Estatuto de escanteio

Juiz viola a lei ao impedir advogado de ver inquérito

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6 de abril de 2006, 13h41

A propósito do que aconteceu com o advogado Alberto Toron, que restabeleceu seu direito, enquanto advogado, de ter acesso aos autos de inquérito policial que tramita pela Delfin, na SRPF-SP, melhor sorte não tivemos em nosso escritório.

Em 6 de julho de 2005, no prédio da Superintendência Regional da Polícia Federal em São Paulo, estivemos lá, eu e meu sócio, compulsando os autos de um IPF que tramita numa de suas delegacias.

Requeremos cópias de algumas peças do IPF, mas a delegada negou-as sob o argumento inicial de que não tinham aparato necessário para produzi-las. Redargüi dizendo não haver necessidade, pois portava um scanner de mão. Então, a delegada simplesmente negou que pudéssemos utilizá-lo sob o fundamento de que ela nutria o entendimento pessoal segundo o qual o advogado, mesmo constituído por procuração nos autos (como era o caso), não pode ter acesso nem cópias das peças do IPF, e que o fato de nos ter permitido consultar os autos já constituía um favor.

Ao agir assim, a delegada infringiu o artigo 7º, inciso XIV, da Lei 8.906/97, que reza ser direito do advogado “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”. Tal obstrução, em tese, pode configurar o delito previsto na alínea “j” do artigo 3º da Lei 4.898/65, o qual estatui constituir crime de abuso de autoridade qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.

Ora, evidentemente que a norma inscrita na alínea “j” do artigo 3º da Lei 4.898/65 constitui norma penal em branco, exigindo, por sua natureza, outro comando legal, o elemento normativo que a complete, consistente em direito e garantia assegurados ao exercício profissional de qualquer pessoa e profissão.

No caso, sempre especulando em tese para que depois não me acusem de calúnia, parece que o preceito contido no inciso XIV do artigo 7º da Lei 8.906/94 completa aquele previsto na alínea “j” do artigo 3º da Lei 4.898/65, à medida que assegura ao advogado o direito e a garantia de ter acesso aos autos de inquérito, em qualquer repartição policial e dele extrair cópias. A obstrução, então, possui, em tese, todo o colorido de infração penal típica, pois consiste em violação àqueles direitos e garantias assegurados em lei.

Em vista disso, representamos em face da tal delegada e do escrivão (que, aliás, no dia, recusou-se até mesmo de fornecer o seu nome, violando um dever funcional, já que todo funcionário público, máxime os agentes da Polícia, têm o dever de se identificar ao cidadão quando solicitados), tanto perante a Corregedoria quanto o Ministério Público Federal, embora intimamente tenhamos o sentimento de que o espírito de corpo que impregna essas duas entidades acabará fazendo com que a representação não prospere, com base em argumentos falaciosos, tergiversações e outras imoralidades que conduzem tudo a uma grande pizza, pois quem detém o poder não admite crítica nem censura.

Mas o que mais surpreendeu foi que, em outra oportunidade, meu sócio tornou àquela delegacia para, novamente, consultar o inquérito. Desta feita, nem mesmo isso lhe fora permitido. A mesma delegada, com muita educação e uma dose de sutil sarcasmo, apresentou-lhe a cópia de um ofício do juiz federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo, o mesmo da notícia veiculada pelo ConJur ), que impediu o advogado Toron de ter acesso aos autos do IPF por que se investiga seu cliente, determinando que somente nos casos autorizados por ele, o juiz federal da 6ª Vara Criminal, poderão os advogados ter acesso aos autos de qualquer IPF.

Veja-se, não se trata de um comando específico, o qual já seria em si ilegal. É algo pior. Cuida-se de uma orientação genérica e abstrata, dirigida a todos, como se ao magistrado fosse deferido o direito de legislar e alterar o comando inscrito no artigo 7º, inciso XIV, da Lei 8.906/94, para criar a sua própria lei, concertada com suas preferências pessoais. Em verdade, trata-se de um acinte à classe dos advogados, à advocacia, à OAB, uma afronta inominável ao artigo 133 da CF.

Apesar de não nos ter sido concedida uma cópia dessa medida judicial, impetramos o MS 2005.03.00.096785-0, que tramita perante a 1ª Seção, 5ª Turma, e tem como relatora a juíza federal Ramza Tartuce.

Ao apreciar a liminar, ela foi negada. Os fundamentos são risíveis. Tudo fez a eminente relatora para contornar o comando específico, expresso no inciso XIV do artigo 7º da Lei 8.906/94. Uma imoralidade abominável, pois quando o poder constituído para fazer valer a vontade da lei utiliza a erudição para ladeá-la de modo vil, contra preceitos legais taxativos e decisões das pacificadas nas cortes superiores, deve-se perquirir o porquê dessa atitude, o que leva uma juíza federal a citar um desfile de dispositivos elencados no artigo 7º do EA para furtar-se da aplicação daquele específico previsto para a espécie.


