Show do RDB

MP-SP aciona Pão de Açúcar e gravadora por acidente em show

Autor

12 de abril de 2006, 13h46

O Ministério Público de São Paulo entrou com ação civil pública contra a Companhia Brasileira de Distribuição (Pão de Açúcar) e a Gravadora EMI por conta do tumulto no show do grupo RDB, que acabou com um saldo de três pessoas mortas e mais de quarenta feridas. O show foi feito no estacionamento do Shopping Fiesta e organizado pelo Hipermercado Extra, no dia 4 de fevereiro.

Segundo o MP, os organizadores do evento — Grupo Pão de Açúcar e a EMI — não adotaram as providências necessárias para assegurar a segurança dos presentes (na maioria, adolescentes) e não tinham autorização da prefeitura, do Corpo de Bombeiros e da Vara da Infância e Juventude. Segundo os promotores, as autorizações são indispensáveis por conta do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Na ação, o Ministério Público pede liminar para que as empresas se abstenham de organizar ou realizar qualquer espetáculo público sem a prévia licença e as autorizações da administração pública e do Poder Judiciário, sob pena de multa de R$ 1 milhão por evento.

Os promotores pedem também indenização por todos os danos morais e materiais decorrentes do evento e que atingiram todas as pessoas que dele participavam.

Leia a ação

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CIVEL DO FORO CENTRAL DA CAPITAL.

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, através da Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, pelos Signatários, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, ajuizar AÇÃO CIVIL PÚBLICA de preceito cominatório de obrigações de não fazer e de indenizar, sob o rito ordinário, nos termos dos arts. 129, III, da Constituição Federal; 90 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8078/90); 5º, da Lei Federal nº 7.347/85 e 208, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, nos termos dos arts. 84, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor e 213, § 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, em face de COMPANHIA BRASILEIRA DE DISTRIBUIÇÃO, empresa inscrita no CNPJ sob o nº 47.508.411/0001-56, com sede à Avenida Brigadeiro Luís Antônio, nº 3.142, nesta Capital, e de EMI MUSIC BRASIL LTDA., inscrita no CNPJ sob o nº 33.249.640/0001-99, localizada à Avenida Rodolfo de Amoedo, nº 333, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (RJ), pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.

I – DOS FATOS.

Consta do incluso Inquérito Civil que, no dia 04 de fevereiro de 2006, a primeira requerida, após ajuste levado a termo com a segunda, organizou, nas dependências de seu estabelecimento denominado Extra Hipermercado, situado no Shopping Fiesta, na Avenida Guarapiranga, zona sul desta Urbe, uma “tarde de autógrafos” com o grupo musical RDB.


O evento, de acesso franqueado, contava com a previsão da presença de cerca de sete mil fãs do mencionado grupo, conforme fartamente noticiado pela imprensa.

Não obstante, ao evento acorreram mais de vinte mil pessoas, segundo estimativas da Polícia Militar, em sua grande maioria adolescentes, todas admitidas ao local pelos organizadores, em que pese a estrutura montada para o evento demonstrasse total inadequação para o número de pessoas efetivamente presentes.

Outrossim, não bastasse a notória insuficiência da estrutura montada, durante a realização do evento os organizadores, sentindo que não teriam condições de apenas manter a proposta inicial de uma “tarde de autógrafos”, deliberaram realizar um show com o grupo RDB, improvisando um palco e tocando “playbacks”.

Nessa oportunidade, a multidão – totalmente desproporcional em face da estrutura montada pelos organizadores do evento – entrou em polvorosa, pondo-se toda ela a correr em direção ao palco improvisado para a realização do espúrio e adaptado show na carroçaria de um caminhão.

Mercê da desordem que surgiu, expressivo número de pessoas culminou por ser pisoteada, fato que resultou na morte de três expectadores (dentre os quais dois adolescentes), além de ferimentos das mais variadas cepas em mais de quarenta dos presentes.

Segundo noticiado, os organizadores do evento – a gravadora EMI e o Grupo Pão de Açúcar – haviam solicitado, na véspera, o concurso da polícia para realizar a fiscalização das áreas externas ao evento, com a previsão de que o mesmo atrairia por volta de sete mil pessoas.

Não bastasse o grave erro de avaliação quanto ao número de presentes – mesmo porque a demanda pelo evento poderia ser facilmente prevista por situações antecedentes, como o comparecimento de cerca de sete mil pessoas ao singelo desembarque do grupo musical no aeroporto de Cumbica, no dia anterior, fato amplamente divulgado pela mídia – os organizadores sequer cuidaram de obter qualquer autorização administrativa e judicial para a realização do evento, como se observa de informações prestadas pela Subprefeitura da região, pelo CONTRU, pelo Corpo de Bombeiros e pela Vara da Infância e Juventude do Foro Regional de Santo Amaro, cuja oitiva era imprescindível em face do grande fluxo de adolescentes que se fizeram presentes ao show.

