Tridimensionalidade Realiana

Ives Gandra escreve sobre a teoria de Miguel Reale

Autor

  • Ives Gandra da Silva Martins

    é professor emérito das universidades Mackenzie Unip Unifieo UniFMU do Ciee/O Estado de S. Paulo das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor honorário das Universidades Austral (Argentina) San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia) doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS catedrático da Universidade do Minho (Portugal) presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

14 de abril de 2006, 18h27

Não é fácil o exame da polifacetada obra da expressão maior da jusfilosfia brasileira, que é Miguel Reale. Desde a figura do poeta, do ensaísta, do cronista até aquela do jurista e do filósofo, o toque diferencial de seus escritos é manifesto.

Sua obra é de variado espectro, pois cultiva, também com igual grandeza, o estudo história e a reflexão literária, sobre manter percuciente observação da política brasileira, com escritos críticos e orientadores, sendo hoje, Miguel Reale, parte da história nacional, no seu desenrolar nestes últimos 60 anos.

Merece especial relevo, em seus estudos, a crítica que fez à doutrina hegeliana, à luz da fenomenologia de Husserl, assim como a análise do pensamento de Hegel, em face de sua concepção ontognoseológica (teoria da relação entre o ser que conhece e o objeto conhecido) e sua “dialética da complementaridade”, objeto amplamente exposto no livro “Experiência e Cultura”, de 1977, traduzido para o francês em 1990.

Bertrand Russel, ao estudar a dialética de Hegel, acentua a experiência histórica que a inspirou, levando o filósofo da “Fenomenologia do Espírito” a entender que a guerra era superior à paz, visto que as nações que não tinham inimigos terminavam por se tornarem fracas e decadentes. Reale, todavia, vai além e procura, não nas “oposições”, mas na “complementaridade”, explicitar o pensamento de Hegel, sem desconhecer a influência fenomênica, mas com adaptação ao pensamento de Husserl, nem sempre fácil de ser aferido.

Não só este aspecto, original e único, da visão realiana merece estudo, mas também sua contribuição à formulação “conjectural e plausível”, que ele eleva à categoria epistomológica (teoria do conhecimento), diversa da concepção probalística, pois facetas da genialidade do filósofo pátrio que vêm sendo analisadas em todo em mundo.

No campo do Direito, sua teoria tridimensional permanece incólume à crítica. O direito resulta da apreensão do fato, valorizado na norma. Fato, valor e norma conformam, pois, o “jus”. Nesta sua visão do tridimensionalismo dinâmico, as três componências do Direito restam equivalentes, lembrando-se que a arte de “valorar” bem é o que faz o Direito justo na norma que o recebe, pois, para mim o Direito ainda é a “arte do justo e do bom”, na linha da lição do romano Celso.

Ao contrário dos formalistas, que vêem no fenômeno jurídico apenas a norma, descompromissada de seus componentes fáticos e axiológicos (teoria do valor) — com o que justificam inclusive as ditaduras, ao retirarem o conteúdo ético da norma — a teoria tridimensional abrange o fenômeno jurídico pleno, que não cabe ao intérprete do Direito desconhecer.

Por esta razão, o professor Javier Garcia Medina, da Universidade de Valladolid, escreveu admirável livro intitulado “Teoria Integral del Derecho en el pensamiento de Miguel Reale”, demonstrando a importância do pensamento jurídico do jusfilósofo brasileiro no Direito Contemporâneo.

Voltando, todavia, a sua teoria tridimensional, é de se lembrar que, ao elaborar uma nova apreensão fenomênica desta permanente concepção, ofertando a dialética da complementariedade e mostrando a interação de fato, valor e norma, que produz nova interação, por força de novas tensões veiculadas pela jurisprudência ou pelo trabalho legislativo, não deixou de enfrentar questão que considerou de particular relevância, qual seja, a das três fases que permitem a percepção do direito aplicado 1. São elas: os fundamentos do direito natural, resultante do direito positivo e a conseqüência do direito interpretado. Os primeiros indicam as vertentes, embora em uma visão historicista-axiológica; a segunda conforma a lei posta pelos produtores da norma; e a terceira, a aplicação da lei, em face do trabalho hermenêutico de intérpretes e do Judiciário 2.