Essa é uma indagação que ainda não consegui responder. Talvez o STJ ou STF consigam, ao apreciarem o HC que estamos impetrando para atacar e reformar tal decisório. Para que não pensem que posso estar exagerando, vejam a decisão, já que no nosso caso, pelo menos até agora, o MS não tramita em sigilo, e sendo público, todos podem conhecer seus termos.

Reproduzo, para esse fim, a seguir, a decisão que nos nega o acesso aos autos de IPF em que estamos constituídos por procuração pelos investigados, da qual suprimimos o nome do cliente.

Observe-se como a juíza relatora manipula os dispositivos da Lei 8.906/94, indo e vindo com argumentos especiosos e carentes de toda lógica, desviando-se adrede para esquivar de aplicar a norma específica prevista no inciso XIV, do artigo 7º, do EA. Outrossim, olvidou as mais recentes decisões do STF, em que a suprema corte pacificou o entendimento de que não se pode tolher ao advogado, muito menos do advogado munido de procuração, o direito de acessar os autos de inquérito, dele extrair cópias e obter apontamentos, mesmo quando tramitam sob sigilo, salvo em relação às diligências ainda inconclusas, sob pena de ofender-lhe os direitos e garantias que constituem prerrogativas da profissão, bem como os princípios do Estado de Democrático de Direito.

São decisões dessa natureza que abalam o conceito da Justiça brasileira arrebantando-lhe a credibilidade, eis que impregnadas de elevada carga de autoritarismo, essa herança atávica dos tempos da ditadura, e que atualmente está tão presente nos atos dos três Poderes da federação.

Leia a íntegra da decisão

PROC. : 2005.03.00.096785-0 MS 273611

ORIG. : 200561810039198/SP

IMPTE : RAIMUNDO HERMES BARBOSA

ADV : RAIMUNDO HERMES BARBOSA

IMPDO : JUIZO FEDERAL DA 6 VARA CRIMINAL SÃO PAULO SP

RELATOR : DES.FED. RAMZA TARTUCE / PRIMEIRA SEÇÃO

D E S P A C H O

RAIMUNDO HERMES BARBOSA impetrou este mandado de segurança contra ato do MM. Juiz Federal da 6a Vara Criminal de São Paulo.

Informa que esteve na sede da Superintendência Regional da Polícia Federal para consultar os autos do Inquérito Policial nº 12-090/05, no qual figura como advogado constituído de (…).

Entendendo ser necessária a extração de cópias de algumas peças que compõem os autos, requereu, verbalmente, à autoridade policial que permitisse a saída dos autos, o que lhe foi negado, não lhe sendo permitido, ainda, o uso de scaner.

Após descrever episódio relativo à alteração de ânimos, afirma que, retornando à Delegacia de Polícia, obteve a informação de que, nos termos da orientação do Juízo, somente com autorização judicial seria possível ter acesso aos autos, razão pela qual não poderia o impetrante ter vista dos autos do Inquérito Policial.

Invoca a norma prevista na Lei nº 4.898/65, que dispõe sobre abuso de autoridade (art. 3o , letra “j”), a norma constitucional prevista no art. 133 da Constituição Federal, o disposto no art. 7o , da lei 9.806/94 e defende seu direito de extrair cópias dos autos.

Cita precedentes e pede a concessão imediata da ordem de modo a garantir-lhe o acesso aos autos e pede, ainda, a apuração da prática do delito de abuso de autoridade, tendo em vista que o exercício legal de sua profissão foi obstruído.

Juntou os documentos de fls. 16/25 e recolheu as custas. O Inquérito Policial, por sua própria natureza, não contempla os princípios da ampla defesa e do contraditório, como já decidiu o Egrégio Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do HC 82.354-8-Paraná.

Dentre os direitos do Advogado se inclui o de consultar os autos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da administração pública em geral, como está previsto no inciso XIII, do art. 7o, da Lei 8.906/94.

O mesmo dispositivo de lei, entretanto, faz expressa referência aos feitos que tramitam sob segredo de Justiça.

Confira-se:

“Art. 7o – São direitos do advogado:

………………

XIII – examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da administração pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos;”.

Quisesse a lei franquear o acesso aos autos ao Advogado munido de procuração, não se valeria da expressão “mesmo sem procuração”.

Tal como redigido, conclui-se que ao Advogado, com ou sem procuração, é vedado o acesso aos autos sob sigilo, enquanto tal circunstância for necessária para preservar as investigações no interesse da sociedade, como no caso.

E a vedação não decorre apenas do dispositivo de lei acima transcrito. Dispõe, ainda, o Estatuto da Advocacia, no mesmo artigo 7o , que são direitos do Advogado:


“XV – ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;

XVI – retirar autos de processos findos, mesmo sem procuração, pelo prazo de dez dias”.

E o § 1º do mesmo artigo de lei, é expresso no sentido de que o acesso aos autos é vedado ao advogado, com ou sem procuração, enquanto tal circunstância se fizer necessária à viabilização e preservação das investigações.

Confira-se:

“§ 1º – Não se aplica o disposto nos incisos XV e XVI:

1) aos processos sob regime de segredo de justiça”.