Nas reportagens anexadas ao inquérito civil, constam diversas entrevistas com pessoas que presenciaram o ocorrido sendo certo que todas elas afirmaram que não havia segurança suficiente no local na hora do tumulto, nem estrutura para atendimento médico e emergencial, o que denota o despreparo e a desorganização que cercaram a realização do evento.

No momento em que ocorreu o tumulto, inúmeras crianças e adolescentes – que se encontravam próximos ao palco improvisado na carreta de um caminhão – foram prensadas e pisoteadas por absoluta falta de segurança e controle da multidão, o que ensejou os eventos mortes e lesões corporais.

Outrossim, foram posteriormente constatadas diversas irregularidades no local do evento, tais como a falta de rotas de saída, principalmente para situações de tumulto e pânico coletivo como verificados.

Cumpre observar que a improvisação do show, o despreparo dos organizadores, a ausência de controle no ingresso de pessoas ao local e a insuficiente estrutura de segurança, a par da injustificável omissão em obterem as licenças e autorizações necessárias para a realização do evento, foram causas determinantes do tumulto que culminou por causar não apenas as mortes e lesões, mas também autêntica situação de pânico coletivo, ensejando desespero a todos os que compareceram ao evento, principalmente crianças e adolescentes.

Em corolário, a conduta dos organizadores foi capaz de gerar não apenas as mortes e lesões físicas em mais de quarenta pessoas como, também, danos materiais e morais de natureza coletiva, vez que todos os presentes foram indevidamente expostos a situação absurda de risco a sua saúde e segurança, além de sofrerem desenfreada pressão de ordem psíquica, em decorrência da iminente possibilidade de serem pisoteados ou espremidos contra obstáculo físico em virtude do movimento incontido da massa humana que se aglomerava no local.


De se observar, demais disso, que grande número de crianças e adolescentes compareceram no local do evento desacompanhadas dos pais ou responsáveis, fato decorrente da omissão dos organizadores, que deixaram de requerer, como de mister, alvará junto a Vara da Infância e Juventude do Foro Regional de Santo Amaro.

Acresça-se que a Subprefeitura da Capela de Socorro não tinha sequer conhecimento da realização do show.

II – DO DIREITO.

Os direitos à vida e à integridade corporal são amplamente protegido pela Constituição Federal, em seu art. 6º, possuindo a natureza de fundamentais e indisponíveis.

O art. 7o do Estatuto da Criança e do Adolescente, a seu turno, estabelece que a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, permitindo o seu desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. Os infantes são titulares de direitos comuns e especiais, tendo em vista que tratarem-se de pessoas em processo de desenvolvimento.

As crianças e adolescentes devem ter sua dignidade plenamente protegida, devendo ser mantidas a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante ou constrangedor.

Com efeito, é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente, como informa o art. 70 da Lei Federal nº 8.069/90.

De outra banda, a criança e o adolescente têm direito a freqüentar espetáculos oferecidos ao público, mas estes devem respeitar a sua condição peculiar, de pessoas em processo de desenvolvimento (art. 71 da Lei Federal nº 8.069/90). As normas de segurança não podem deixar de ser observadas por quem está oferecendo o espetáculo, o que enseja responsabilidade civil, administrativa e, conforme o caso, penal para a pessoa jurídica ou física, dentro dos termos da lei (cf. o art. 73 do Estatuto da Criança e do Adolescente).

Justamente tendo em conta a necessidade de aferir-se a adequação do espetáculo ou do show à condição peculiar do infante é que o Estatuto da Criança e do Adolescente exige que o Poder Público regulamente a atividade, como se observa de seus arts. 74 e 75, assim como confere à Autoridade Judiciária o poder de disciplinar a entrada e a permanência de criança ou adolescente desacompanhada dos pais ou responsável em espetáculos realizados em locais como estádios e campos desportivos, similares ao estacionamento utilizado para a apresentação do grupo musical RDB (art. 149, I, da Lei Federal nº 8.069/90).

Ao deixarem de solicitar as autorizações e alvarás necessários à realização do evento, os organizadores permitiram e contribuíram de forma decisiva para a eclosão do tumulto, que gerou lesões físicas e psíquicas a todas as pessoas que a ele acorreram.

Aplica-se à espécie, demais disso, o Código de Defesa do Consumidor.

Com efeito, em que pese o acesso às dependências em que realizado o show fosse franqueado, de ver que a notória e evidente intenção dos organizadores era a de divulgar o grupo musical RDB, granjeando novos clientes para a aquisição de produtos a ele relacionados e que eram vendidos no próprio Hipermercado Extra, co-patrocinador do evento.

Dessarte, trata-se de prática comercial evidente, em que o fornecedor de serviços oferece uma benesse com o notório escopo de auferir vantagem econômica decorrente, por intermédio da venda de produtos correlacionados e disponibilizados no próprio local do evento.

Em outras palavras, o show (ou a “tarde de autógrafos”) tinha o espeque de estimular os consumidores a adquirem produtos relacionados ao grupo RDB, trazendo benefícios econômicos à gravadora EMI e à Companhia Brasileira de Distribuição, fornecedores por excelência à luz do conceito inserto no art. 3º do Código de Defesa do Consumidor.