Lembra o eminente mestre e orgulho da filosofia e do direito brasileiros que a teoria tridimensional não é nova, rememorando mesmo os escritos da Vanini e Del Vecchio, em que já se visualizavam uma faceta “gnoseológica”, outra “fenomenológica” e outra “deontológica” no direito. Acrescenta, todavia, que, em sua concepção original e universal, o direito corresponde à normatização dos fatos influenciados por valores.

Na sua concepção, o filósofo, o sociólogo e o jurista poderiam examinar as mesmas realidades, o primeiro voltado mais à deontologia ou aos valores, o segundo à fenomenologia ou aos fatos e o terceiro à norma ou à “gnoseologia jurídica” 3.

Direito, portanto, não se reduz a uma instrumentalização normativa, mas é o resultado do fenômeno aprendido pelos operadores da norma, à luz de valores, que, teoricamente, seriam os mais necessários, naquele período e naquele espaço, para serem legalizados.


Embora na concepção realiana, o direito natural resulte de um processo historicista-axiológico — e não como na visão tomista, em que independe da história, porque inerente ao ser humano — reconhece que o vigor e o permanente ressurgir do direito natural decorre de que, no ser humano, o “ser” implica um permanente “dever ser” 4.

Discípulo do ilustre filósofo nos bancos acadêmicos e admirador de sua monumental obra, em um ponto apenas, por ser tomista, meu posicionamento segue caminho não diverso, mas paralelo, que, na conseqüência, não oferta resultado diferente. É que os valores que o processo histórico perpetua, a meu ver, não decorrem de uma elaboração evolutiva do ser humano, mas de singela descoberta daquilo que lhe é próprio, ou seja, de direitos que lhe são inerentes, independentes da história e do Estado, pelo simples fato de existir. Nascem tais direitos com o próprio ser humano, cabendo ao Estado e à história apenas reconhecê-los. E o permanente renascer a que se refere o ínclito mestre, decorre da realidade pela qual, muitas vezes, a história, o direito positivo e o Estado passam por períodos de obscurantismo, quando os valores que os influenciam e as normas que deles decorrem são afastados, por incômodos, como ocorreu na Alemanha de Hitler, na Cuba de Fidel Castro, no Chile de Pinochet, no Iraque de Saddam Hussein e na Rússia de Stalin 5.

O direito positivo, que não se opõe ao núcleo de princípios próprios do direito natural – e são estes princípios um feixe pequeno de normas permanentes e imutáveis – pode, em princípio, tudo “criar”, embora apenas “reconheça” o que é inerente às leis de direito natural, pois ínsito ao próprio ser humano.

É interessante que Hart, ao formular uma concepção do Direito mais vinculada à sua faceta normativa, é obrigado a reconhecer que há um núcleo pequeno de normas de direito natural, que o direito positivo de qualquer país não pode esquecer, embora, ao elencar os cinco campos de atuação do direito natural, os restrinja à mera constatação histórica de sua imutabilidade 6.

E Norberto Bobbio, que muitas vezes parece ser um “jusnaturalista envergonhado” em reconhecer tal postura, é obrigado a superar seu materialismo filosófico no direito, ao buscar na Ciência que o estuda ou na especulação filosófica do direito positivo, os fundamentos de uma postura quase que naturalista 7.

Não podendo desconhecer a existência de valores permanentes a influenciar o direito positivo, prefere dividir o Direito em três compartimentos de baixa interação e alta separação, apenas em um deles admitindo a especulação jusnaturalista (teoria da norma, teoria do ordenamento, teoria da ciência jurídica).

Entendo que o direito natural, numa visão escolástica, é o verdadeiro cerne do Direito, dele derivando todas as regras permanentes dos valores inseridas na normas positivas 8.

E nesta percepção, a deontologia jurídica passa a representar a própria razão de ser de toda a ciência do Direito e de toda a norma aplicada.

Ora, a ética, cuja definição mais adequada me parece ser:

Ia Etica es Ia parte de la filosofia que estudia Ia moralidad del obrar humano; es decir; considera los actos humanos en los cuanto son buenos o malos9, está na própria conformação do direito natural, visto que permeia todos os valores definitivos que devem estar integrados nas normas positivas 10.

Todo o sistema jurídico que diminui a relevância da questão ética, tomando tal valor despiciendo, tende a não respaldar os reclamos da sociedade, a tornar o Estado que o produziu menos democrático, quando não totalitário, e termina por durar tempo menor que os demais ordenamentos que a reconhecem 11.