Veja-se, portanto, que o direito do Advogado de ter acesso aos autos não é ilimitado. A propósito, aliás, o precedente invocado às fls. 22/23, não tem o alcance pretendido.

Nele, com efeito, há ressalva quanto ao acesso do Advogado. Confira-se o item “4” do julgado em questão:

“O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296), atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório”.

No mesmo julgado, por diversas vezes, restou consignado que o sigilo decretado nos autos, no interesse das investigações, proíbe o acesso do Advogado aos autos.

Dentre eles, transcrevo:

“ADMINISTRATIVO – INVESTIGAÇÕES POLICIAIS SIGILOSAS – CF/88, ART. 5O , LX E ESTATUTO DA OAB, LEI 8.906/94.

…………….

4. Em sendo sigilosas as investigações, ainda não transformadas em inquérito, pode a autoridade policial recusar pedido de vista do advogado”.

(STJ – RMS 12516, Rel Min. Eliana Calmon, citação contida no

relatório – fl. 35)

……………….

“O parecer apela ao princípio da proporcionalidade ou ao da razoabilidade para, ao final da ponderação entre os interesses em confronto, asseverar:

‘E o ponto de equilíbrio está em assentar-se que:

a)………………….

b)………………….

c)…………………..

d)deferida judicialmente a interceptação telefônica em autos do inquérito policial, com ou sem sigilo, os advogados só podem ter acesso ao auto circunstanciado (artigo 7o, Lei 9296), imediatamente antes do relatório da autoridade policial’.”

(citação contida no relatório – fl. 38)

……………………….

Consta, ainda, do mencionado relatório:

“1º ) O advogado não tem direito a ter vista, tomar apontamentos e exigir cópias de todo e qualquer documento alusivo a pessoa diversa da que lhe outorgou o mandato, durante o trabalho investigatório, com o timbre do sigilo;

2º ) Documentos alusivos a terceiros a eles não tem acesso o advogado, durante o trabalho investigatório, com o timbre do sigilo;

3º ) O advogado, mesmo que a investigação tenha o timbre de sigilo, tem pleno acesso às peças da investigação que digam respeito, exclusivamente, à pessoa do investigado;

4º ) O artigo 20 do Código de Processo Penal foi plenamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988;

5º ) A interpretação aqui elaborada dos incisos XIV e XV do artigo 7º, do Estatuto do Advogado não é restritiva, mas compreensiva, porque obediente ao princípio da proporcionalidade no embate jurídico, sob o prisma processual penal, entre a pessoa e a sociedade”.

E no voto proferido, o senhor Ministro Sepúlveda Pertence, deixa muito claro que o acesso do Advogado e do investigado aos autos do inquérito se restringe à informação já obtida nos autos, sendo vedado em relação às investigações em curso, assim como àquelas que dizem respeito a terceiros.

Confira-se os seguintes itens:

“54. À informação já introduzida nos autos do inquérito é que o investigado, por seu advogado, tem direito.

55. A interceptação telefônica é o caso mais eloqüente da impossibilidade de abrir-se ao investigado (e a seu advogado) a determinação ou a efetivação da diligência ainda em curso; por isso mesmo, na disciplina legal dela se faz nítida a distinção entre os momentos da determinação e da realização da escuta, sigilosos também para o suspeito, e a da sua documentada, que, embora mantida em autos apartados – e sigilosos para terceiros – estará aberta à consulta do defensor do investigado: o mesmo procedimento pode aplicar-se à determinação e produção de outras provas, no inquérito policial, sempre que o conhecimento antecipado da diligência pelo indiciado possa frustrá-la.

Por sua vez, ao contrário do que sucede no processo, no inquérito a lei não determina o momento da inquirição do indiciado, o que possibilita à discrição da autoridade policial avaliar o instante adequado para fazê-lo, sem que o prévio conhecimento dos autos constitua obstáculo ao êxito da investigação”.

O senhor Ministro Cezar Peluso, no mesmo feito, registrou:

“…há certo hábito de conduzir o inquérito, como se fosse réplica de processo, em que se antecipam os termos de investigações que ainda não foram feitas, de investigações que estão em curso, etc.. Precisa a autoridade policial, em benefício do bom sucesso das suas investigações, resguardar-se para que a intervenção e a conseqüente ciência dos advogados, sobre elementos já documentados, não frustrem a eficácia das mesmas investigações”.

Como se vê, o mesmo precedente invocado pelo impetrante não tem o largo alcance por ele pretendido.

No que diz respeito à apuração da prática do delito de abuso de autoridade, observo que o mandado de segurança a isso não se presta.

Não vislumbro, portanto, qualquer ilegalidade no ato praticado pela autoridade impetrada, razão pela qual, indefiro a liminar pleiteada.

Requisitem-se as informações.

Tratando-se de feito de natureza criminal a União Federal nele não possui interesse.

Dar-se-á a intervenção do Ministério Público Federal como parte e como defensor da lei, promovendo a Subsecretaria as diligências que, para tanto, se fizerem necessárias.

Int.

São Paulo, 22 de dezembro de 2005.

Desembargadora Federal RAMZA TARTUCE

Relatora

Autores

  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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