grande pai e um grande exemplo

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15 de abril de 2006, 10h17

Miguel Reale foi um homem que me marcou pelos valores que transmitia de humanidade. Era um humanista e tinha respeito pela pessoa humana, desde a mais simples. E esse é um dado que me emocionou no enterro. Encontrei pessoas simples que trabalharam com ele, há muitos anos, como um velho motorista da reitoria, que o serviu em 1973. Já aposentado, foi no feriado ao cemitério para nos dar um abraço.

Ele era um homem de hábitos simples, do interior e filho de imigrantes italianos. Pessoas culturalmente preparadas, mas modestas no seu cotidiano. Esse respeito contínuo aos outros, independentemente da condição social, foi muito importante para a compreensão da beleza do ser humano.

Também destaco a seriedade com que encarava a coisa pública. Acompanhei vários momentos de sua vida, inclusive com divergências, mas ele foi sempre dirigido pelo interesse público. De uma retidão e uma honestidade acima de qualquer exemplo. O processo educacional se faz muito pela forma como a pessoa age e transmite no dia-a-dia a seus filhos, e isso ele realizou comigo.

Sempre repetia que um dos princípios que marcavam o Código Civil era o da socialidade. Destacando-se, por exemplo, toda a visão da função social do contrato, da propriedade. É um código que se coloca como um programa de justiça social. O Código Civil é um de seus grandes legados.

Outra constatação importante foi a ida ao velório de alunos de diferentes gerações. Creio que ele amava muito a faculdade de direito, a nossa casa no Largo de São Francisco. Fui seu aluno no quinto ano. Ele tinha um gosto imenso em ser professor. Era um didata, com clareza e limpidez quando falava. Isto, sem dúvida, deixou marcas nos alunos. Todos se recordam de suas aulas. Nunca falou com um pedaço de papel na mão. Sempre o improviso. Era um greco-romano da limpidez das idéias e do estilo. E repetia uma frase de Ortega: “Sei que a primeira gentileza do filósofo é a clareza.” Falo também sem qualquer anotação. É uma característica do professor ter todas as idéias concatenadas e elas brotarem e saírem espontaneamente.

O professor, por outro lado, tinha um lado que me emocionava, que era a sua bonomia. Em discurso que fiz na homenagem aos seus 95 anos eu dizia que transformava o salão nobre em sala íntima para dizer o não dito, que o amávamos não por suas obras, mas pelas suas fragilidades dóceis, como o sorriso, os olhos azuis ingênuos. Apesar de ser um advogado e homem vivido, tinha uma ingenuidade perante a vida. Era o palmeirense fanático que assistiu ao jogo e morreu dez minutos depois. Seu acompanhante me disse que ele ficou muito contrariado com o jogo. Dez minutos depois, teve o enfarte fulminante.

Os netos freqüentavam muito sua casa. Os poucos amigos próximos, íntimos, morreram. Os professores da faculdade de direito da sua época morreram. Mas era um homem atualizado, que escrevia em O Estado de S. Paulo artigos de uma grande modernidade e atualidade.

Tinha grande incompreensão com o que se passa no plano político. Disse que não queria mais se inteirar porque não estava compreendendo. E carregou ali certa desilusão. Leu a entrevista que dei ao Estado, sobre o Watergate caboclo, embora não tivesse mais paciência para ler sobre a política brasileira. Mas tinha grande preocupação com os artigos que escrevia para O Estado de S. Paulo.

Uma das maiores admirações que tenho foi a responsabilidade que assumiu na educação de meus três sobrinhos. Minha irmã e meu cunhado morreram num incêndio em 1973 e as crianças tinham entre 1 e 6 anos. E também foi pai aos 60 anos. Nunca é fácil ser pai, ainda mais aos 60.

Não conversava sobre intimidades com os filhos. Tinha respeito à esfera privada do outro. Mas foi um grande pai com um grande exemplo no cotidiano e na dedicação à coisa pública.

Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo.

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