Este artigo foi publicado na Revista do Advogado, editada pela Aasp — Associação dos Advogados de São Paulo, em novembro de 2000. A edição foi uma homenagem ao professor Miguel Reale, então com 90 anos.

Notas de rodapé:

[1] Teoria Tridimensional del Derecho (Editorial Tecnos, 1997).

[2] Miguel Reale, inclusive, oferta tratamento tridimensional à percepção da conduta ética, ao dizer: “É no plano específico da conduta ética, mais do que no plano da ação prático-econômica, exatamente em razão de seu projetar-se necessário e geral para ações futuras, que a tridimensionalidade se mantém como característica ou traço essencial, sem jamais se resolver em uma unidade capaz de pôr termo à tensão entre fato e valor. Não se trata, em tal caso, de expressar-se um juízo, de formular-se uma lei: nem tampouco de subordinar-se um conteúdo à plasticidade de uma forma. Trata-se de modelar-se o homem mesmo, de “Iegalizar-se” ou de “formalizar-se” o ser humano que é essencialmente liberdade e inovação: daí o caráter provisório, insuficiente de toda norma ética particular, cuja universalidade ética reside na tensão inevitável que a liberdade espiritual estabelece entre a realidade e o ideal. É a razão, segundo nos parece, pela qual a experiência ética apresenta sempre uma tensão e uma implicação necessárias, perenemente renovadas, entre dadas circunstâncias de fato e o plano das estimativas, o que se reflete na natureza e no devir de suas normas” (Filosofia do Direito, 2ª ed. Ed Saraiva. 1957. vol 2. p. 366).


[3] Nos fundamentos de sua teoria tridimensional, Miguel Reale ensina: “Nas últimas quatro décadas o problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que:

a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica, etc): um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo: e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor;

b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta;

c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo (já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram” (Lições Preliminares de Direito, José Bushatsky Editor, 1974. p, 74).

[4] Ives Gandra da Silva Martins Filho assim resume a lição de São Tomás Aquino sobre as diversas leis:

“h) Ética “recta ratio agibilium” (agir de acordo com a natureza racional, que é o princípio de operações – “agere sequitur esse”), Livre-arbítrio orientado pela consciência (sindérese – capacidade inata de, intuitivamente, captar os ditames da ordem moral, cujo primeiro postulado é “faz o bem e evita o mal”).

Lei Eterna – é o plano racional de Deus que ordena o Universo (Sabedoria Divina que dirige todas as coisas ao seu fim).

Lei Natural – “participatio Iegis aeternae in rationali creatura” (aquilo a que o homem é levado a fazer pela sua natureza racional). Resume-se nos 10 mandamentos e é cognoscível através da razão por todos os homens, pautando seu agir.

Lei Positiva – feita pelo homem para possibilitar a vida em sociedade (deve estar de acordo com o Direito Natural, sob pena de ser injusta, não obrigando ao seu cumprimento). Por dedução da lei natural, gera o “jus gentium” e por especificação das normas gerais dá origem ao “jus civile”.

Lei Divina – revelada por Deus (os 10 Mandamentos).

Justiça – disposição constante da vontade de dar a cada um o que é seu (“suum cuique tribuere”): Comutativa – entre iguais (contratos) Distributiva -do soberano aos súditos.

Legal – dos súditos para com o soberano” (Manual Esquemático de História da Filosofia. Ed. LTR, 1997, p. 3).

[5] Escrevi: “René Cassin, principal autor da Declaração Universal dos Direitos Humanos, esclareceu que “não é porque as características físicas do homem mudaram pouco desde o começo dos tempos verificáveis que a lista de seus direitos fundamentais e liberdades foi idealizada para ser fixada permanentemente, mas em função da crença de que tais direitos e liberdades lhe são naturais e inatos” (“Human Rights since 1945: An Appraisal”, The Great Ideas, 1971, Ed. Britannica. p. 5). Uma reflexão sobre a justiça pode perfeitamente principiar por estas palavras do grande jusfilósofo francês. A justiça é, fundamentalmente, aspiração do ser humano, que nasce com ele, acompanha-o durante toda a vida e não desaparece quando ele morre. A aspiração de justiça do ser humano transcende sua própria morte, como também é anterior à sua existência.