Aplicável, em corolário, a regra de responsabilidade civil prevista nos arts. 12 e 14 da Lei Federal nº 8.078/90, de índole objetiva, baseada na teoria do risco do negócio.

Outrossim, do art. 7º, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor emana a solidariedade entre os fornecedores no dever de reparar os danos causados aos consumidores em decorrência do trágico acontecimento, vez que o serviço se mostrou notoriamente defeituoso por não oferecer a segurança que dele se poderia legitimamente aguardar.

Cumpre afiançar, ademais, que ainda que nenhum ato material de aquisição de produtos ou serviços tenha sido realizado, aplica-se à espécie o conceito constante do art. 29 da Lei Federal nº 8.078/90, o qual informa que consumidor é qualquer pessoa exposta a uma prática comercial, situação em que seguramente se enquadram todos aqueles que se fizeram presentes ao evento.

Nessa senda, aplica-se à espécie o disposto no art. 6º, VI, da Lei Federal nº 8.078/90, o qual afirma que o consumidor tem direito à integral reparação dos danos morais e patrimoniais de índole individual, difusa ou coletiva.

Aliás, a hipótese vertente contempla a responsabilidade objetiva mesmo em sede de direito comum, vez enquadrar-se na teoria do risco da atividade, prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil.

III – DO CABIMENTO DA LIMINAR.

Como afiançado, o direito a proteção à vida, à saúde e à dignidade da criança e do adolescente é assegurado pela Magna Carta e pela legislação citada.

O direito ao lazer, à evidência, existe, mas deve ser pautado por princípios que assegurem os bens jurídicos acima individuados.

Mercê de tais ponderações, à evidência que evento como o levado a termo não pode repetir-se à revelia dos órgãos públicos e do Poder Judiciário, sob pena do surgimento de novos dramas com as mesmas dimensões dos verificados no caso concreto.

Prescindível dizer que a postura de se aguardar todo o trâmite processual implicará na possibilidade da eclosão de outro acontecimento que coloque em risco a saúde e a segurança de crianças e adolescentes, donde emerge nítido o periculum in mora.

A evidência que o processo supõe efetividade: sem ela o Poder Judiciário seria inerte ante os desmandos e ilegalidades ocorridos no seio social, pois Justiça tardia é negativa de Justiça.

Atento a mencionada situação, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 213, § 1o, autoriza o Magistrado a conceder a tutela liminarmente sempre que relevante o fundamento da demanda e houver justificado receio de ineficácia do provimento final, princípio igualmente abraçado pelo art. 84, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor.

É a hipótese dos autos: todas as crianças e adolescentes presentes no local do tumulto tiveram seus direitos violados, o que poderá voltar a acontecer caso sejam realizados mais eventos sem as devidas autorizações dos órgãos competentes. Aguardar o provimento final, após longa instrução, certamente acarretará maiores prejuízos para a sociedade, negando prestação jurisdicional indispensável para o sadio desenvolvimento e direitos essenciais das crianças e dos adolescentes.

Mercê de tais ponderações, presentes os requisitos do periculum in mora e do fumus boni juris, este consubstanciado na farta construção legislativa acima descrita, requer a concessão liminar da tutela com o fim de impor-se às Requeridas, por si ou por empresas coligadas ou controladas, o dever de se absterem de organizar, realizar, implementar ou coordenar qualquer espetáculo público sem a obtenção prévia das licenças e autorizações advindas dos órgãos pertencentes à Administração Pública e ao Poder Judiciário, sob pena de multa no importe de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) por evento, sem prejuízo da apuração do crime de desobediência.


IV – DO PEDIDO.

Concedida liminarmente a tutela, requer a citação das acionadas para, em querendo, ofertarem contestações, sob pena de revelia, prosseguindo a demanda em seus regulares termos, até sentença que deverá condená-las no dever de indenizar por todos os danos morais e materiais individuais e coletivos decorrentes do evento realizado no dia 04 de fevereiro de 2006, nos termos dos arts. 6º, VI e 95, do Código de Defesa do Consumidor, cujos valores deverão ser aferidos em regulares liquidações de sentença, nos moldes dos arts. 97 e 100 da Lei Federal nº 8.078/90; assim como em obrigação de não fazer, tornando-se definitivo o provimento antecipatório da tutela.

Requer sejam as intimações ao Autor expedidas para a Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital, à Rua Riachuelo, nº 115, 1º andar, tels. 3119-9076.

Protesta pela apresentação de todos os meios de provas em direito admissíveis.

À causa, atribui, para efeitos fiscais, o valor de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

Termos em que, j. a esta o inquérito civil nº 058/06, com 187 páginas,

p. deferimento.

São Paulo, 11 de abril de 2006

MOTAURI CIOCCHETTI DE SOUZA

Promotor de Justiça

MARTHA DE TOLEDO MACHADO

Promotora de Justiça

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!