Vida da Constituição

O clamor das ruas tem de ser ouvido pelo Judiciário

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9 de abril de 2006, 7h00

Muito se tem questionado sobre a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal e também por juízes sobre diversos casos que lhes são submetidos a julgamento. Por vezes, há a ácida afirmação de que o juiz não deve nada à sociedade, não pode estar submetido ao clamor social e que não pode julgar emotivamente. Será isso verdade? Não está o magistrado submetido a uma, digamos, interpretação das ruas?

Estamos habituados ao julgamento por profissionais, isto é, por pessoas que estudaram o Direito, são técnicos e, em princípio, devem ser neutros e imparciais, cedendo apenas à sua consciência e aos ditames que lhes são impostos pela Constituição e pelas leis. Há um sentimento de estrito cumprimento do dever legal. A norma posta é que dirige o raciocínio do julgador, seja ele do Executivo ou do Judiciário.

O julgamento é sempre dado pelo intérprete formal da Constituição, os juízes em qualquer grau de jurisdição e o Supremo Tribunal Federal.

Diante dos últimos julgamentos afetos ao funcionamento interno do Congresso Nacional, o órgão jurisdicional teve oportunidade de imiscuir-se no âmbito do procedimento legislativo para dar a melhor interpretação ou entender que a atuação dos parlamentares agredia preceitos constitucionais. Sobrevieram afirmações de que não se deveria dar importância aos reclamos da sociedade, interpretados pela mídia, uma vez que o órgão colegiado decide de acordo com a Constituição e não com o que a sociedade pretende.

Será tal afirmação absolutamente verdadeira? A sociedade não pode ou não deve ser ouvida, em quaisquer circunstâncias? Deve manter-se absolutamente alheia à interpretação da norma jurídica? Deve o Supremo ficar imune a qualquer angústia crescente nos arranha-céus? Não deve importar-se com o clamor popular?

A Constituição de um país não é vivida apenas por seus intérpretes formais. Todos os que nela habitam, especialmente a denominada sociedade civil, aqui entendida como a sociedade consciente e organizada, integram-se na interpretação constitucional.

Modernamente, fala-se da população do censo, isto é, a grande massa de cidadãos que fica alheia aos benefícios sociais e que, raramente, se manifesta, salvo nas explosões sociais. De outro lado, existe a comunidade estruturada, vinculada a organizações participativas e que querem discutir a sociedade em todos seus aspectos.

Esta sociedade não pode ser ignorada. É ela que produz, é ela que faz circular as riquezas, é ela que ensina, é ela que trata de segmentos menos favorecidos, é ela que negocia, é ela que engrandece o país. Esta sociedade não pode ser ignorada.

Não podem ser ignorados os setores religiosos, jurídicos, médicos, corporativos, sindicais, etc.. Estes segmentos participativos vivem a norma constitucional e dela têm consciência. A enorme massa popular, que luta, antes de mais nada, pela sua subsistência, está preocupada com a fome, com habitação, com luta pela sobrevivência. Mesmo esta massa não pode ser ignorada pelo intérprete.

É lícito afirmar que a sociedade fique afastada e alienada do processo interpretativo, atribuindo-se a apenas à uma corte a interpretação real do texto constitucional?

A decisão formal cabe ao Supremo Tribunal Federal. No entanto, a matéria é discutida por todos, seja por juristas, pela mídia (jornalistas e comentaristas), por partidos políticos, por parlamentares, etc..

A decisão constitucional tem, sempre, conteúdo político e não estritamente jurídico, uma vez que vem conectada a uma sociedade que tem a Constituição por fonte maior do Direito. Não tem sentido que a Constituição vincule e maniete a sociedade. Esta é que dá vida àquela. Qualquer interpretação em descompasso com ela tende a debilitar-se e a enfraquecer o intérprete.

Os inúmeros segmentos sociais são muito ricos em vida, em problemas, em questionamentos sobre diversos valores. Estes são mutáveis e alteram situações que não permanecem as mesmas. O mundo se modifica rapidamente e a interpretação constitucional deve atender aos novos reclamos da sociedade. Quem a vive é que fornece elementos e interpreta os comandos constitucionais.

Os mais diversos atores sociais funcionam como filtros, selecionando os fatos principais do dia a dia e dando novos significados aos conceitos inseridos na Constituição, de modo a formar nova textura aberta passível de interpretação. De outro lado, a economia pressiona o Direito, o meio ambiente desperta novas exigências, os direitos humanos exigem nova colocação dos intérpretes, a pobreza impõe novo equilíbrio social, a concentração urbanística impõe novo enfoque de vida, o desmatamento, a agressão à vida selvagem, os danos ambientais causados, o terrorismo individual, de grupos e do Estado, exigem diversos posicionamentos e novas reações da sociedade.

O poço existente entre uma elite rica e poderosa e a grande maioria do povo carente necessita de intervenção do Estado para reequilibrar a balança da desigualdade. A fome, decorrente da má distribuição da riqueza, grita sobre os intérpretes constitucionais. O esqueleto, o arquétipo constitucional é prenhe de significados. O importante é fazer com que o clamor das ruas, interpretado por artistas, sociólogos, juristas, jornalistas, etc., todos se façam ouvir, para que haja, na sociedade aberta, a interpretação mais consentânea com a realidade.

Em suma, magistrados de todos os quadrantes e de todos os escalões devem estar prontos a sentir a realidade que muda, cabendo a eles a intervenção legal na má aplicação das políticas públicas, para redirecionar os gastos públicos com as efetivas necessidades da população. No encontro entre verbas para publicidade e exigências candentes da sociedade, deve prevalecer esta, recolhendo a interpretação constitucional das ruas, para inseri-las em suas peças jurídicas.

Apenas a sensibilidade do magistrado, como intérprete último do ordenamento jurídico, é que pode sensibilizar os segmentos políticos à retidão de comportamento. Por conseqüência, as sanções jurídicas devem ser aplicadas nos diversos casos de corrupção. A interpretação constitucional não é monopólio dos setores formais do Judiciário. É ela colhida nas ruas.

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