Sempre que ouvimos falar de Justiça, consideramo-Ia a partir dos poderes do Estado em administrá- Ia, não poucas vezes correndo o risco de reduzí-la à mera prestação-jurisdicional, que, embora relevante, não esgota sua concreção fenomênica” (Caderno de Direito Natural nº 1, CEJUP, Belém, 1985, p. 21).

[6] São a saber:

1. necessidade de protecção à vulnerabilidade humana;

2. a redução das desigualdades pessoais;

3. a conformação do limitado altruísmo do ser humano, nem anjo, nem demônio;

4. a valorização dos recursos escassos de produção de bens na terra;

5. a criação de sistema sancionário capaz de permitir o cumprimento das leis” (H. L.A. Hart, The concept of Law, Ed. Clarendon Law Series, Oxford University Press, New York, 1961, London, p. 121).

[7] Norberto Bobbio, Teoria das Formas de Governo (Ed. Universidade de Brasília, 1976) volta a desvendar este viés “jusnaturalista atimidado” nos livros “A Era dos Direitos” (Ed. Campos, 1992) e “Estudos sobre Hegel” (Ed. Brasiliense. 1995).

[8] C. Fabro. F. Ocáriz, C. Vansteenkisle e A. Livi escrevem: “Se puede entender así tambíen otro aspecto fundamental: Ias verdaderas razones y finalidades de Ia convivencia humana están en dar a cada pcrsona singular Ia possibilidad de difundir en los demás su propio bien y de ser ayudado por los demás (cfr. in III Polit. 5). De todo esto se puede deducir fácilmente cómo el bien común temporal de Ia sociedad humana no consiste solamente en el bieneslar material: antes está el bien espiritual, y el bien material alcanza su verdadero sentido humano precisamente en su ordenación al bien espiritual. Este bien espiritual no es otra cosa que Ia virtud moral, que establece entre los hombres no solamente Ia juslicia, sino también Ia amistad, que es lo contrario de Ia pretensión de mejorar Ia sociedad a través de Ia lucha o el conllicto, que separan a los hombres entre sí (cfr. In Vlll Ethic. 1) (Las razones del Tomismo. Ed. Eunsa. Pamplona. 1980. p. 76).

[9] Ética. Angel Rodriguez Luño. Ed. Eunsa. Pamplona. 1984. p. 17.201201

[10] Angel Rodriguez Luño lembra que: La Etica es una ciencia práctica, porque no se detiene en Ia contemplación de Ia verdad, sino que aplica ese saber a Ias acciones humanas». Mientras Ias ciencias especulativas se limitan a conocer realidades que no dependen de Ia voluntad humana, Ia Etica se ocupa de Ia conducta libre deI hombre, proporcionándole Ias normas necesarias para obrar bien. Es por ello una ciencia normativa, que impera y prohibe ciertos actos, puesto que su fin es el recto actuar de Ia persona humana.

Aristóteles afirma que no estudiamos Etica para saber qué es Ia virtud, sino para aprender a hacernos virtuosos y buenos; de otra manera, sería un estudio completamente inútil». Por eso, Ia voluntad jucga un papel importante en Ia adquisición dei saber moral: no es fácil considerar el recto orden de Ias acciones si Ia voluntad no está dispuesta a aceptarlo. Quien no quiere vivir rectamente no puede Ilegar al fin de esta ciencia y, por eso mismo, no conseguirá entenderla bien. La influencia de Ia voluntad es aún más decisiva en el conocimiento moral particular (conciencia y prudencia) (Etica, ob. Cit. p. 20).

11 Escrevi: Entendo que a visão mais correta é aquela que concebe o direito natural como inerente à condição humana. O homem nasce com certos direitos, que não vem a receber por mera repetição de fatos históricos que os valorize, mas tal repetição decorre do reconhecimento de sua inerência. Por esta razão, tais direitos são imutáveis e não circunstanciais.

Em verdade, tal polêmica esgota-se no rigor de sua conformação, visto que ambas as correntes entendem que os direitos principais, pertinentes a cada ordenamento jurídico, são de direito natural e não criação do direito positivo, que ao não reconhecê-los perde a legitimidade própria de sua força impositiva e reduz sua capacidade de permanência no tempo. A teoria do alcance da norma injusta reserva-lhe pouca extensão e durabilidade (A vida dos direitos humanos – Bioética Médica e Jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 132).

Autores

  • Brave

    é advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

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